A sobrevivência da Comuna de Paris

Por Kristin Ross, via Roar Magazine, traduzido por Daniel Alves Teixeira

Kristin Ross é professora de Literatura Comparada na Universidade de Nova Iorque. Seu recente livro, Communal Luxury: The Political Imaginary of the Paris Commune (“Luxo Comunal: O imaginário político da Comuna de Paris”), é um estudo magistral das ideias e aspirações que dirigiram a revolta histórica. O editor da ROAR Jerome Roos falou com ela sobre o legado da Comuna, o seu impacto sobre o pensamento radical do século 19, e o renascimento do imaginário comum em nossos tempos.


ROAR: A Comuna de Paris tem sido estudada e debatida por quase um século e meio. O que seu livro acresce ao nosso entendimento deste evento histórico-mundial, e porque você decidiu escreve-lo agora?

Kristin Ross: Como muitas pessoas depois de 2011, eu fiquei impressionada pelo retorno – de Oakland a Istambul, de Montreal a Madrid – de uma estratégia política baseada na ocupação do espaço, na tomada do espaço, tornando públicos espaços que o Estado considerava privado. Militantes ao redor do mundo tinham reaberto e estavam experimentando o espaço-tempo da ocupação, com todas as mudanças fundamentais na vida diária que isto implica. Eles experimentaram sua própria vizinhança transformada em teatros para operações estratégicas e viveram uma modificação profunda de sua própria relação afetiva ao espaço urbano.

Meus livros são sempre intervenções em situações específicas. Os eventos contemporâneos me levaram a uma nova reflexão sobre a Comuna de Paris, que para muitos continua a ser uma espécie de paradigma para a cidade insurgente. Eu decidi resgatar o que teve lugar em Paris na primavera de 1871 quando artesãos e comunistas, trabalhadores e anarquistas tomaram a cidade e organizaram as suas vidas de acordo com princípios de associação e federação.

Embora muito tenha sido escrito sobre as manobras militares e disputas legislativas dos Communards, eu queria revisitar as invenções dos insurgentes de tal forma que alguns dos problemas e objetivos mais prementes de hoje pudessem surgir de maneira mais vívida. A necessidade, por exemplo, de remodelar uma conjuntura internacionalista, ou o estado da arte e artistas, o futuro do trabalho e da educação, a forma-commune e sua relação com a teoria e prática ecológica: estas foram minhas preocupações.

A Comuna de Paris sempre foi um importante ponto de referência para a esquerda, mas o que é novo nos dias de hoje é, em parte, todo o contexto político pós-1989 e o colapso do socialismo de Estado, que levou para o túmulo todo um imaginário político. Em meu livro, a Comuna de Paris ressurge liberta desta historiografia, e oferece uma alternativa clara ao centralismo do Estado socialista. Ao mesmo tempo, a Comuna nunca, na minha opinião, se encaixou perfeitamente ao papel que a história nacional francesa tenta lhe dar como uma espécie de sequência radical no estabelecimento da República. Libertando-a das duas histórias que têm a instrumentalizado, eu estava certa de que nós poderíamos ser capazes de perceber a Comuna de novo como um laboratório de invenção política.

Luxo Comunal não é nem uma história da Comuna de Paris nem uma obra de teoria política no sentido comum do termo. Historiadores e teóricos políticos têm sido os responsáveis pela maior parte da literatura maciça gerada pela Comuna, e, no caso destes últimos – sejam comunistas, anarquistas, ou até mesmo filósofos como Alain Badiou – isso significa se aproximar do evento com a perspectiva de uma teoria já formulada. As ações dos communard se tornaram dados empíricos empacotados como suporte para verificar a teoria dada, como se o mundo material fosse uma espécie de manifestação local do abstrato ao invés do contrário.

