Prédio da Caixa e a criminalização do filme

Por Arthur Moura, diretor do documentário “Prédio da Caixa”.

O município de Niterói tem um longo histórico de arbitrariedades perpetrado pelo poder público contra a população pobre. Um dos casos mais emblemáticos é o do prédio da caixa que há dois anos sofreu um despejo criminoso. A Prefeitura em ação conjunta com o Ministério Público, a guarda municipal, polícia civil, militar e os bombeiros agiram com o máximo de truculência e com requintes de perversidade contra os moradores. Geralmente pensamos que tais estruturas de poder servem para defender o interesse geral quando na verdade o que ocorre é justamente o contrário.


Numa sociedade capitalista o poder público serve claramente aos interesses privados e cometem todo tipo de crime para garantir a manutenção da dominação de classe. O processo forjado pela justiça burguesa contra o prédio da caixa é recheado de anomalias, deturpações e mentiras numa linguagem e argumentos completamente descolados da realidade concreta. O processo fraudulento serviu para legitimar o expurgo. Em suma, estamos falando de criminosos que usam do poder público para produzir o medo por meio da ameaça permanente.

A desproporcional força utilizada para violentar os moradores talvez seja o ápice dessa violência de estado. Um dos moradores entrevistados para o filme afirma que se ali morasse pessoas com alto poder financeiro nada disso teria acontecido. Essa observação certeira denota o caráter de classe dessa ação criminosa. De forma alguma vemos qualquer tipo de repressão contra os capitalistas, juízes, policiais ou milicianos. A força sempre é utilizada contra os mais vulneráveis. Até aí nenhuma novidade.

Em 2019, observando essa grave situação, comecei a registrar o que estava acontecendo já com a intenção de produzir futuramente um documentário.

A produção de um filme é muito mais impactante e relevante diante de um caso desses. O cinema da perenidade às lutas sociais e não deixa a memória se apagar o que evidentemente contraria os interesses do crime organizado autodenominado “poder público”. Comecei os registros no casarão da rua Dr. Celestino que se tornou moradia para vários moradores do prédio da caixa. Um local completamente insalubre, sem qualquer condição de moradia e com inúmeros problemas, habitado por homens, mulheres, muitas crianças, pessoas com deficiência e problemas de saúde. Naquela ocasião, os moradores que entrevistei relataram mais um caso de terror. Policiais da 76DP invadiram o local à procura de drogas. Os policiais alegaram que ali funcionava um ponto de venda de drogas. Mais uma vez os moradores tiveram a sua privacidade violada.

Depois fiquei um tempo observando a luta dos moradores e os conhecendo mais. Quando conheci Lorena e dona Lindalva me integrei mais e tive mais acesso aos moradores. Foi então que entrevistei Mariza, Fernando, Maria de Lourdes, Maria de Fátima, Raimunda, Fábio, Cleber, Paula Máiran. No casarão entrevistei Paloma, Baiano, Mismara e Priscila. O filme, portanto, conta a história a partir da perspectiva dos moradores. Na minha avaliação seria um absurdo incluir a voz de algum burocrata do estado, pois são exatamente esses que promovem a barbárie.

Em uma das últimas filmagens que fiz entrei no prédio da caixa e registrei um lugar dessa vez habitado por fantasmas onde os pertences dos moradores ainda lá estavam deteriorando-se. Consegui, por exemplo, filmar o apartamento da dona Maria de Lourdes. Sua cama abarrotada de entulhos e suas roupas empoeiradas ainda no guarda-roupas, sua bíblia aberta e sua porta violada pela polícia. Dona Maria de Lourdes chegou ao prédio em 1976 e hoje vive em condições precárias por ter perdido o seu apartamento. É ainda mais chocante observar que diversos ex-moradores do prédio estão morando nas ruas. Ao caminharmos pela Amaral Peixoto e pela rua da Conceição facilmente podemos encontrar pessoas que moravam no prédio da caixa desamparados, dormindo ao relento em noites frias. Nenhuma dessas situações incomoda a Prefeitura, o Ministério Público, a justiça ou as polícias. Para o poder público quem morava no prédio da caixa não é considerado como ser humano. São coisas e devem ser extirpados, eliminados do mapa.

