(Cyber)althusserianismo: a corrente subterrânea do pensamento de Mark Fisher

Por João Pedro de Souza Barros Santoro Luques.

Quando se pensa nas influências teóricas de Mark Fisher, alguns nomes vêm imediatamente à cabeça: Deleuze, Zizek, Lacan, Nick Land, etc. Neste breve artigo, pretendemos sustentar que existe um outro nome que merece ser adicionado à essa lista. Um nome bem menos citado por Fisher, mas que, além de influenciar fortemente suas principais formulações, também joga uma nova luz sobre elas. Esse nome é Louis Althusser.

Mais especificamente, pretendemos demonstrar as múltiplas influências (intencionais ou não, explícitas ou sutis) althusserianas sobre o conceito de realismo capitalista, tal como sobre as considerações de Fisher sobre “hauntology” e sobre subjetividade/sujeito.


“O punk e o pós-punk […] suspeitavam profundamente do triunvirato dionisíaco (lazer, prazer e intoxicação). De tal forma que a atitude que eles demandavam era a de um hiperracionalismo vigilante, uma espécie de althusserianismo popularizado para o qual qualquer interioridade era exposta como uma falsidade ideológica, além das emoções não serem entendidas como “expressões reais de uma subjetividade autentica”, mas sim como circuitos reativos estruturalmente projetados (FISHER, 2018, p. 428, tradução nossa)”.

Realismo capitalista: ritualização ideológica.

“[…] [A] percepção difundida de que não apenas o capitalismo é o único sistema político e econômico viável, mas também o fato de que agora é impossível até mesmo imaginar uma alternativa coerente” (FISHER, 2009, p. 9, tradução nossa). É assim que Mark Fisher nos apresenta o conceito de realismo capitalista em seu famoso livro de mesmo nome. Conceito utilizado para apreender um mundo no qual a idéia de Thatcher (“Não há alternativa”) se tornou senso comum, um mundo regido por uma espécie de consenso para o qual o único modo de produção realmente viável é o capitalismo, para o qual até podemos dar a ele uma face mais humana, mas que qualquer alternativa real está interditada de ser tentada ou, sequer, pensada. O capitalismo aparece como um dado natural a ser aceito ou, no máximo, melhorado.

Mas notemos que em Realismo Capitalista, Fisher não debate tão explicitamente como tal ideologia se sustenta e se difunde, como ela mantém e reproduz tamanha dominância. Esse tema será mais claramente abordado em um artigo de 2011 denominado The Privatisation of Stress:

Realismo Capitalista se refere à crença difundida de que não há alternativa ao capitalismo – porém, além de residir na cabeça dos indivíduos, essa lógica também é externalizada nas práticas institucionais dos locais de trabalho e na mídia, de tal maneira que ‘crença’ talvez seja um termo equivocado. Em suas discussões sobre ideologia, Althusser cita a doutrina de Pascal: “Ajoelhai-vos e mexei os lábios como se fosseis rezar, e serei crentes”: crenças psicológicas derivam de “seguir os gestos” de consentimento às linguagens e comportamentos oficiais. Isso significa que, não importa o quanto indivíduos ou grupos possam desdenhar ou ironizar a linguagem da competição, o empreendedorismo e o consumismo foram instalados nas instituições do Reino Unido desde os anos 80, nosso consentimento ritualístico difundido com essa terminologia têm servido para naturalizar a dominância do capital e ajudado a neutralizar qualquer oposição à ela” (FISHER, 2018, p. 671-672, tradução nossa).

Com esse resgate explícito de algumas teses escandalosamente materialistas de Althusser (“[…] idéias são atos materiais inseridos em práticas materiais, reguladas por rituais materiais que são também definidos pelo aparelho ideológico material” (ALTHUSSER, 1980, p. 88-89)), a reflexão abre o conceito de realismo capitalista para desdobramentos bastante interessantes. Ele passa a não mais ser apenas uma ideia presente em nossas cabeças que bloqueia a imaginação. Agora, nos é claro que ele (tal como a fé católica que se desenvolve com as práticas de ir à missa, se confessar, pagar promessas, etc.) é produzido a partir de uma série de práticas e rituais materiais que, por imposição da dominação neoliberal, reproduzimos cotidianamente.

