Notas sobre a “questão LGBT” e o movimento comunista

Por Leonardo Frosi Ávila

As seguintes notas se propõem a uma abordagem geral da relação entre a “questão LGBT” e o movimento comunista. Busca-se uma análise de como a articulação entre estes dois campos é necessária, e como pode ser feita de modo coerente, superando a distância atualmente existente entre eles por meio da análise das suas razões históricas e políticas.


Em alguns meios se teoriza de forma aberta ou velada uma suposta contradição entre, de um lado, a “questão LGBT” e, do outro, questões como a centralidade da classe na teoria marxista-leninista e no programa comunista, a centralidade política da classe operária e a perspectiva revolucionária da contradição principal entre exploradores e explorados, a questão da “unidade” das classes trabalhadoras, etc. Em outros, a falta de atenção que se dá à questão acaba sendo uma concordância tácita com essa posição.

As notas a seguir buscam demonstrar que, longe de ser o caso, a posição anti-LGBT na verdade vai de encontro a todos esses princípios comunistas e marxistas-leninistas. A LGBTfobia e a atitude justificatória ou minimizadora da violência perpetrada contra a população LGBT, além de posições reacionárias, são combustível de noções distorcidas, reformistas e frentistas, sobre “classe trabalhadora” e sobre “unidade”.

Consequentemente, tal análise também exige a problematização da noção de “questão LGBT” como neutra e acima das classes. É necessário disputa política e demarcação de classe dentro da população LGBT, de modo a construir uma luta LGBT proletária que reconheça a luta pelo fim dessa opressão como parte integrante da luta pelo fim do capitalismo.

A violenta opressão sexual persiste

A violência e perseguição à população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) ainda é uma realidade mundial. No Brasil, em 2021, 300 LGBTs sofreram mortes violentas, por motivação LGBTfóbica, 8% a mais do que em 2020, quando foram contabilizadas 237 mortes. Com algumas oscilações, há um número crescente de mortes contabilizadas desde 2000. As mulheres trans e travestis, uma das parcelas mais marginalizadas da população LGBT, sofreram 184 mortes violentas em 2020, registrando aumento em relação ao ano de 2019, mesmo no período de pandemia do coronavírus.

É importante mencionar que a maioria desses dados são contabilizados, com muitas dificuldades, por entidades independentes de luta das LGBTs. As pessoas LGBT sequer são incluídas no censo demográfico do IBGE. É seguro dizer, portanto, que opera o problema da subnotificação. É provável que os números reais sejam superiores.

Um relatório da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) diz, sobre os assassinatos de motivação transfóbica: “As formas de matar a população trans variam. Abaixo de 2% ocorreram assassinatos por apedrejamento (1,7%), atropelamento (1,7%), estrangulamento (1,7%), pauladas (1,7%), queimação (0,9%) e asfixia (0,9%). Os demais casos (1,7%) não apresentam informações. Foram verificados que 51,3% dos assassinatos foram resultantes de tiros, 18,3% de facadas, 12,2% de espancamentos, sendo que em 7,8% dos assassinatos há mais do que uma forma empregada para matar, envolvendo requintes de crueldade, tortura e espetacularização do suplício das vítimas.

Há casos que se tornaram conhecidos pelo grau de crueldade, e mesmo de insensibilidade da opinião pública, como o caso de Keron Ravach, jovem trans de 13 anos morta a pauladas no Ceará, a mais jovem vítima da transfobia no Brasil; o caso de Dandara dos Santos, travesti espancada, torturada e humilhada por pelo menos doze pessoas no meio de uma rua em Fortaleza, à luz do dia, sem ser socorrida por ninguém, e posteriormente morta a tiros; ou o caso de Lorena Muniz, morta por negligência ao ser abandonada em uma clínica em incêndio.

