Gramsci sobre a legalidade

Por Antonio Gramsci, em Socialismo e Fascimo. L’Ordine Nuovo 1921-1922, via Capitalismo em desencanto. Imagem via AsymptoticWay.

Sem qualquer ilusão na democracia formal, que alguns de seus intérpretes parecem ter, Gramsci critica duramente a esquerda que se permite enganar com as garantias legais do estado burguês. O texto que segue, publicado originalmente sob o título “Legalidade”, é de extrema atualidade para o estudo da teoria marxista do direito e do Estado.


Até onde vão os limites da legalidade? Em que momento deixam de ser respeitados? É certamente difícil fixar qualquer limite, dado o caráter bastante elástico que assume o conceito de legalidade. Para qualquer governo, toda ação que se manifesta no campo da oposição contra ele supera os limites da legalidade. Contudo, pode-se dizer que a legalidade é determinada pelos interesses da classe que detém o poder em cada sociedade concreta. Na sociedade capitalista, a legalidade é representada pelos interesses da classe burguesa. Quando uma ação busca atingir de algum modo a propriedade privada e os lucros que dela derivam, tal ação se torna imediatamente ilegal. Isso é o que ocorre no plano da substância. No plano formal, a legalidade se apresenta de modo diverso. Já que a burguesia, ao conquistar o poder, concedeu igual direito de voto ao patrão e seu assalariado, a legalidade foi aparentemente assumindo o aspecto de um conjunto de normas livremente reconhecidas por todos os segmentos de um agregado social. Houve então quem confundisse a substância com a forma, dando assim vida à ideologia liberal-democrática. O Estado burguês é o Estado liberal por excelência. Nele, todos podem expressar livremente seu pensamento através do voto. Na verdade, no Estado burguês, a legalidade reduz-se a isto: ao exercício do voto. A conquista do sufrágio pelas massas populares apareceu aos olhos dos ingênuos ideólogos da democracia liberal como a conquista decisiva para o processo social da humanidade. Jamais se levou em conta que a legalidade tem uma dupla face: uma interna, a substancial; outra externa, a formal.

Confundindo estas duas faces, os ideólogos da democracia liberal enganaram por alguns anos as grandes massas populares, levando-as a acreditar que o sufrágio as libertaria de todas as suas cadeias. Nesta ilusão, desgraçadamente, não caíram apenas os míopes defensores da democracia liberal. Muita gente que se considerava e se considera marxista acreditou que a emancipação da classe proletária tinha de se realizar por meio do exercício soberano do direito ao voto. Alguns imprudentes chegaram mesmo a se servir do nome de Engels para justificar essa crença. Mas a realidade destruiu todas essas ilusões. A realidade mostrou, do modo mais evidente possível, que a legalidade é uma só e existe somente enquanto se concilia com os interesses da classe dominante, ou seja, na sociedade capitalista, com os interesses da classe patronal. A particular experiência deste fato nos últimos tempos contém, na verdade, muitos e importantes ensinamentos.

A classe operária, valendo-se do seu direito de voto, conquistou um grande número de governos municipais e provinciais. Suas organizações alcançaram um poderoso crescimento numérico e conseguiram impor contratos vantajosos para os operários. Mas, no dia em que o sufrágio e o direito de organização se tornaram meios de uma ofensiva contra a classe patronal, esta última renunciou a qualquer legalidade formal e passou a obedecer apenas à sua verdadeira lei, à lei do seu interesse e da sua conservação. Uma a uma, as prefeituras foram sendo arrancadas pela violência das mãos da classe operária; as organizações foram dissolvidas com o uso da força armada; a classe operária e camponesa foi expulsa das posições conquistadas, a partir das quais ameaçava para além da conta a existência da propriedade privada. Surgiu assim o fascismo, que se afirmou e impôs fazendo da ilegalidade a única coisa legal. Nenhuma organização, salvo a fascista; nenhum direito de voto, a não ser quando dado aos representantes dos latifundiários e dos industriais. É esta a legalidade que a burguesia reconhece quando é obrigada a repudiar a legalidade formal. Portanto, a experiência destes últimos tempos não é privada de ensinamentos para os que antes haviam honestamente acreditado na eficácia das garantias legais concedidas pelo Estatuto liberal burguês.

Existe um momento na história em que a burguesia é obrigada a repudiar o que ela mesma criou. Estamos vivendo este momento na Itália. Não levar em conta a experiência que disso resulta ou é suma ingenuidade, que merece as mais severas sanções, ou é má-fé, que deve ser impiedosamente punida. Tal nos parece, com efeito, o caso daqueles organizadores socialistas que hoje revelam espanto porque, por exemplo, o deputado Beneduce não consegue fazer com que os contratos de trabalho sejam respeitados. Tudo isso é grave em pessoas que continuam pretendendo se situar no terreno da luta de classes. Será que é permitido, a um organizador que pretenda não ter renegado os princípios da luta de classes, perguntar a um ministro quais são os recursos de que este dispõe para impedir a violação dos contratos de trabalho pelos patrões? Tais perguntas não podem deixar de gerar dúvidas e incertezas na classe operária. É natural que o ministro do Trabalho não disponha de nenhum recurso, salvo o de ser um instrumento nas mãos dos latifundiários e dos industriais. Enquanto os organizadores socialistas não souberem fazer mais do que dirigir-se ao ministro do Trabalho solicitando-lhe que peça aos patrões o cumprimento dos contratos, a classe operária continuará a sofrer todas as violações, sem nem mesmo poder organizar sua própria defesa.

Os industriais retiram-se das juntas de arbitragem. E esta é também uma consequência lógica da situação. Os industriais querem hoje retomar todo o seu poder. Os industriais não querem mais reconhecer limites de nenhuma espécie à sua própria vontade. Aceitaram as juntas de arbitragem no momento em que o ímpeto revolucionário das massas ameaçava a existência deles. Agora, quando a situação parece favorável a qualquer iniciativa reacionária, os patrões nem mesmo se preocupam em conservar qualquer escrúpulo. Escolheram abertamente o caminho da retomada integral e despótica do poder sobre as massas operárias. Que atitude os organizadores socialistas imaginam que deve ser tomada diante destas tendências da classe patronal? Tudo o que os organizadores socialistas sabem fazer é denunciar à opinião pública a inadimplência patronal e a impotência do ministro do Trabalho. Mas, enquanto isso, a classe operária sofre todas as consequências do comportamento patronal e da incerteza dos seus dirigentes. Enquanto estes apresentam solicitações ao ministro do Trabalho, cresce a fome, a miséria se multiplica, a reação se reforça. Aqueles organizadores socialistas que, durante a guerra, apertavam as mãos ensanguentadas dos generais nos comitês de mobilização são os mesmos que agora pedem a ajuda e a intervenção dos ministros do Trabalho. Ontem se faziam cúmplices dos assassinos que haviam desencadeado a guerra, ao frearem o ímpeto revolucionário das massas através das decisões das juntas de arbitragem; hoje deixam indefesa a classe operária, enquanto por toda parte os patrões não mais respeitam os acordos e os violam a seu bel-prazer.

Somente a proposta do Comitê Sindical Comunista é capaz de organizar uma defesa operária contra o assalto capitalista; somente se unirmos todas as forças operárias num exército compacto será possível pensar numa séria oposição aos capitalistas, os quais, obedecendo a uma palavra de ordem, visam a reduzir à escravidão toda a classe operária. Mas, para os senhores organizadores socialistas, até mesmo pedir o respeito aos acordos hoje é demasiadamente revolucionário.

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