E, para além destes ganhos analíticos já assinalados, tal adendo ao conceito de realismo capitalista gera também efeitos extremamente frutíferos para a compreensão de outros aspectos da obra fisheriana. Ele nos abre, por exemplo, interessantes caminhos para compreender a famosa (e insistente) crítica de Fisher ao crescimento da burocracia que ocorre com o advento do neoliberalismo…

Qualquer um que já passou pelo sistema universitário brasileiro pós anos 90 tende a uma identificação quase imediata com a descrição de Fisher da burocratização neoliberal que domina o sistema escolar britânico. Formulários intermináveis, uma demanda superegóica de auto-controle via um número inacabável de relatórios, uma constante injunção para “se atualizar”. Uma burocracia que acaba ocupando mais tempo do que o próprio trabalho, que acaba por quase substituir o trabalho. “Inevitavelmente, um curto-circuito ocorre e, ao invés de buscar os objetivos do trabalho em si, o trabalho se volta à geração de representações” (FISHER, 2009, p. 50, tradução nossa). O que passa a imperar é a lógica das relações públicas, pouco importa se de fato estamos menos eficientes com toda essa burocracia, o objetivo é (através de intermináveis rituais burocráticos) sustentar a ilusão de que somos produtivos, é continuar gerando uma massa irracional de dados para um “grande outro” continuar acreditando que estamos fazendo algo.

Juntamente com a questão da saúde mental, essa nova-burocracia neoliberal é um dos principais alvos das críticas de Mark Fisher em Realismo Capitalista. Isso, basicamente, por duas razões: porque é um problema experienciado por ele em sua área de atuação profissional (a educação) e porque é um dos claros indicativos do fracasso do neoliberalismo em entregar o que promete em seu discurso. Longe de superar o que seus ideólogos proclamavam ser um dos grandes problemas do socialismo, “uma burocracia de cima para baixo que supostamente levava à esclerose institucional e insuficiência econômica” (FISHER, 2009, p. 28, tradução nossa), o que ocorre é, na verdade, uma imensa proliferação da burocracia sob a forma de “metas”, “objetivos”, “feedbacks” etc.

Agora, a burocracia permeia todos os aspectos da sociabilidade capitalista e, justamente por encontrar áreas que, pela sua própria natureza, resistem à quantificação e ao controle burocrático, ela é forçada a erguer novas camadas de burocracia e gerenciamento que, em uma espécie de deslocamento freudiano, passam a servir como um parâmetro de quantificação que ocupa o lugar da própria atividade que se desejaria quantificar. Para voltarmos ao exemplo da educação superior brasileira: é o caso do problema de, por não existir uma maneira de quantificar a produção e a relevância científica de um pesquisador, sermos forçados a operar esse deslocamento e investir nossa energias não na ciência, mas num substituto quantificável (produção de artigos em revistas de impacto, citações, etc.).

Porém, em Realismo Capitalista, Mark Fisher, apesar de dar importantes indicações, não reflete com detalhes o porquê disso tudo, o porquê adotamos uma organização tão claramente improdutiva, ou melhor, anti-produtiva. Em um texto de 2012 (not failing better, but fighting to win), ele coloca claramente o paradoxo: “Se você é um professor sentado em sua casa preenchendo pilhas de formulários cheios de retórica semi-empreendedora, você não dará uma aula melhor no dia seguinte. Na verdade, se você apenas relaxasse e assistisse TV, você provavelmente estaria melhor preparado nesse aspecto (FISHER, 2018, p. 766, tradução nossa). E Fisher dá duas explicações complementares para esse aparente paradoxo: 1) isso é um mecanismo disciplinar, uma espécie de controle através da ansiedade e 2) isso é uma ritualização própria da ideologia, “[…] um ritual ideológico exatamente do tipo que Althusser descreveu” (FISHER, 2018, p. 767, tradução nossa).

