13 teses e alguns comentários sobre a política hoje

Por Alain Badiou, traduzido por Diogo Fagundes, trecho extraído do livro “Je vous sais si nombreux” (Ed. Fayard, Paris, 2017)

Estas teses e seus respectivos comentários foram proferidas em uma palestra para jovens franceses no ano de 2017. Podemos notar, além de teses reminiscentes da Organisation Politique (1985-2007), como as de número 11 e 12, originadas de um balanço crítico das experiências socialistas do século XX , um retorno a formulações da época da militância de Alain Badiou em uma organização maoísta, ao longo dos anos 70, após a irrupção de maio de 68.

Esta filiação mais explícita à herança marxista, bem como o balanço crítico dos movimentos de massa da última década, parece confirmar a opinião de Bruno Bosteels, um dos comentadores mais destacadas da obra do filósofo francês, referente a um possível retorno do Badiou mais recente a orientações políticas de mais de quatro décadas atrás, contidas em obras como “Théorie de la contradiction” (1975), “De l’idéologie” (1976) e “Théorie du sujet” (1982).



Tese 1. A situação mundial é de hegemonia territorial e ideológica do capitalismo liberal.

Comentário. A obviedade, a banalidade desta tese dispensa-me de qualquer comentário.

Tese 2. Esta hegemonia não está de forma alguma em crise, muito menos em um coma irreversível, mas em uma sequência particularmente intensa de seu desenvolvimento.

Comentário. Existem, no que diz respeito à globalização capitalista, hoje totalmente hegemônica, duas teses que tanto se opõem como são falsas. A primeira é a tese conservadora: o capitalismo, especialmente combinado com a “democracia” parlamentar, é a forma definitiva de organização econômica e social da humanidade. Este é realmente o fim da história, no sentido de Fukuyama. A segunda é a tese segundo a qual o capitalismo entrou em sua crise final, ou mesmo aquela segundo a qual já está morto.

A primeira tese é apenas a repetição do processo ideológico iniciado no final dos anos 1970 pelos intelectuais renegados dos “anos vermelhos” (1965-1975), e que consistia em pura e simplesmente eliminar a hipótese comunista do campo do possível. Tornou possível simplificar a propaganda dominante: já não há necessidade de elogiar os (duvidosos …) méritos do capitalismo, mas apenas de afirmar que os fatos (URSS, Lenin, Stalin, Mao, China, Khmer Vermelho, os partidos comunistas ocidentais…) mostraram que nada mais era possível, senão um “totalitarismo” criminoso.

Perante este veredito de impossibilidade, a única ação que nos é exigida é restaurar em um balanço e para além das experiências fragmentárias do século passado, a hipótese comunista na sua possibilidade, na sua força e na sua capacidade libertadora. Isso é o que inevitavelmente acontecerá, e neste próprio texto faço isto.

As duas formas da segunda tese, capitalismo incruento ou capitalismo morto, baseiam-se frequentemente na crise financeira de 2008 e nos incontáveis ​​episódios de corrupção revelados diariamente. Concluem, ou que o momento é revolucionário, que basta um empurrão forte para que o “sistema” entre em colapso, ou mesmo que basta dar um passo para o lado, para se retirar, por exemplo para o campo, e então perceber que podemos organizar nossas novas “formas de vida” lá, a máquina capitalista girando vazia em seu nada final.

Tudo isso não tem nada a ver com o real.

Em primeiro lugar, a crise de 2008 é uma crise clássica de superprodução (muitas casas foram construídas nos Estados Unidos, vendidas à crédito a pessoas insolventes), cuja propagação permite, com o tempo necessário, um novo ímpeto do capitalismo, posto em ordem e impulsionado por uma sequência forte de concentração do Capital, o fraco sendo lavado, o forte aumentado e, aliás, ganho muito importante, as “leis sociais” decorrentes do fim da guerra mundial liquidadas em grande parte. A “recuperação” está agora à vista, uma vez feita esta dolorosa arrumação.

Em segundo lugar, a extensão do domínio capitalista sobre vastos territórios, a diversificação intensiva e extensiva do mercado mundial, está longe de ser completa. Quase toda a África, boa parte da América Latina, Leste Europeu, Índia: tantos lugares “em transição”, sejam zonas de pilhagem, ou países “decolando”, onde a entrada em grande escala no mercado pode e deve seguir o exemplo do Japão ou da China.