Na minha mente isso equivale a invocar os pobres communards de suas sepulturas apenas para dar seriedade ao filosofar. Em vez disso o que eu fiz foi mergulhar durante vários anos nas narrativas produzidas pelos próprios Communards e alguns de seus companheiros de viagem do período. Eu olhei de perto não só o que eles fizeram mas o que eles pensavam e disseram sobre o que eles estavam fazendo, as palavras que usaram, disputaram, importaram do passado ou de regiões distantes, as palavras que eles descartaram.

Estas narrativas sobre sua luta – e temos a sorte que tantos dos Communards escolheram escrever algo sobre a sua experiência – já são documentos altamente teóricos. Mas eles tendem não a serem tratados como tal pelos teóricos políticos. É por isso que a teoria política existente sobre a Comuna teve tão pouca utilidade para mim e por que, no final, eu acho que teóricos políticos devem ser banidos de nossa existência na medida em que eles se aproximam dos casos de insurreição política a partir da perspectiva de um ponto de vista abrangente que tenta unificá-los sob um único conceito, teoria, ou narrativa da progressão histórica. Eu não acho que é sábio considerar os acontecimentos históricos de uma perspectiva onisciente, nem do ponto de vista fornecido por nosso presente, gordo e complacente com toda a sabedoria do “motorista no banco de trás,” corrigindo os erros do passado.

Eu ignorei todos os inúmeros comentários e análises da Comuna, muitos dos quais – mesmo aquelas escritas por pessoas simpáticas à memória da Comuna – consistem em nada, somente este tipo de adivinhação ou listagem de erros. Eu tive que realizar uma limpeza pesada do terreno para construir uma fenomenologia distinta do evento e visualizá-lo fora das múltiplas projeções colocados sobre ele pelos historiadores. É o evento e seus excessos que ensinam a como considerá-lo, como pensar e falar sobre ele.

E uma vez que você deu esse tipo de atenção aos trabalhadores como pensadores -uma atenção que eu aprendi quando eu encontrei e traduzi alguns dos primeiros trabalhos de Jacques Rancière – você não pode contar a história da mesma velha maneira: a maneira, por exemplo, como ela foi dita pelas duas tradições que controlaram a sua narração por tanto tempo: a historiografia estado-comunista oficial de um lado e a ficção nacional francesa por outro. Você tem que reformular e reconfigurar essas experiências passadas a fim de torná-las significativas em seus próprios termos e para torná-las visíveis para nós agora, no presente.

Ao concentrar nas palavras e na agência de indivíduos concretos que agem em comum para desmantelar, pouco a pouco e passo a passo, as hierarquias sociais que compõem a burocracia de um Estado, eu tentei pensar a Comuna historicamente – como pertencente ao passado, como morta e acabada – e, ao mesmo tempo, como a figuração de um futuro possível. Eu tentei encená-la como uma parte muito importante de sua época histórica, mas de uma forma que excede a sua própria história e que sugere a nós, talvez, as exigências mais profundas e duradouras de democracia mundial e revolução.

O livro é a minha maneira de reabrir, em outras palavras, a partir de nossas lutas atuais, a possibilidade de uma historiografia diferente, que nos permite pensar e fazer política de forma diferente. A Comuna oferece uma alternativa distinta ao rumo tomado pela modernização capitalista por um lado, e aquele tomado pelo socialismo de Estado utilitário do outro. Este é um projeto que eu acho que devemos partilhar cada vez mais e é por isso que escrevi o livro.

R: Ao escolher concentrar-se na vida após a morte da Comuna mais do que nos 72 dias de “sua própria existência em funcionamento”, você consegue descobrir as inúmeras miríades em que o imaginário político da Comuna de fato sobreviveu ao massacre e viveu nas lutas e pensamentos de ex-communards e seus contemporâneos. O que você considera ser o mais importante legado da Comuna a este respeito?