 Essa segunda explicação nos parece fundamental para politizar a burocracia neoliberal, para entender a verdadeira motivação política por trás desses intermináveis rituais burocráticos. Talvez esse imperativo de “publicar ou perecer”, essa insaciável demanda para “se atualizar”, para realizar cursos intermináveis (sempre devidamente registrados), para autocontrolar seu desempenho com relatórios, tabelas e gráficos sobre sua própria produtividade, não seja um efeito do neoliberalismo se difundindo pelo sistema educacional, mas também um importante elemento de constituição da própria subjetividade neoliberal. Como talvez dissesse Pascal se estivesse vivo “publicai e atualizai vosso currículo como se fosseis pesquisador, e sereis acadêmico”.

Obstáculos políticos e ideológicos.

 No período no qual suas teses alcançaram fama mundial (1965), Althusser fazia largos incursos à filosofia de Bachelard. É famosa sua tese de que na obra de Marx haveria uma ruptura epistemológica que marca a superação de uma problemática feuerbachiana e a fundação da ciência da história (materialismo histórico). É sabido também que, ao sustentar tais polêmicas, Althusser, na verdade, adota a tese de Bachelard de que toda ciência se constitui contra uma espécie de ideologia pré-científica. “De fato, se conhece contra uma consciência anterior, destruindo consciências mal feitas […]” (BACHELARD, 1947, p. 14, tradução nossa). Consciência anterior essa que funciona como um obstáculo-epistemológico, ou seja, como algo que não apenas ocupa passivamente o lugar da ciência, mas que bloqueia seu aparecimento (e, posteriormente, seu desenvolvimento), que direciona os esforços de pesquisa para questões equivocadas, para becos sem saída e curto-circuitos.

 Entretanto, as posições de Althusser se modificam com o passar dos anos e são acrescentadas importantes retificações à essa discussão inicial, gostaríamos aqui de destacar duas:

1) como inicialmente fora formulada, a tese da ruptura epistemológica parece depender de uma dinâmica, grosso modo, imanente aos domínios da ciência e da ideologia, não dependendo assim de determinantes políticos, econômicos, etc. Já nos anos 70, tal perspectiva é reformulada e Althusser passa a fazer referências diretas a determinantes políticos e sociais. Vide, por exemplo, seu ensaio de 1972 (Elementos de autocrítica) no qual ele afirma que é justo falar em ruptura epistemológica, mas com a condição de que pensemos “[…] os sinais e efeitos da ‘ruptura’ como o fenômeno teórico […] que refere-se a condições sociais, políticas, ideológicas e filosóficas dessa irrupção” (ALTHUSSER, 1998, p. 172, tradução nossa, grifo nosso).

2) Apesar disso já aparecer em alguns seus primeiros escritos dos ano 60, na próxima década, Althusser passará a explicitar com mais clareza o fato de que não existem apenas obstáculos epistemológicos, sendo também possível (e produtivo) pensarmos obstáculos políticos, ideológicos, etc., tal como os efeitos políticos e ideológicos de um obstáculo epistemológico. Voltemos novamente a seu escrito de 1972: “[…] a partir da Ideologia Alemã […] toda uma outra ruptura, não apenas teórica, mas política e ideológica, e de toda uma outra envergadura, está em vias de se anunciar e de se consumar” ALTHUSSER, 1998, p. 174, tradução nossa). Ora, falar de ruptura política e ideológica é também (mesmo que implicitamente) falar de obstáculos políticos e ideológicos.

Pensar em obstáculos políticos é uma interessante expansão dos propósitos iniciais da idéia de bachelardiana. Asad Haider (2019), por exemplo, (na nossa leitura) desenvolve essas considerações althusserianas para pensar como algumas ideologias e práticas políticas atuam como obstáculo para a emergência de uma política anti-racista revolucionária. Vide por exemplo as seguintes passagens de seu importante livro Armadilha da Identidade: “Com a ideologia de unidade racial funcionando claramente como bloqueio ao desenvolvimento de uma política de massa antagônica […]” (HAIDER, 2019, p. 64). Ou ainda: “O que nos falta é um programa, estratégia e táticas. Se deixarmos de lado o refúgio da identidade, essa discussão poderá começar” (HAIDER, 2019, p. 150). Ou seja, na nossa perspectiva, o que Haider faz é uma aplicação frutífera do conceito de obstáculo ao domínio da política, aplicação que nos mostra que, tal como acontece com a ciência, um obstáculo não só ocupa um lugar vazio, mas também impede que outras coisas lá emerjam, outras coisas que poderiam superá-lo:

Em outras palavras, na ausência de organização de massa, a ideologia racial corre para preencher o vácuo. […]

Quando não há outro esforço organizativo para combater o racismo, qualquer questionamento da concepção de identidade [para Haider, algo fundamental para uma política revolucionária] pode parecer uma tentativa de negar a validade da luta antirracista. Na verdade, mais do que isso. Questionar a própria ideologia racial pode parecer uma negação da capacidade de agir dos oprimidos” (HAIDER, 2019, p. 92-93).