Terceiro, a corrupção é da essência do capitalismo. Como pode uma lógica coletiva cujos únicos padrões são “lucro acima de tudo” e competição universal de todos contra todos evitar a corrupção generalizada? Os “casos” de corrupção são apenas operações laterais, seja um expurgo de propagandistas locais ou o resultado de um ajuste de contas entre camarilhas rivais.

Na verdade, o capitalismo moderno, o do mercado mundial, com seus poucos séculos de existência, é historicamente uma formação social muito recente, apenas começou a conquistar o planeta, após uma sequência colonial (do século XVI ao XX) onde os territórios conquistados foram subjugados pelo mercado limitado e protecionista de um único país. Hoje, a pilhagem está globalizada, como o proletariado, agora de todos os países do mundo.

Tese 3. Três contradições ativas atuam nessa hegemonia. 1) A dimensão oligárquica extremamente desenvolvida da propriedade do Capital deixa cada vez menos espaço para a integração nesta oligarquia de novos proprietários. Daí a possibilidade de esclerose autoritária. 2) A integração dos circuitos financeiros e comerciais num único mercado mundial opõe-se à manutenção, ao nível do policiamento das massas, de figuras nacionais que inevitavelmente entram em rivalidade. Daí a possibilidade de uma guerra planetária para o surgimento de um Estado claramente hegemônico, inclusive no mercado mundial. 3) Hoje há dúvida de que o Capital, em sua atual linha de desenvolvimento, possa colocar para trabalhar a força de trabalho de toda a população mundial. Daí o risco de uma massa de pessoas totalmente destituídas e, portanto, politicamente perigosas, se desenvolva em escala global.

Comentário.

Sobre o ponto 1) Estamos – e a concentração continua – em um ponto onde 264 pessoas têm o equivalente a três bilhões de outras. Bem aqui na França: 10% da população possui bem mais de 50% da riqueza total. Essas são concentrações de propriedade sem paralelo na história da humanidade. E elas não terminaram, longe disso. Elas possuem um lado monstruoso, que obviamente não lhes garante uma duração eterna, mas que é inerente ao desenvolvimento capitalista e é mesmo o seu principal motor.

Sobre o ponto 2) A hegemonia dos Estados Unidos está cada vez mais prejudicada. China e Índia sozinhas têm 40% da massa trabalhadora mundial. O que aponta para uma desindustrialização devastadora no Ocidente. Na verdade, os trabalhadores americanos agora representam apenas 7% da massa trabalhadora total, e a Europa ainda menos. Como resultado desses contrastes, a ordem mundial, ainda dominada por razões militares e financeiras pelos Estados Unidos, vê o surgimento de rivais que querem sua fatia de soberania no mercado mundial. Os confrontos já começaram, no Oriente Médio, África e Mar da China. Eles vão continuar. A guerra é o horizonte desta situação, como demonstraram as matanças do século anterior.

Sobre o ponto 3) Já hoje existem provavelmente entre dois e três bilhões de pessoas que não são nem proprietárias, nem camponeses sem terra, nem assalariadas pertencentes a uma pequena burguesia, nem operários. Elas percorrem o mundo em busca de um lugar para morar e constituem um proletariado nômade que, se politizado, se tornaria uma ameaça considerável à ordem estabelecida.

Tese 4. Nos últimos dez anos, os movimentos de revolta contra este ou aquele aspecto da hegemonia do capitalismo liberal foram numerosos e, às vezes, vigorosos. Mas eles também foram assimilados sem dificuldade significativa.

Comentário. Esses movimentos eram de quatro tipos.

