O trabalho globalizado no vortex da era digital

Por Nick Dyer-Witheford, via Viewpoint Magazine, traduzido por Daniel Fabre.

Em entrevista a Gavin Mueller da Viewpoint Magazine, o professor associado da Universidade de Ontário Nick Dyer-Witheford, autor de Cyber-Marx e Cyber-Proletariat, aborda as transformações no mundo do trabalho produzidas pela globalização e pelas novas tecnologias, assim como as potencialidades e riscos destas na organização dos movimentos anticapitalistas


Gavin Mueller: Seu livro de 1999 Cyber-Marx é um excelente exemplo do marxismo autônomo e pós-operário assim como um argumento por sua relevância para as lutas contra um capitalismo cada vez mais impregnado com a tecnologia da informação e da comunicação. Com Cyber-Proletariat, você é menos sanguinário em relação ao apreço do pós-operarismo pelas tecnologias cibernéticas. Você poderia explicar sua mudança de posição? O que fez com que a tecnologia da informação e da comunicação parecesse como uma grande ameaça para classe trabalhadora global?

Dyer-Witheford: Minha mudança de posição reflete o envolvimento em dois momentos de luta – aquele da alter-globalização do fim dos anos 90 e do inicio dos 2000; e o momento de 2008 em diante, os novos antagonismos sociais e lutas que emergiram no despertar da crise financeira. Ambas as lutas revelaram novas possibilidades e novos problemas para os movimentos anticapitalistas que tentam usar as tecnologias cibernéticas. De um lado, havia o evidente e muito debatido uso das mídias sociais e das redes de telefonia celular no que podemos chamar de as revoltas de 2011 – as manifestações, as greves, as ocupações. Ao mesmo tempo, e por outro lado, todos esses eventos revelam as dificuldades que podem nos acometer com o uso dessas tecnologias como uma matrix organizacional – por exemplo, o que podemos chamar de síndrome “para cima como um foguete, para baixo como um pedaço de pau” que caracterizou alguns dos movimentos de 2011. Também durante tal ciclo, e particularmente vindo com as revelações de Snowden na América do Norte, foi revelado o escopo e a intensidade da vigilância que os militantes são sujeitados pelo meio cibernético.

Além desses pontos – que nos podemos chamar de pontos táticos sobre o uso das tecnologias cibernéticas pelos movimentos revolucionários – há um ponto maior, mais estratégico: as mudanças na composição de classe que foram produzidas pelo capital em termos de reestruturação da força de trabalho global usando a automação e as redes, e no sistema financeiro, redes de automação. Cyber-Proletariat começa com a questão sobre a validade e significância da “revolução do Facebook”, mas depois se move disso para uma tentativa de analisar os mais profundos efeitos da cibernética na reestruturação do trabalho no capitalismo avançado.

Gavin Mueller: Isso me leva a próxima questão. Antes de tudo o livro é sobre a composição de classe no século XXI. Quase todos os capítulos são uma narrativa das varias formas de trabalho que fazem a cadeia global de suprimentos de objetos cibernéticos tais como celulares e sites das redes sociais – mineiros da Amazônia, moderadores de conteúdo nas Filipinas, desenvolvedores de aplicativos em San Francisco. Há potencial para que tais variedades de trabalho, “internamente pressionados e fracionados”, como você coloca, se unam politicamente? Pode haver interesses compartilhados com tais divergências em “subjetividade” – uma palavra que você usa diversas vezes – entre esses trabalhadores?

Nick Dyer-Witheford: O caminho da reestruturação de classes global que o capital esta fazendo nos últimos 40 anos tem sido de diferenciação e desigualdade intensificada. Ele tomou uma forma de bifurcação da força de trabalho entre profissionais qualificados e, por outro lado, um vasto oceano de trabalhadores em insegurança, precarizados, de baixa remuneração e proletarizados. Isso foi uma divisão notável no que antes era concebido como – mesmo que de alguma forma mística – a potencial solidariedade da força de trabalho industrial de massa. Essa divisão é agora também intensificada por sua distribuição através das múltiplas zonas de remuneração permeadas pelas cadeias de suprimento global do capital. Ao mesmo tempo, enquanto há crescentes desigualdades entre os dois estratos sociais – as classes intermediárias profissionais e as forças de trabalho proletarizadas – mesmo uma desigualdade ainda maior é, obviamente, a que existe entre o capital plutocrático e ambos os segmentos mencionados.

Por isso, há simultaneamente assuntos de antagonismo real entre essas diferentes frações do trabalho no capital, mas também possibilidades para formas de cooperação. Tudo isso porque o que estamos vendo emergir crescentemente é uma re-proletarização do estrato profissional de um alcance variado – tudo bem visível do cenário universitário, para o qual pessoas que aspiram um carreira profissional encontram-se enredados nos guetos do trabalho precário; a famosa situação do estudante graduado sem futuro, citado por Paul Mason como uma dinâmica crítica em 2011.