Para Haider o obstáculo político que é a ‘política identitária’ não é apenas um substituto à política revolucionária, mas algo que efetivamente bloqueia seu aparecimento.

Mas se essa expansão do conceito de obstáculo ao domínio da política se dá sem tantos problemas, falar de obstáculos ideológicos é um tanto mais complicado. Afinal, um obstáculo não é formado justamente de ideologia? Não é a própria ideologia que impede desenvolvimentos científicos e políticos? Como pode então haver obstáculos ideológicos? Para responder essas questões, pode ser útil verificarmos o que Althusser entende por arte. Por um lado, para Althusser arte não é mesma coisa que ideologia, são coisas que não se identificam completamente. Porém, ela possui “[…] uma relação bastante particular e específica com a ideologia” (ALTHUSSER, 2001, p. 221, tradução nossa). Mais especificamente, a arte, para ele, é um distanciamento interno, uma diferenciação interna da ideologia que nos permite com que percebamos essa mesma ideologia:

O que a arte nos permite ver, e portanto nos dá na forma do ‘olhar’, da ‘percepção’, do ‘sentimento’, […] é a ideologia a partir da qual ela nasce, na qual ela se banha, da qual ela se separa enquanto arte e à qual ela alude.
[…] Balzac e Solzhenitsyn nos dão uma visão da ideologia que seus trabalhos aludem e constantemente se alimentam, uma visão que pressupõe um recuo, um distanciamento interno da própria ideologia a partir da qual seus trabalhos emergem (ALTHUSSER, 2001, p. 222-223, tradução nossa).

Assim, não nos parece nenhum absurdo supor que, quando Althusser dá a entender a existência de obstáculos ideológicos, ele se refere a obstáculos à produção artística, a obstáculos que impedem este distanciamento interno à ideologia que dá origem à arte. Nesse sentido, se essa interpretação está correta, Mark Fisher tem muito a contribuir para o desenvolvimento deste conceito althusseriano. Ou melhor, uma leitura althusseriana tem muito a contribuir para o entendimento de algumas formulações de Fisher.

No seu livro Ghosts of my Life, por exemplo, Fisher aponta claramente para a existência do que podemos chamar de um obstáculo para a produção artística (mais especificamente, para o campo da cultura popular), para o fato de que vivemos em uma época em que pouca coisa nova emerge neste domínio. Vide o interessante experimento mental que ele propõe sobre a questão da produção musical:

Imagine qualquer álbum lançado nos últimos anos sendo levado de volta para, digamos, 1995, e tocado na rádio. É difícil imaginar qualquer choque por parte dos ouvintes. Na verdade, o que os chocaria é o fato da música poder ser tão facilmente reconhecível: a música realmente mudará tão pouco nos próximos 17 anos?  Compare isso com a rápida mudança de estilos entre os anos 60 e 90: toque um álbum de jungle music de 1993 para alguém de 1989 e ele soaria como algo brutalmente novo, algo que desafiaria a repensar o que é a música, e o que ela poderia ser. Enquanto a cultura experimental do século XX foi tomada por um delírio recombinatório que a fez acreditar que a novidade estava infinitamente disponível, o século XXI é oprimido por uma sensação esmagadora de finitude e exaustão. Não parece o futuro. Ou melhor, não parece que o século XXI já começou (FISHER, 2014, p. 21, tradução nossa).

O que é isso senão um obstáculo ideológico? O que o trecho acima indica é a existência de um bloqueio da novidade no domínio da cultura popular. Para Fisher, estamos quase que presos numa constante repetição descontextualizada de estilos do passado. Neste livro, ele nos conta como ao assistir o clipe de 2005 ‘I Bet You Look Good on the Dancefloor’ da banda Artic Monkeys pela primeira vez, ele genuinamente acreditou que era um clipe dos anos 80, ou como a primeira vez que ele ouviu a música ‘Valerie’ de Amy Winehouse, ele, por um momento pensou realmente que se tratava de uma música dos anos 60.