  1. Motins breves e localizados. Tem havido fortes motins selvagens nos subúrbios das grandes cidades, por exemplo, em Londres ou em Paris, geralmente após o assassinato de jovens pela polícia. Esses distúrbios não receberam amplo apoio da assustada opinião pública e foram reprimidos impiedosamente, ou foram seguidos por grandes mobilizações “humanitárias”, focadas na violência policial e amplamente despolitizadas.
  1. Levantes duradouros, mas sem criação organizativa. Outros movimentos, especialmente no mundo árabe, foram socialmente muito mais amplos e duraram longas semanas. Eles assumiram a forma canônica de ocupações de lugares. Eles geralmente foram reduzidos pela tentação eleitoral. O caso mais típico é o do Egito: movimento em grande escala, aparente sucesso da palavra de ordem negativa e unificadora de “fora Mubarak” – Mubarak sai do poder e é até preso -, longa impossibilidade de a polícia retomar o controle do lugar, unidade explícita de cristãos coptas e muçulmanos, aparente neutralidade do exército … Mas é claro, nas eleições, é o partido presente entre as massas populares – e pouco presente no movimento – que ganha, nomeadamente a Irmandade Muçulmana. A parte mais ativa do movimento se opõe a este novo governo, e assim abre caminho para uma intervenção do exército, que retorna ao poder um general, Al-Sisi. Este suprime impiedosamente toda a oposição, primeiro a Irmandade Muçulmana, depois os jovens revolucionários, e de fato restabelece o antigo regime, em uma forma um tanto pior do que antes. A natureza circular deste episódio é particularmente impressionante.
  1. Movimentos que dão origem à criação de uma nova força política. Em alguns casos, o movimento conseguiu criar as condições para o surgimento de uma nova força política, diferente das habituadas ao parlamentarismo. Este é o caso da Grécia, onde os distúrbios foram particularmente numerosos e violentos, com o Syriza, e na Espanha com o Podemos. Essas forças se dissolveram no consenso parlamentar. Na Grécia, o novo poder, com Tsipras, cedeu sem resistência perceptível às injunções da Comissão Europeia e está relançando o país no caminho da austeridade sem fim. Na Espanha, Podemos também se atolou no jogo das combinações, sejam majoritárias ou oposicionais. Nenhum traço de verdadeira política poderia emergir dessas criações organizativas.
  1. Movimentos de duração razoavelmente longa, mas sem efeitos positivos perceptíveis. Em alguns casos, além de alguns episódios táticos clássicos (como a “ultrapassagem” de manifestações clássicas por grupos equipados para enfrentar a polícia por alguns minutos), a falta de inovação política fez com que, em escala global, a figura da reação conservadora fosse aquela que se renovasse. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos, onde o efeito contrário dominante de “Ocuppy Wall Street” é a chegada ao poder de Trump, ou mesmo da França, onde o saldo de “Nuit debout” é Macron.

Tese 5. A causa desta impotência é, nestes movimentos da última década, a ausência de política, mesmo hostilidade à política, em várias formas, e reconhecível por muitos sintomas.

Comentário. Notemos, em particular, como sinais de uma subjetividade política extremamente débil:

1. Palavras de ordem unificadoras exclusivamente negativas: “contra” isto ou aquilo,”Fora Mubarak”, “Abaixo à oligarquia dos 1%”, “Recusar a lei do trabalho”,“Ninguém gosta da polícia ”, etc.

  1. A ausência de ampla temporalidade: tanto no que se refere ao conhecimento do passado, praticamente ausente dos movimentos exceto por algumas caricaturas, e para os quais não se propõe qualquer avaliação inventiva, como na projeção para o futuro, limitada a considerações abstratas sobre libertação ou emancipação.
  1. Um léxico fortemente emprestado do adversário. Este é principalmente o caso de uma categoria particularmente ambígua, como “democracia”, ou mesmo o uso da categoria de “vida”, “nossas vidas”, que é apenas um investimento ineficaz de categorias existenciais na ação coletiva.
  1. Um culto cego da “novidade” e um desprezo pelas verdades estabelecidas. Este ponto decorre diretamente do culto do mercado à “novidade” do produto e da crença constante de que estamos “começando” algo que já aconteceu repetidas vezes. Ao mesmo tempo, proíbe tirar lições do passado, compreender o mecanismo das repetições estruturais e não cair na armadilha das “modernidades” artificiais.
  1. Uma escala de tempo absurda. Esta escala, modelada no circuito marxista “dinheiro, mercadoria, moeda”, supõe que trataremos, ou mesmo resolveremos, em algumas semanas de “movimento”, problemas como o da propriedade privada, ou da concentração patológica de riquezas, que estão pendentes há milênios. A recusa em considerar que boa parte da modernidade capitalista só se tece a partir de uma versão moderna da tríade implantada há alguns milhares de anos, a partir da “revolução” neolítica, a saber: Família, Propriedade Privada, Estado. E que, portanto, a lógica comunista, quanto aos problemas centrais que a constituem, se situa na escala dos séculos.
  1. Um relacionamento fraco com o Estado. O que está em questão aqui é uma subestimação constante dos recursos do Estado, em comparação com os disponíveis para um determinado “movimento”, tanto em termos de força armada como de capacidade de corrupção. Em particular, a eficácia da corrupção “democrática”, simbolizada pelo parlamentarismo eleitoral, é subestimada, assim como a extensão do domínio ideológico dessa corrupção sobre a esmagadora maioria da população.
  1. Uma combinação de meios díspares, sem qualquer balanço de seu passado distante ou próximo. Não se chega a uma conclusão que possa ser amplamente popularizada a partir dos métodos implantados desde pelo menos os “anos vermelhos” (1965-1975), ou mesmo por dois séculos, tais como: as ocupações de fábricas, greves sindicais, as manifestações legais, a constituição de grupos cujo objetivo é possibilitar o confronto local com a polícia, invasão de edifícios, o sequestro de patrões nas fábricas… Nenhuma conclusão tampouco de sua simetria estática: por exemplo, em praças invadidas por multidões, longas e repetitivas assembléias hiperdemocráticas, onde todos são convocados, quaisquer que sejam suas idéias e recursos de linguagem, a falar por três minutos, e cuja aposta é, em última instância, apenas planejar a repetição deste exercício.