Então o que vimos durante o ciclo de 2011 foi a pavimentação tanto das potenciais alianças como dos potenciais antagonismos dessa força de trabalho globalizada. Há indubitavelmente pontos nas grandes ocupações, tais como a Praça Tahrir, onde a mobilização criou uma grande solidariedade entre os estratos sociais contra um regime autoritário e cleptocrático. Em outros lugares, como na Inglaterra em 2011, se via correntes de lutas agindo paralelamente, mas sem se relacionarem. Houve a erupção de poderosas revoltas nos campi universitários entre os estudantes, e depois manifestações nas cidades dos setores mais excluídos e despossuídos. Ambas tiveram fortes ressonâncias como protestos contra os regimes de austeridade, mas também existe quase que em mundos paralelos, e algumas vezes com grande suspeita e hostilidade entre eles. E depois em ainda outros cenários se pode ver situações em que algumas táticas das ocupações de 2011 são adotadas pelo estrato de classe média lutando para preservar elementos de seus privilégios, por exemplo em Tailândia e Venezuela.

Esse é um longo modo de dizer que estamos observando um extraordinário arranjo contraditório de classes que nos coloca questões muito serias sobre organização para movimentos de orientação comunista, questões que eu penso que não foram respondidas corretamente pelos movimentos de 2011, embora tais movimentos tenham colocado as questões da forma mais apurada possível.

Gavin Mueller: Você preparou alguns de seus trabalhos anteriores sobre teoria marxista autonomista relacionando-a à teoria da comunização tal como apresentado em jornais como Tiqqun, SIC, e Endnotes. Como essa relação suplementa ou modifica a teoria autonomista?

Nick Dyer-Witheford: As teorias do autonomismo e da comunização são indubitavelmente as correntes mais interessantes do movimento de teorização comunista de hoje e são amplamente críticas umas das outras. O autonomismo enfatiza o antagonismo entre os trabalhadores e o capital. A teoria da comunização insiste que precisamos entender que trabalhadores são também parte do capital. O autonomismo sempre enfatizou e celebrou a circulação das lutas entre diferentes grupos de trabalhadores. A teoria da comunização nos lembra que, justamente como estamos discutindo, esses seguimentos da classe trabalhadora podem, não raramente, serem antagônicos entre si.

Eu direi que ambas correntes teóricas têm seus problemas característicos. O autonomismo é cronicamente otimista, sempre esperançoso de ver uma andorinha fazer verão. A teoria da comunização tem uma melancolia bem estudada. De alguma forma, esse livro é uma tentativa de colocar no papel uma conversa que me encontrei pensando em minhas leituras, uma conversa entre essas faces gêmeas do ultra-esquerdismo, para ver o que surgia daí.

Gavin Mueller: Você poderia falar um pouco mais sobre essa melancolia que você vê como uma fraqueza da teoria da comunização?

Nick Dyer-Witheford: O elemento da teoria da comunização que sou mais crítico é na verdade o que ela divide em algum grau com o autonomismo: sua rejeição ao que ela chama de programatismo e sua escrupulosa recusa em descrever qualquer caminho para uma situação comunista com a imediata abolição da forma mercadoria. Acredito que é extremamente difícil persuadir pessoas, incluindo a si mesmo, a embarcar em perigosas tarefas na tentativa de criar uma nova sociedade sem ter nenhuma ideia de como o caminho será.

De fato, eu diria que o que vimos recentemente na Grécia, que pode ser tomado por um lado como uma derrota das estratégias eleitorais clássicas da social democracia, também de fato mostra seriamente os problemas que podem surgir quando há uma rejeição de qualquer tentativa de pensar a transição de vários estágios e fases da luta dos movimentos anticapitalistas. Então eu não compro completamente essa parte da teoria da comunização, de participantes cujo trabalho admiro, mas que dispensam a si mesmos de fazer um trabalho duro.

Sou muito mais simpático nessa frente com grupos como Plan C no Reino Unido, que reconhecem que precisamos coletivamente, como um movimento, pensar sobre os problemas da transição, mas em um modo não-dogmático e explorativo que teremos de admitir o enorme grau de incerteza que acometeria qualquer crise que pudesse resultar em maiores transformações.

Gavin Mueller: Tornou-se comum, de alguma forma, ver o aumento da precariedade e o desemprego em virtude da tecnologia de uma forma positiva. Recentemente o jornalista britânico Paul Mason escreveu um longo ensaio para o The Guardian prevendo que um futuro pós-trabalho e pós-capitalista está sendo criado sob nossos olhos. Por outro lado, a teoria aceleracionista se atem a avançada subsunção das relações sociais ao capitalismo e às suas tecnologias. Como seu trabalho responde a argumentos desse tipo?

Nick Dyer-Witheford: Eles apontam para uma realidade que muitos outros pensadores radicais apontaram: é claro que o capitalismo está criando potenciais – não apenas tecnológicos, mas potenciais organizacionais – que poderiam ser adaptados de uma maneira transformada para criar um tipo bem diferente de sociedade. O exemplo evidente são as imensas possibilidades de aumento do tempo livre pela automação de certos tipos de trabalho. Para mim, o problema tanto do trabalho de Paul, que respeito, como dos aceleracionistas, é que há uma falha em reconhecer que a passagem do potencial para a atualização das possibilidades comunistas envolve atravessar o que William Morris descreve como um “rio de fogo”. Não encontro em seus trabalhos um bom ponto sobre o rio de fogo. Penso que seria razoável assumir que haveria um período de crise social massiva e prolongada que trataria da emergência dessas novas formas. E como sabemos das tentativas históricas no século XX de atravessar o rio de fogo, muito depende do que acontece durante a passagem. Então há, se se pode pôr dessa forma, um certo automatismo sobre a previsão da realização de uma nova ordem em ambas escolas, que deveríamos ter bastante atenção.