E o interessante é que, tal como Althusser o faz em sua autocrítica, Mark Fisher não atribui a existência deste obstáculo (e sua possibilidade de superação) apenas ao domínio ideológico, na verdade, a constituição dessa eterna repetição do passado está umbilicalmente ligada a fatores políticos e econômicos relacionados com a virada neoliberal que ocorrera na Inglaterra. Mais especificamente, para ele, com o corte neoliberal das bolsas para educação superior (um dos poucos espaços no qual as pessoas poderiam se retirar para se dedicar exclusivamente à produção artística), com a alta de preços dos aluguéis e com o ataque à moradia social (ou seja, o ataque à possibilidade de trabalhar pouco para se dedicar à arte), e por fim, com a neoliberalização das grandes rádios e TV’s públicas, destrói-se toda a estrutura que garantia a inovação na cultura popular, todas as condições materiais que garantiam uma cultura que continuamente se renovava. Passou-se a produzir pela lógica do mercado, a produzir apenas o que já tenha grande chance de sucesso, ou seja, coisas semelhantes ao que já faz/fez sucesso.

Mas se as reflexões de Fisher nos permitem pensar uma fecunda aplicação do conceito de obstáculo ideológico, elas também nos permitem avançar as formulações althusserianas para aspectos (até onde sabemos) não pensados por Althusser. Por exemplo, para a questão dos efeitos do que o recalcado por um obstáculo (seja ele científico, político ou ideológico) pode exercer. É o que Fisher chama de hauntology, um conceito que funde os correlatos do inglês de ‘assombrar’ (haunt) e ‘ontologia’ (ontology), para expressar o que ele chama de uma “[…] agência do virtual, entendida não como algo sobrenatural, mas como aquilo que age sem existir (fisicamente)” (FISHER, 2014, p. 31-32, tradução nossa). Como o efeito presente do que já passou ou do que ainda está por vir. Para ficarmos no exemplo musical dado acima, Fisher dá a esse ‘fantasma do que poderia ser’, a esse conteúdo reprimido pela presente tendência à repetição e ao pastiche, o nome de ‘modernismo popular’, um desenvolvimento virtual de uma tendência que se já manifestava no pós-punk, na arquitetura brutalista, nos concertos radiofônicos da BBC, etc. e que, apesar de recalcado, constantemente deixa marcas na produção artística.

 Para os que desejam uma interpretação mais política do conceito, o nome desse futuro reprimido pode ser, por exemplo, comunismo. Afinal, o que é, o espectro do comunismo, senão efeitos presentes de uma realidade virtual que ainda não chegou?

Em suma, Fisher nos ajuda a pensar não apenas como um obstáculo pode bloquear o surgimento de algo novo, mas também, como que esse novo por trás do obstáculo grita, nos assombra, causa efeitos…

Sujeito neoliberal e emancipação.

O realismo capitalista tem seu próprio mito sobre o que é o sujeito: um indivíduo, dotado de liberdade, livre-arbítrio e vontade própria e inata. Nas palavras de Fisher (2018): “[…] afirmando ter superado todos os mitos nos quais as sociedades eram baseadas, seja o direito divino dos reis, seja o conceito marxista de materialismo histórico, ele [o realismo capitalista] apresenta seu próprio mito, o mito do indivíduo livre que exerce sua capacidade de escolha (FISHER, 2018, p. 1081-1082, tradução nossa). Não à toa, formulações que rompem com essa concepção de sujeito tendem a ser extremamente chocantes para o senso comum liberal. Um claro exemplo de formulação antagônica à do realismo capitalista é a proposta por Althusser em seu famoso (e, não por acaso, polêmico) texto sobre ideologia. Vide como o que ele declara sobre o ‘indivíduo livre’ vai em um sentido oposto ao que propõe o realismo capitalista: “[…] o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para que se submeta livremente às ordens do Sujeito, portanto para que aceite (livremente) a sua sujeição, portanto, para que ‘realize sozinho’ os gestos e os atos de sua sujeição” (ALTHUSSER, 1980, p. 113). Ou seja, para a concepção althusseriana, longe de ser o motor da história, como quer o liberalismo, esse indivíduo livre, e dotado de capacidade de escolha é nada mais que o mero efeito ideológico decorrente no processo de submissão e necessário para o funcionamento deste processo.