Tese 6. Devemos lembrar as experiências mais importantes do passado próximo e meditar sobre seus fracassos.

Comentário. Dos anos vermelhos até hoje.

O comentário à tese 5 sem dúvida parece bastante polêmico, até mesmo pessimista e deprimente, especialmente para os jovens que podem legitimamente animar, por algum tempo, todas as formas de ação das quais peço um reexame crítico. Compreenderemos essas críticas se lembrarmos que pessoalmente, em maio de 68 e suas consequências, eu conhecia e participava com entusiasmo de coisas da mesma ordem, e que fui capaz de segui-las por tempo suficiente para medir os pontos fracos. Tenho então a sensação de que os movimentos recentes estão se esgotando em repetir, sob o selo dos novos e conhecidos episódios do que se pode chamar de “lei” do movimento de maio de 68, seja esta lei resultado da esquerda clássica ou da anarquista de ultraesquerda, que ao seu modo já falava de “formas de vida”, e cujos militantes chamávamos de “anarco-desejantes”.

Na verdade, houve quatro movimentos distintos em 68:

  1. Uma revolta da juventude estudantil.
  1. Uma revolta de jovens trabalhadores em grandes fábricas.
  1. Uma greve sindical geral para tentar controlar as duas revoltas anteriores.
  1. O aparecimento, muitas vezes sob o nome de “maoísmo”, e com muitas organizações rivais, de uma tentativa de uma nova política, cujo princípio era traçar uma diagonal unificadora entre as duas primeiras revoltas, dotando-as de uma força ideológica e combativa que parecia poder garantir-lhes um verdadeiro futuro político. Na verdade, durou pelo menos dez anos. O fato de isso não ter se estabilizado em escala histórica, o que eu admito prontamente, não deve resultar na repetição do que ali aconteceu, sem mesmo saber que está se repetindo.

Lembremo-nos simplesmente que nas eleições de junho de 1968 se estabeleceu uma maioria tão reacionária que poderíamos dizer que reencontramos a maioria “horizonte azul” do final da guerra de 14-18. O resultado final das eleições de maio-junho de 2017, com a esmagadora vitória de Macron, um servidor do grande capital globalizado, deve nos fazer pensar o que há de repetitivo em tudo isso.

Tese 7. Uma política interna de um movimento deve ter cinco características, concernentes às palavras de ordem, estratégia, vocabulário, à existência de um princípio e uma visão tática clara.

Comentário.

  1. As principais palavras de ordem devem ser afirmativas. Isto mesmo à custa da divisão interna, assim que formos além da unidade negativa.
  1. As palavras de ordem devem ser estrategicamente justificadas. Isso significa: alimentadas pelo conhecimento das etapas anteriores do problema colocado em pauta pelo movimento.
  1. O léxico usado deve ser controlado e consistente. Por exemplo: “comunismo” agora é incompatível com “democracia”; “igualdade” é incompatível com “liberdade”; qualquer uso positivo de um termo de identidade, como “francês” ou “comunidade internacional” ou “islâmico” ou “Europa”, deve ser proscrito, bem como palavras de natureza psicológica, como “desejo”, “vida” , “pessoa”, bem como qualquer termo vinculado às disposições estatais estabelecidas, como “cidadão”, “eleitor”, etc.
  1. Um princípio, o que chamo de Ideia, deve ser constantemente confrontado com a situação, pois carrega localmente uma possibilidade sistêmica não capitalista.