O documentário, então, conta todo esse processo e na medida em que comecei a publicizar que o filme estava sendo produzido o poder público logo tomou ciência e agiu. No dia em que filmei no interior do prédio, uma burocrata do estado me ameaçou e disse com todas as letras que não estava autorizado fazer filme nenhum sobre o prédio. A mulher falou quase babando de ódio. Tentei contornar a situação. Ela exalava chorume pelos poros. Antes que tomassem a minha câmera sai rapidamente do prédio para garantir as imagens. Valiosas imagens que o poder público de forma alguma gostaria que o público visse. Mas vão ver.

Logo após este tenebroso episódio recebi uma ameaça do setor jurídico da Caixa Econômica Federal na forma de uma notificação extra-judicial ordenando a retirada imediata de todos os vídeos sobre o prédio da caixa e também mandando tirar o título do filme, pois, segundo a manobra escabrosa dos capciosos advogados do banco o título do filme fere a imagem do banco. Uma parafernália que não convence nem a criança mais ingênua.

Não há nenhuma surpresa ou novidade nesse tipo de conduta. A justiça e todo o ordenamento jurídico burguês serve para defender os interesses dos setores dominantes, assim como a polícia serve para assassinar trabalhadores pobres, sobretudo aqueles que buscam algum tipo de organização. No entanto, devemos pensar que se se chega ao ponto de criminalizar um filme, estamos caminhando para um panorama social de graves tensões e massacres. Se o poder público utiliza da sua força e estrutura para fazer calar uma obra cinematográfica podemos concluir que estes homens do poder poderão ultrapassar todos os limites possíveis da ética humana para resguardar os seus interesses. Estamos falando de censura contra o pensamento crítico. Ou seja, está proibido pensar, publicizar a vergonha alheia. O fascismo institucional veste farda, terno e gravata e está pronto para pisar em quem for preciso.

Sempre me perguntei se esses homens conseguem ter bons sonhos a noite. Se mesmo assassinando pessoas inocentes de forma direta e indireta conseguem dormir tranquilos. Se mesmo produzindo todo tipo de arbitrariedades conseguem viver em paz. Na verdade eles sabem de que lado estão e sabem perfeitamente bem o terror que produzem e mesmo aparentemente vivendo vidas tranquilas com bons salários, ostentando vinhos caros nas redes sociais sabem que se os trabalhadores oprimidos tomarem as rédeas dos principais processos sociais serão responsabilizados pelo o que fazem e isso certamente os preocupam.

A criminalização das lutas sociais assim como das produções artísticas serve para evitar a conscientização das massas e da sua consequente organização. Criminalizar a arte é o último nível da medonha natureza do estado, sua jurisdição e forças repressivas. Isso denota a ausência de qualquer humanidade (o que me parece evidente) utilizando-se de métodos sórdidos para fazer valer seus interesses. Demonstra também o desespero deste setor que age sempre por meio da ameaça à integridade de pessoas que se propõem a lutar por uma transformação das relações sociais. Demonstra que os inimigos do estado são os pobres, os intelectuais, os artistas, professores e lutadores sociais.

Criminalizar o cinema político independente é de uma perversidade inominável e merece todo nosso rechaço e ódio.

Buscar apagar a arte que pensa o social por um viés emancipatório denuncia a natureza ultra-reacionária do sistema jurídico burguês que não respeita nem aquilo mesmo que diz defender.

Por outro lado também serve para comprovar que tais produções que denunciam abertamente as arbitrariedades do estado estão na direção certa. A arte que não incomoda o poder não será alvo dessas ações.

O documentário Prédio da Caixa estará disponível no canal da 202 filmes no youtube dia 3 de setembro gratuitamente.

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