Gavin Mueller: Seu capitulo final discute a organização das lutas proletárias. Estas lutas, você argumenta, precisam adaptar-se ao tempo de guerra, a essa evocativa metáfora do rio de fogo. Você também vê uma forma de organização em rede, ao invés de uma hierárquica. Você pode dizer mais sobre o futuro da organização? Há exemplos desses tipos de forma emergente que você possa apontar?

Nick Dyer-Witheford: Você nomeou algumas das provocações que eu sugeri em termos de pensar sobre novas formas de organização, provocações suscitadas pelos dilemas das lutas de 2011. Entre essas, uma que ponho bem perto do topo da lista é a necessidade do surgimento de novas formas de organização do trabalho, que podem levar em conta melhor as realidades do trabalho precário e do desemprego. Estas já estão em funcionamento em diversas formas, em tentativas – e aqui falo do ponto de vantagem canadense – estou informado de que alguns dos maiores sindicatos, só por motivos de auto-preservação, estão tentando se abrir para maior precarização de um crescente numero de seus membros. Mas há também iniciativas vindo de fora dos sindicatos estabelecidos, dos próprios trabalhadores precarizados, para encontrar novas formas. Então, primeiro, há um enorme desafio em torno da organização do local de trabalho – ou de trabalhos sem local.

A segunda coisa que eu sugiro é a necessidade de reavaliar as táticas de organização digital: um claro reconhecimento da necessidade de tal organização, porque vivemos em uma forma de capitalismo em que a vida social se tornou subsumida ciberneticamente, mas também para uma apreciação das limitações e riscos de tais formas de organização.

Eu também sugiro que este parece ser o momento de pensar muito seriamente sobre novas sínteses organizacionais que possam superar a divisão verticalista-horizontalista, que, obviamente, é uma divisão de séculos, mas que agora parece particularmente necessário ir adiante. Sem ficarmos perdidos sobre as coisas, me sinto encorajado pelo que vejo em termos de experiências com varias formas comuns de organizações, algumas delas ativas aqui em Ontário, que estão juntando em uma tentativa pessoas do movimento Occupy, movimentos trabalhistas e um amplo espectro de outros movimentos sociais.

Já mencionamos um quarto ponto, a importância de desenvolver uma visão não dogmática para enfrentar o que se poderia chamar de forma franca de estratégias de transição – Plan C. O quinto e final ponto, que é o que você começou, tempo de guerra, é simplesmente uma sugestão de que há uma necessidade de se estar melhor preparado para verdadeiras crises e para alguns tipos de riscos e aberturas que se seguem daí. Minha observação é que, certamente na América do Norte, o que se chama “a esquerda” foi pega totalmente de surpresa pelo que ocorreu em 2008. Tivemos uma crise massiva do capital. Mas organizacionalmente, devido ao descenso das lutas pelo neoliberalismo, houve uma real inabilidade de controlar o momento histórico. Parece altamente provável que haverá outros momentos históricos de crise, possivelmente em breve. Há muito que ser aprendido das experiências de camaradas em lugares como Síria, Turquia, Ucrânia: lugares onde organizações progressistas que ainda podem funcionar em meio as fatalidades da guerra civil, tiveram de se unir em um meio digital com problemas de vigilância potencialmente fatal, encriptação, verificação, autenticação para operar em tais circunstâncias extremas. Penso que precisamos pensar muito seriamente sobre isso e nos preparar.

Gavin Mueller: Apresso-me em acrescentar que, já que nossa conversa tem sido bastante teórica, seu livro é um maravilhoso catalogo com uma grande variedade de lutas, equipado com detalhes empíricos que são do interesse de qualquer um que esteve seguindo ou participando de alguma luta, especialmente desde 2008.

Nick Dyer-Witheford: O livro é uma tentativa de elencar algumas dessas lutas e dilemas que cresceram particularmente nos últimos sete anos e mais amplamente nos últimos quinze anos, da posição de um participante acadêmico em alguns dos eventos que descrevi. Este é um livro que está em movimento, e ele veste a camisa de suas contradições, porque precisamos ser capazes de falar sobre contradições e conflitos dentro do movimento para que sejamos capazes de passar para trás o que, no momento atual, parece ser um impasse.

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*Nick Dyer-Witheford é Professor Associado na Faculdade de Estudos de Informação e Mídia na Universidade de Western Ontario. É autor de “Cyber-Marx: Cycles and Circuits of Struggle in High Technology Capitalism” (Chicago: University of Illinois, 1999) e “Cyber-Proletariat: Global Labour in the Digital Vortex” (London: Pluto Press, 2015).

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