Devemos citar aqui Marx, definindo o militante singular em seu modo de presença nos movimentos: “Os comunistas apóiam em todos os países qualquer movimento revolucionário contra a ordem social e política existente. Em todos esses movimentos, eles colocam a questão da propriedade – em qualquer grau de evolução que possa ter acontecido – como a questão fundamental do movimento.”

  1. Taticamente, deve-se sempre aproximar o quanto for possível o movimento de um corpo capaz de se unir para discutir efetivamente sua própria perspectiva, a partir da qual ilumina e julga a situação. O militante político, como diz Marx, faz parte do movimento geral, dele não se separa. Mas, distingue-se, apenas, pela capacidade de registrar o movimento de um ponto de vista geral, de prever a partir daí qual deve ser o próximo passo, mas também de não fazer concessões a respeito destes dois pontos, sob o pretexto de unidade, para concepções conservadoras que podem perfeitamente dominar, subjetivamente, até mesmo um movimento importante. A experiência das revoluções mostra que os momentos políticos cruciais se encontram na forma mais próxima de agrupamento, qual seja, a da reunião, onde a decisão a ser tomada é informada pelos oradores, que também podem colidir.

Tese 8. A política é carregada de uma duração específica do espírito dos movimentos que é proporcional à temporalidade dos Estados, e não um simples episódio negativo de sua dominação. Sua definição geral é a organização entre os diferentes componentes do povo e, na maior escala possível, de uma discussão em torno das palavras de ordem que devem ser tanto da propaganda permanente como dos movimentos futuros. A política fornece o quadro geral para essas discussões: é a afirmação de que existem hoje duas formas de organização geral da humanidade, a forma capitalista e a forma comunista. A primeiro é apenas a forma contemporânea do que existia desde a Revolução Neolítica, há alguns milhares de anos atrás. A segunda propõe uma segunda revolução global e sistêmica no futuro da humanidade. Ela se propõe a sair da Idade Neolítica.

Comentário. Nesse sentido, a política consiste em localizar, por meio de amplas discussões, a palavra de ordem que cristaliza na situação a existência desses dois caminhos. Esta palavra de ordem, já que é local, só pode vir da experiência das massas envolvidas. É aqui que a política aprende o que pode tornar a luta efetiva localmente, quaisquer que sejam os meios, pelo caminho comunista. Deste ponto de vista, a mola da política não é imediatamente o confronto antagônico, mas a investigação contínua, na situação, a respeito das ideias, palavras de ordem e iniciativas capazes de dar vida localmente à existência de duas vias, uma das quais é a conservação do que existe, a outra a sua completa transformação segundo princípios igualitários os quais a nova palavra de ordem cristalizará. O nome desta atividade é: “trabalho de massa”. A essência da política, fora do movimento, é o trabalho de massa.

Tese 9. A política é feita com pessoas de todos os lugares. Não pode aceitar submeter-se às várias formas de segregação social organizadas pelo capitalismo.

Comentário. Isso significa, especialmente para a juventude intelectual, que sempre desempenhou um papel crucial no nascimento de novas políticas, a necessidade de um trajeto contínuo em direção a outros estratos sociais, particularmente aos mais pauperizados, onde o impacto do capitalismo é mais devastador. Nas condições atuais, deve ser dada prioridade, tanto nos nossos países como à escala global, ao vasto proletariado nômade, que, como os camponeses de Auvergne ou bretões no passado, chega em ondas inteiras, à custa dos piores riscos, para tentar sobreviver como trabalhador aqui, já que não pode mais fazê-lo como camponês sem terra ali. O método, neste caso como em todos os outros, é a investigação paciente nos lugares: mercados, cidades, lares, fábricas … A organização de reuniões, mesmo muito limitada no início, a fixação de palavras de ordem, a sua difusão, o alargamento da base de trabalho, o confronto com as várias forças conservadoras locais, etc. É um trabalho emocionante, assim que você sabe que a teimosia ativa é a chave. Um passo importante é organizar escolas para disseminar o conhecimento da história mundial da luta entre as duas vias, seus sucessos e seus atuais impasses.