KR: Eu não foquei tanto na “vida após a morte” da Comuna como eu fiz na sua sobrevivência. Em um dos meus livros anteriores,Maio de 68 e suas vidas posteriores, meu assunto era de fato, como o título sugere, algo mais parecido com um estudo da memória: como as insurreições de 68 foram representadas e discutidas dez, vinte, trinta anos mais tarde. E hoje trabalhos muitos interessantes estão sendo escritos por aquilo que alguns escolhem ver como as “posteridades” ou “reativações” da Comuna de Paris: estudos da Comuna de Shanghai, por exemplo, ou outros aspectos da Revolução Cultural Chinesa, ou estudos que olham para os zapatistas como uma espécie de reativação de alguns dos gestos de 1871.

Luxúria Comunal, no entanto, é limitado ao tempo de vida dos Communards e é centrífuga ou geográfica em seu alcance. Eu examino as ondas de choque do evento à medida que atingem Kropotkin na Finlândia ou William Morris na Islândia, ou como elas impulsionam os próprios Communards pressionados e exilados a buscar novas redes políticas de longo alcance e novas formas de viver na Suíça, Londres e em outros lugares na sequencia do massacre que levou a Comuna ao seu fim. A forma extrema e o horror desse fim, a Semana sangrenta da violência estatal que levou milhares de pessoas à morte por muitas vezes provou ser demasiadamente de uma atração incontrolável, tornando invisíveis as redes e caminhos de sobrevivência, reinvenção e transmissão política que vieram nos anos imediatamente seguintes, e é sobre o que eu me preocupo na última parte do livro.

Há quase um desejo por parte dos historiadores em fechar todo o evento em um puro episódio de 72 dias que termina em tragédia. Nesse sentido, eu queria examinar o prolongamento do pensamento Communard para além da sangrenta carnificina nas ruas de Paris, suas elaborações quando os exilados reuniram-se com os seus apoiadores na Inglaterra e nas montanhas da Suíça. Ao fazê-lo, é claro, estou bastante de acordo com Henri Lefebvre que nos diz que o pensamento e a teoria de um movimento são gerados apenas com e após o próprio movimento. As lutas criam novas formas e maneiras de fazer política, bem como novas compreensões teóricas dessas práticas e formas.

Em um nível, você poderia argumentar que é as formas tomadas por essa sobrevivência – uma “vida para além da vida”, como na palavra francesa “survie” -, que constitui o legado mais importante da Comuna: o fato de que sua própria “existência em funcionamento” continuou, a recusa por parte dos sobreviventes e seus apoiadores em permitir que a catástrofe do massacre trouxesse tudo para um fim.

Em um nível mais simbólico, porém, o legado deixado pelo pensamento gerado pela Comuna emerge no meu livro no conjunto de significados que se ligam à frase que escolhi para o título do livro: “. Luxo comunal” Eu descobri a frase escondida na última sentença do Manifesto que Eugène Pottier, Courbet e outros artistas escreveram quando eles estavam organizados durante a comuna. Para eles, a frase expressa uma demanda por algo como uma beleza pública – a ideia de que todos têm o direito de viver e trabalhar em circunstâncias agradáveis, a exigência de que a arte e beleza não devem ser reservadas para o gozo das elites, mas que elas estejam plenamente integradas na vida pública diária.

Isto pode parecer uma exigência meramente “decorativa” por parte de artistas e artesãos de decoração, mas é uma demanda que na verdade exige nada menos do que a reinvenção total do que conta como riqueza, do que uma sociedade valora. É um chamado para a reinvenção da riqueza para além do valor de troca. E no trabalho de refugiados da Comuna como Elisée Reclus e Paul Lafargue, e companheiros de viagem como Peter Kropotkin e William Morris, o que estou chamando de “luxo comunal” foi expandido para uma visão de uma sociedade humana ecologicamente viável. É impressionante que o trabalho de Reclus, Lafargue e seus amigos esteja agora no centro da atenção dos ecologistas teóricos que encontraram ali um nível de pensamento ambiental que morreu com essa geração do final do século 19 e não foi reanimado novamente até a década de 1970 com figuras como Murray Bookchin.