 Fisher dá uma interessante ilustração dessa concepção althusseriana de sujeito (apesar de não fazer referência explícita a Althusser) em seu livro de 2016 denominado The Weird and the Eerie. Tal ilustração aparece numa reflexão de Fisher sobre um conto de Tim Powers denominado The Anubis Gates. O conto retrata a história de Brendan Doyle, acadêmico especialista na obra do poeta inglês do século XIX William Ashbless. Ao longo da história, Doyle acaba viajando para o passado e retornando à Londres do século XIX.  Uma vez lá, por uma série de razões ele se vê impossibilitado de voltar para seu tempo e, em uma tentativa de não acabar na sarjeta, resolve encontrar o poeta tão estudado por ele no local (um café denominado Café Jamaica) e na hora que, de acordo com seu biografo, Ashbless escreveria ‘The Twelve Hours of the Night, ’seu mais importante poema. Ao chegar no café Doyle não vê sinal do poeta e, depois de passado a hora em que o ele deveria aparecer, decide sentar numa mesa e, seguindo sua memória, rabiscar o famoso poema em um pedaço de papel. Ocorre que, passado esse episódio, Doyle faz a chocante descoberta de que não existe Ashbless, ou melhor de que ele é Ashbless. Após feita essa descoberta, Doyle se vê frente à possibilidade de Ashbless nunca ser conhecido no futuro, e, para impedir isso, ele decide escrever e publicar seus poemas, tal como ele sabia que havia acontecido.

Eis uma brilhante analogia literária para o efeito ideológico da sujeição. Afinal, somente porque Doyle se considera dotado de livre-arbítrio, um sujeito capaz de mudar o destino dos poemas de Ashbless, é que ele acaba, na verdade, se submetendo aos ‘imperativos do destino’. Nas palavras de Fisher:

Ser sujeito é ser incapaz de se pensar como alguém que não seja livre – mesmo quando se sabe que não o é. O que sustenta pressuposição de Doyle sobre como ele deve agir é a aparentemente espontânea hipótese de um ‘passado alternativo’: para sustentar a possibilidade de que as coisas poderiam ocorrer de maneira diferente do que fora registrado na biografia de Ashbless, Doyle é forçado a considerar a possibilidade de que, de algum jeito, ele fora transportado para um ‘passado alternativo’. Mas o paradoxo é que, apenas porque Doyle se considera neste passado alternativo que ele age de acordo com o que já aconteceu (FISHER, 2016, p. 48, tradução nossa, grifo nosso).

Ou seja, uma vez frente à situação de ser apenas um suporte do destino, Doyle precisa inventar uma narrativa que preserve seu livre-arbítrio (a idéia de um ‘passado alternativo’) para poder se sujeitar a esse destino. Em suma, somente porque o sujeito se vê como livre que ele livremente se submete à dominação, seja a dominação do universo, no caso do conto, ou a dominação capitalista no caso dos sujeitos que vivem sobre o jugo do capital.

E aqui, podemos antecipar a pergunta clássica dos que adotam o mito do sujeito do realismo capitalista: mas então tudo é estático? como pode haver mudanças na sociedade se os sujeitos não são dotados de livre-escolha? Althusser e Fisher acreditam que vivemos uma eterna reprodução? A produtiva, mas desconfortável, resposta só pode ser uma: um sujeito revolucionário não emerge do mero livre-arbítrio, da mera escolha individual, mas sim do ato se constituir enquanto suporte de um evento revolucionário. Althusser no final de sua vida parecia ir mais ou menos neste caminho de resposta. Vide, por exemplo, o que ele disse em entrevista à Fernanda Navarro: “[…] um sujeito é sempre um sujeito ideológico. Sua ideologia pode mudar, passando da ideologia dominante para uma ideologia revolucionária, mas sempre haverá ideologia […]” (ALTHUSSER, 2006, p. 285, tradução nossa). Ou seja, a questão é menos defender um livre-arbítrio incondicional e mais constituir aparelhos ideológicos que interpelem os indivíduos enquanto sujeitos revolucionários. O que Althusser parece, paradoxalmente, sugerir é a necessidade de algum tipo de sujeição emancipadora.