O que foi feito pelas organizações que surgiram com esse propósito depois de maio de 68 pode e deve ser refeito. Precisamos reconstruir a diagonal política de que falei, que hoje permanece uma diagonal entre o movimento da juventude, alguns intelectuais e o proletariado nômade. Já estamos trabalhando nisso, aqui e ali. Esta é a única tarefa propriamente política do momento.

O que mudou é a desindustrialização dos subúrbios das grandes cidades. Aí reside a reserva dos trabalhadores da extrema-direita. Devemos lutar contra isto nestes locais, explicando porque e como sacrificamos duas gerações de trabalhadores em poucos anos, e investigando simultaneamente, tanto quanto possível, o processo oposto, ou seja, a industrialização de violência extrema na Ásia. Trabalhar com trabalhadores do passado e de agora é algo imediatamente internacional, mesmo aqui. Nesse sentido, seria extremamente interessante produzir e distribuir um jornal dos trabalhadores do mundo.

Tese 10. Não existe mais nenhuma organização política real. A tarefa é, portanto, garantir os meios para reconstruí-la.

Comentário. Uma organização é responsável por conduzir as investigações, por sintetizar o trabalho de massa e as palavras de ordem locais que delas resultam, de forma a incluí-las em um ponto de vista global, para enriquecer os movimentos e garantir um controle de longo prazo de suas consequências. Uma organização é julgada não por sua forma e seus procedimentos, como alguém julga um Estado, mas por sua capacidade controlável de fazer o que está encarregada. Podemos usar aqui a fórmula de Mao: organização é o que podemos dizer que “devolve às massas de forma precisa, o que delas recebeu de forma ainda confusa”.

Tese 11. A forma clássica do Partido está condenada hoje porque se definiu, não por sua capacidade de fazer o que diz a tese 10, ou seja, o trabalho de massa, mas por sua pretensão de “representar” a classe operária ou o proletariado.

Comentário. Devemos romper com a lógica da representação em todas as suas formas.

A organização política deve ter uma definição instrumental e não representativa. Além disso, quem diz “representação” diz “identidade do que é representado”. No entanto, devemos excluir as identidades do campo político.

Tese 12. A relação com o Estado não é, como acabamos de ver, o que define a política.

Nesse sentido, a política se dá “à distância” do Estado. Porém, estrategicamente, o Estado deve ser quebrado, porque é o guardião universal da via capitalista, especialmente porque é a polícia do direito à propriedade privada dos meios de produção e troca. Como disseram os revolucionários chineses durante a Revolução Cultural, devemos “romper com a lei burguesa”. Portanto, a ação política em relação ao Estado é uma mistura de distância e negatividade. O objetivo é, na realidade, que o Estado seja gradualmente cercado por opiniões hostis e lugares políticos que se tornaram estranhos a ele.

Comentário. O registro histórico desse caso é muito complexo. Por exemplo, a Revolução Russa de 1917 certamente combinou uma ampla hostilidade ao regime czarista, inclusive no campesinato por causa da guerra, uma preparação ideológica intensa e de longa data, sobretudo nas camadas intelectuais, revoltas operárias que conduzem a verdadeiras organizações de massas, chamadas sovietes, revoltas militares e a existência, com os bolcheviques, de uma organização sólida e diversificada, capaz de sustentar reuniões com oradores de destaque por sua convicção e seu talento didático. Tudo isso foi amarrado em insurgências vitoriosas e uma terrível guerra civil finalmente vencida pelo campo revolucionário, apesar da maciça intervenção estrangeira. A revolução chinesa seguiu um curso totalmente diferente: uma longa marcha no campo, a formação de assembleias populares, um verdadeiro Exército Vermelho, a ocupação duradoura de uma área remota no norte do país, onde a reforma agrária e produtiva pudesse ser vivenciada ao mesmo tempo que se consolidava o exército, todo esse processo durante cerca de trinta anos. Além disso, no lugar do terror stalinista da década de 1930, houve um levante de massas na China, estudantes e trabalhadores, contra a aristocracia do Partido Comunista. Esse movimento sem precedentes, denominado Revolução Cultural Proletária, é para nós o exemplo mais recente de uma política de confronto direto com as figuras do poder do Estado. Nada disso pode ser transposto para a nossa situação. Mas uma lição percorre toda esta aventura: o Estado não pode de forma alguma, seja qual for a sua forma, representar ou definir a política de emancipação.