Isto é um trabalho muito excitante, mas que muitas vezes falha em levar em conta a forma como a experiência da Comuna era parte integrante da perspectiva ecológica que eles desenvolveram. A experiência da Comuna e sua supressão impiedosa fizeram sua análise ainda mais descompromissada. Na sua opinião, o capitalismo era um sistema imprudente de resíduos que estava causando a degradação ecológica do planeta. As raízes da crise ecológica deveriam ser encontradas no estado-nação centralizado e no sistema econômico capitalista. E eles acreditavam que um problema sistêmico demandava uma solução sistémica.

R: Seguindo as perguntas anteriores, você enfatizou particularmente o profundo impacto da Comuna sobre o pensamento de Marx na época. Você poderia discutir brevemente como os eventos de 1871 informaram, alteraram ou aprofundaram a compreensão de Marx do desenvolvimento capitalista e a transição para uma sociedade pós-capitalista?

KR: Marx sabia tanto quanto era possível para alguém saber sobre o que estava transpirando nas ruas de Paris naquela primavera dada a sua distância e o verdadeiro muro de censura – uma “muralha da China de mentiras”, em seus termos – montado pelo versalheses para evitar que informações precisas alcançassem os franceses no campo e no estrangeiro. Ele olhou para a Comuna e ficou surpreso ao ver pela primeira vez em sua vida um exemplo vivo de vida não-capitalista improvisada na carne – o inverso da vida rotineira sob o domínio do Estado. Pela primeira vez que ele viu as pessoas realmente se comportando como se fossem as donas de suas vidas e não escravos aprisionados.

Em luxo comunal eu tracei as profundas mudanças que a existência da Comuna trouxe ao pensamento de Marx, e, mais importante, para o seu caminho: a nova atenção que ele deu na década que seguiu à Comuna às questões dos camponeses, para o mundo fora da Europa, para sociedades pré-capitalistas, e à possibilidade de múltiplas rotas para o socialismo. Ver pela primeira vez o trabalho não alienado realmente parecia que teve o efeito paradoxal de reforçar a teoria de Marx e causou uma ruptura com o próprio conceito de teoria.

Mas é preciso dizer que estou menos preocupado em relacionar a Comuna às trajetórias intelectuais de Marx ou de alguns dos outros companheiros de viagem bem conhecidos que eu discuto no livro, do que eu estou em entrelaçar o pensamento, práticas e trajetórias de contemporâneos como Kropotkin, Marx, Reclus e Morris, o sapateiro Gaillard e outras figuras menos conhecidas na rede relacional que o evento produziu – uma espécie de “globalização de baixo”.

O imaginário socialista no despertar imediato da Comuna foi alimentado não só pela insurreição recente, mas por elementos que incluíam a Islândia medieval, o potencial comunista das antigas comunas camponesas rurais na Rússia e em outros lugares, o início de algo chamado comunismo anarquista, e uma profunda reformulação da solidariedade de algo que hoje chamaríamos de uma perspectiva ecológica.

R: Você nota como a Comuna era realmente um projeto compartilhado que ” derretia as divergências entre facções de esquerda.” Da mesma forma, você mesma tem pouca paciência com as disputas sectárias que exageram a divisão entre Marx e Bakunin, ou entre comunismo e anarquismo, na sequência da insurreição. O que ocorreu na Comuna que permitiu que essas várias tendências encontrassem uma causa comum, e o que – se houver algo – deve a esquerda tomar desta experiência hoje?

KR: A vida é muito curta para o sectarismo. Não é que o sectarismo não existia sob a Comuna e na sua sequência. Na verdade, a esquerda nos anos imediatamente depois da Comuna é geralmente vista como tendo sido ferozmente dividida pela disputa entre Marx e Bakunin – a briga entre marxistas e anarquistas que se diz ser responsável pelo fim da Primeira Internacional, e uma querela que é muitas vezes incansavelmente ensaiada hoje entre aqueles que acreditam que a exploração econômica é a raiz de todo o mal e aqueles que acreditam que é a opressão política.