Para voltarmos ao campo das ilustrações, talvez seja o caso de fazer referência ao interessante livro do ex-aluno de Mark Fisher, Matt Colquhoun, denominado Egress: On Mourning Melancholy and Mark Fisher. Neste livro que discute tanto a obra e as influências de Fisher como o doloroso processo de luto que seus alunos passaram após sua morte, Colquhoun (a partir do livro John Cussans denominado Undead Uprising) traça comentários sobre o conceito de zumbi que se encaixam como uma luva nessa proposta althusseriana de uma ‘sujeição revolucionária’:

[para a cultura Voodoo haitiana] o zumbi poderia ser, de um lado, representado pelo ‘indivíduo desprovido de toda a agência subjetiva, reduzido à uma mera casca de pessoa, forçado a trabalhar sem pensar como um autômato bruto’. […] Por outro lado, o zumbi também poderia ser uma figura positiva e revolucionária para as várias comunidades haitianas, poderia ser visto como uma pessoa ‘possuída por um deus’. Cussans destaca como, ‘apesar de ter um pouco do estranho e automático comportamento e da subjetividade oca do zumbi’, essa ultima figura era vista como ‘algo de super-humano, estásiante e miraculoso’” (COLQUHOUN, 2020, p. 91-92, tradução nossa).

Não poderia haver analogia melhor para a mensagem fisheriana e althusseriana. A questão não é para acabar com os zumbis, como querem os liberais e como sabemos ser impossível, mas sim deixarmos de ser um zumbi do primeiro tipo para nos convertermos em zumbis do segundo tipo. Deixarmos de ser o zumbi autômato bruto para nos tornarmos o zumbi possuído por um deus.

Conclusão.

Com este breve artigo, não temos nenhuma intenção de esgotar as discussões sobre a relação Fisher-Althusser e nem de negar a enorme importância de outros pensadores para as reflexões de Mark Fisher. Nosso intuito fora apenas apontar para o frutífero caminho (tanto para althusserianos como para fisherianos) de pensar as influências do velho francês na obra de Fisher. Se conseguimos ou não cumprir este propósito, não cabe a nós dizer.


Referências.

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. Lisboa: Editorial Presença, 1980. 3 ed.

ALTHUSSER, Louis. Lenin and Philosophy and other essays. Nova Iorque e Londres: Monthly Review Press, 2001.

ALTHUSSER, Louis. Philosophy of the Encounter: Later Writings, 1978-87. Londres e Nova Iorque: Verso, 2006.

ALTHUSSER, Louis. Solitude de Machiavel et autres textes. Paris: PUF, 1998.

BACHELARD, Gaston. La Formation de L’Esprit Scientifique. Paris: J. Vrin, 1947.

COLQUHOUN, Matt. Egress: On Mourning Melancholy and Mark Fisher. Londres: Repeater Books, 2020.

FISHER, Mark. Capitalist Realism: Is There No Alternative? Winchester e Washington: Zero Books, 2009.

FISHER, Mark. Ghosts of my Life: writings on depression, hauntology and lost futures. Winchester e Washington: Zero Books, 2014.

FISHER, Mark. K-Punk: The Collected and Unpublished Writings of Mark Fisher from 2004-2016. Londres: Repeater, 2018.

FISHER, Mark. The Weird and the Eerie. Londres: Repeater Books, 2016.

HAIDER, ASAD. Armadilha da Identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: veneta, 2019.

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1 comentário em “(Cyber)althusserianismo: a corrente subterrânea do pensamento de Mark Fisher”

  1. Texto muito interessante! Essa metáfora dos zumbis (autômato bruto/ ou possuído por um deus) lembra um dos primeiros textos de Lutero, chamado Servil Arbítrio. Para Lutero, o homem só tem duas opções: ou é cavalo de Deus ou do Diabo. Independente da aparência de escolha, o fato do homem ser montado, por Deus ou pelo Diabo, já está sobredeterminado.

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