A dialética completa de toda verdadeira política tem quatro termos:

  1. A ideia estratégica da luta entre as duas vias, a comunista e a capitalista. Isso é o que Mao chamou de “preparação ideológica da opinião”, sem a qual, disse ele, a política revolucionária é impossível.
  1. Investimento local desta Ideia ou princípio pela organização, na forma de trabalho de massa. A circulação descentralizada de tudo que emerge deste trabalho em termos de palavras de ordens e experiências práticas vitoriosas.
  1. Movimentos populares, na forma de eventos históricos, nos quais a organização política trabalha tanto para sua unidade negativa quanto para o refinamento de sua determinação afirmativa.
  1. O Estado, cujo poder deve ser quebrado, por confronto ou cerco, se for dos representantes autorizados do capitalismo. E se veio da via comunista, definhar, se for necessário pelos meios revolucionários esboçados em desordem fatal pela Revolução Cultural chinesa.

Inventar na situação o arranjo contemporâneo desses quatro termos é o problema, ao mesmo tempo prático e teórico, de nossa conjuntura.

Tese 13. A situação do capitalismo contemporâneo envolve uma espécie de separação entre a globalização do mercado e o caráter ainda amplamente nacional do controle policial e militar das populações. Em outras palavras: há uma lacuna entre a disposição econômica das coisas, que é global, e sua necessária proteção estatal, que permanece nacional. O segundo aspecto ressuscita rivalidades imperialistas, mas em outras formas. Apesar dessa mudança de forma, o risco de guerra aumenta. Além disso, a guerra já está presente em grandes partes do mundo. A política por vir também terá a tarefa, se puder, de prevenir a eclosão de uma guerra total, que desta vez pode colocar em risco a existência da humanidade. Também podemos dizer que a escolha histórica é: ou a humanidade rompe com o Neolítico contemporâneo que é o capitalismo e abre sua fase comunista em escala global; ou então permanece em sua fase Neolítica, e estará fortemente exposta a perecer em uma guerra atômica.

Comentário. Hoje, as grandes potências, por um lado, procuram colaborar para a estabilidade dos negócios a nível global, nomeadamente lutando contra o proteccionismo, mas por outro lado lutam silenciosamente pela sua hegemonia. O resultado é o fim das práticas diretamente coloniais, como as da França ou da Inglaterra no século 19, ou seja, a ocupação militar e administrativa de países inteiros. A nova prática, proponho chamá-la de zoneamento: em áreas inteiras (Iraque, Síria, Líbia, Afeganistão, Nigéria, Mali, África Central, Congo …), os Estados são minados, destruídos e a área torna-se uma zona de saque, aberta a bandos armados e também a todos os predadores capitalistas do planeta. Ou então o Estado é formado por empresários que têm mil vínculos com as grandes companhias do mercado mundial. As rivalidades estão entrelaçadas em vastos territórios, com relações de poder em constante mudança. Sob essas condições, um incidente militar não controlado seria suficiente para nos trazer repentinamente à beira da guerra. Os blocos já estão traçados: Estados Unidos e sua camarilha “ocidental-japonesa” de um lado, China e Rússia do outro, armas atômicas por toda parte. Só podemos nos lembrar da frase de Lênin: “Ou a revolução impedirá a guerra, ou a guerra provocará a revolução.”

Poder-se-ia, assim, definir a ambição máxima do trabalho político por vir: que pela primeira vez na história, é a primeira hipótese – a revolução impedirá a guerra – que se realiza, e não a segunda – a guerra causará a revolução . Na verdade, é esta segunda hipótese que se materializou na Rússia no contexto da Primeira Guerra Mundial e na China no contexto da Segunda Guerra Mundial. Mas a que custo! E com que consequências a longo prazo!

Com esperança, agiremos. Qualquer pessoa, em qualquer lugar, pode começar a fazer política de verdade, como é entendido neste texto. E falar, por sua vez, ao seu redor, sobre o que foi feito. É assim que tudo começa.

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