O que eu escolhi fazer no meu livro era empurrar Marx e Bakunin, esses dois senhores de idade cuja discussão foi por tanto tempo tudo o que qualquer um de nós poderia ver ou ouvir a partir dessa época, para fora do palco, ou pelo menos para sua margem, no momento de ver o que mais havia para ser visto. E o que eu descobri foi toda uma série de pessoas muito interessantes que não eram nem servilmente fiéis ao marxismo ou ao anarquismo, mas que fizeram um uso inteligente de ambos os conjuntos de ideias.

Isso me parece assemelhar-se muito a forma como os militantes de hoje se comportam em suas vidas políticas, talvez porque alguns dos tipos mais sectários de ambos os lados deixaram a cena. Mesmo assim, o meu livro teve a sua quota de ataque sectário – trazendo de forma insuficiente a linha marxista e a linha anarquista, em quantidade aproximadamente iguais!

R: Muitos movimentos contemporâneos parecem escutar a volta do espírito da Comuna em suas próprias lutas. Você acredita que estamos experimentando um renascimento do imaginário comunal em nossos tempos? Como você explicaria o retorno de estratégias políticas baseadas na ocupação e este interesse renovado na política do espaço urbano?

KR: Eu acho que há claramente um renascimento do imaginário comunal hoje, mas eu não concordo com você que ele é centrado na política do espaço urbano. A cidade hoje apresenta aos jovens, muitas vezes, três opções: falta de trabalho, trabalho mal remunerado, ou trabalho sem sentido. Muitos optaram se mudar para o campo para levar vidas que entrelacem luta e cooperação social. Quando eu penso sobre as várias lutas de hoje, particularmente na França que é o contexto que conheço melhor, elas acontecem muitas vezes em áreas rurais, e estão preocupadas em defender um modo de vida considerado “arcaico” sob a modernização capitalista. Ocupantes procuram criar uma forma de autossuficiência regional que não implica uma retirada para um mundo fechado em si mesmo, ou que acabam em conjuntos isolados de auto-referencialidade.

Este é um desejo que surgiu muito fortemente, aliás, no período após a Comuna, e eu discuti com alguma profundidade os muitos debates interessantes sobre este assunto, que tiveram lugar nas montanhas do Jura, na Suíça entre os refugiados e os seus apoiadores todos muito conscientes dos perigos do isolamento. Pelo que eu sei das ocupações comunais atuais de territórios e terrenos, ocupantes e Zadistes reivindicam uma certa linhagem não só com a Comuna de Paris mas também com lutas mais recentes, como a Larzac nos anos 1970 e figuras importantes daquela época como Bernard Lambert. Foi Lambert, aliás, que estava em cima do planalto Larzac em 1973 e proclamou às milhares de pessoas que tinham viajado para lá de toda a França e além para apoiarem os agricultores locais em sua luta contra a expulsão de suas terras pelo exército francês, que “nunca mais os camponeses estarão do lado de Versalhes”.

Quando Lambert, em seu texto clássico, Les Paysans dans la lutte des classes (“Os camponeses na luta de classes”), situou os trabalhadores urbanos e camponeses no mesmo lugar face a modernidade capitalista, ele estava mobilizando exatamente a mesma estratégia retórica que um dos principais personagens de meu livro, o Communard Elisée Reclus, faz em seu panfleto de 1899, “A mon frère, le paysan.” (“ao meu irmão, o camponês”). E é a estratégia idêntica subjacente a um panfleto ainda mais recente dirigida ao (mas nunca recebida por) franceses no campo pelos communards sitiados em abril de 1871, “Au Travailleur des campagnes.”(“Aos trabalhadores do campo”). Para citar Lambert:” Paysans, travailleurs, même combat”. (“Camponeses, trabalhadores, mesmo combate”).

Hoje, a existência de ZADs- “zones a defendre”, ou “zonas de ser defendida” – e comunas como Notre-Dame-des-Landes, na França ou No TAV fora de Turim, assentamentos que ocupam espaços dedicados pelo Estado à grandes projetos de infra-estruturas onsiderados inúteis e despendiosos, marca o surgimento de algo como uma vida rural distintamente alternativa e combativa. Esta é uma vida rural oposta ao agronegócio, à destruição de terrenos agrícolas, a privatização da água e de outros recursos, e à construção pelo estado de projectos de infra-estrutura em uma escala faraônica. Vemos aqui um desafio real com relação ao estado. E, ao mesmo tempo, o mundo rural está sendo defendido como um espaço cuja realidade física, bem como cultural se opõe à lógica homogeneizadora de capital. Ao se recusar a se moverem eles estão colocando-se no centro do combate.

A atual remobilização da forma-comuna, como eu a entendo, busca em parte bloquear a contínua criação de uma rede territorial de centros metropolitanos financeiros privilegiados cujo desenvolvimento tem um preço: a destruição dos laços que unem estes centros à sua periferia imediata e arredores. São essas periferias, rurais ou semi-rurais na natureza, que depois são destinadas a declinar em uma espécie de desertificação prolongada, já que o capital financeiro suga mais e mais pessoal e recursos para o trabalho de transporte em velocidade cada vez maior, e em uma escala cada vez maior de comunicação, bens e serviços entre os locais designado para a riqueza.

Os militantes de hoje muitas vezes se veem como lutando contra uma distinta e nova realidade neoliberal, mas eu acho que não importa muito se vemos o neoliberalismo como uma nova fase distinta do capitalismo ou não – o mundo capitalista a que eles se opõem foi já substancialmente analisado por Henri Lefebvre em seu A Produção do Espaço, um livro que saiu, eu acredito, no início de 1970. Lá ele mostrou como o aumento da “planificação” do espaço sob o capitalismo era um movimento em três partes: homogeneidade, fragmentação e hierarquia.

A produção de homogeneidade é garantida pela unificação de um sistema global com centros ou pontos de força metropolitanos que dominam os pontos mais fracos periféricos. Ao mesmo tempo, porém, o espaço torna-se fragmentado para melhor ser instrumentalizado e apropriado: trata-se de ser dividido como papel quadriculado em parcelas taylorizadas e autónomas com funções localizadas distintas. E uma estratégia crescente, consciente e traiçoeira que divide todas as zonas rurais e suburbanas, os satélites feitos de pequenas e médias cidades, os banlieues (“bairros afastados”) e os espaços desolados deixados para trás pela decomposição da vida agrária – todos estas semi-colônias para a metrópole – em zonas mais ou menos favorecidas com a maior parte, é claro, sendo destinado para o controle, supervisionada de perto, muitas vezes precipita o declínio.

Tais lutas contemporâneas e ocupações são, como a Comuna de Paris – por necessidade – fundamentadas localmente. Elas estão ligadas a um espaço particular e como tal demandam uma escolha política específica. Eles compartilham todas as preocupações e aspirações que estão em um tipo específico local. Mas eles não são localistas ou localizadas em seus objetivos. Os Communards, devemos lembrar, eram ferozmente anti-estadistas e em grande parte indiferentes à nação. Sob a Comuna de Paris queriam ser uma unidade autônoma em uma federação internacional de comunas.

Neste contexto a Comuna antecipou em ato todos os tipos de possibilidades de tal forma que mesmo os projetos que não puderam empreender e que permaneceram no nível de um desejo ou de uma intenção, como o projeto federativo, mantêm um profundo significado. Lutas específicas e locais, como Notre-Dame-des-Landes e No TAV estão muito melhor colocadas hoje para conseguir o tipo de federação internacional que a Paris sob a Comuna não teve tempo de conseguir.


Kristin Ross é professora de Literatura Comparada na Universidade de Nova York, conhecida especialmente por seu trabalho em literatura e cultura francesa dos séculos 19 e 20. Seu livro, Communal Luxury: The Political Imaginary of the Paris Commune, foi publicado pela Verso.

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