Estima-se que 13 anos de idade seja a média em que mulheres trans e travestis são expulsas de casa pelos pais. Apenas 0,02% das pessoas trans estão nas universidades, 72% não possuem o ensino médio e 56% também não possuem o ensino fundamental. Falamos de uma realidade na qual se estima que a maioria das mulheres trans e travestis morrem muito jovens, antes de completarem 35 anos de idade, tanto pela violência letal, quanto por complicações do HIV e de procedimentos de transformação corporal sem adequado atendimento médico, fatores que resultam da marginalização que é imposta a essa população.

O Brasil atualmente lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans em números absolutos (excluindo países em que estes dados não são contabilizados). 2022 é o ano em que o Brasil lidera esse ranking pelo 14º ano consecutivo. Destes índices de assassinatos, 80% são mulheres trans e travestis negras. 90% da população de mulheres trans e travestis estão submetidas à prostituição como fonte de renda e subsistência. O restante ocupa setores como telemarketing, serviços de estética, atendente, auxiliar de limpeza, auxiliar de cozinha, indústria têxtil, e ocupações temporárias informais.

Mesmo que a realidade das mulheres trans e travestis seja de estupro, violência doméstica e transfeminicídio, elas aindam encontram dificuldades para serem incluídas na Lei Maria da Penha.

O primeiro Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil, lançado em 2017, aborda o período dos anos de 2000 a 2017, em que foram registrados 180 assassinatos, com motivação lesbofóbica, de mulheres lésbicas no país. Dentre eles, 126 casos apenas entre 2014 e 2017, registrando um aumento de 150% em comparação com os anos anteriores. O dossiê aponta que a maioria das mulheres lésbicas vítimas dessa violência são negras, além de lésbicas não-feminilizadas, o que explicita a lesbofobia enquanto fenômeno patriarcal, que se expressa frequentemente pela perseguição às mulheres vistas como desviantes da feminilidade imposta.

Opressão burguesa e patriarcal

Essa é a violência que a sociedade burguesa e patriarcal reserva aos que não se enquadram, no âmbito da sexualidade, da identidade e expressão de gênero, nas posições estabelecidas para homens e mulheres no seio da instituição burguesa da família, essencial à reprodução da escravidão assalariada. É um ciclo de violências que passa pela expulsão familiar, pela expulsão escolar, exclusão do mercado de trabalho formal, pela negligência e conivência das diversas instituições do Estado, até chegar no assassinato subnotificado com requintes de crueldade, espetacularizado e justificado, com tergiversações, pelas autoridades e pela opinião pública, ou na própria violência policial e carcerária.

Mesmo enfrentando essa violência, a luta da população LGBT brasileira ainda precisa enfrentar a campanha repugnante da direita e dos fascistas, que tem na insensibilização, e mesmo na justificação aberta dessa violência uma das suas principais peças de propaganda e cooptação. Tratam a vida dessa população como piada, jogando na lama a memória de suas vítimas, instrumentalizando abertamente seu sofrimento como combustível do reacionarismo.

Em um país em que um pai, “cidadão de bem”, assassina seu filho de 8 anos para “dar um corretivo”, “ensiná-lo a virar homem”, por ele “gostar de lavar a louça e não querer cortar o cabelo”, a direita e os fascistas criam fantásticas histórias de conspirações do movimento LGBT para “destruir a família”, “invadir as escolas e a mídia”, “invadir os banheiros”, “transformando crianças em homossexuais”.

A sociedade burguesa “democrática” é aliada dos fascistas em sua “impessoalidade”: nenhuma autoridade ou instituição é responsabilizada pela omissão, pela negligência institucional em relação à população LGBT, tratada como “ordem natural das coisas”. Quando os assassinatos são problematizados, o são pela perspectiva de tratar os assassinos como “loucos”, sem que se questione a ideologia dominante LGBTfóbica reproduzida em todos os meios, diretamente ou como efeito da negligência. A campanha dos fascistas busca até mesmo descredibilizar a ideia de que os assassinatos se diferenciam da taxa de assassinatos geral na população por serem especificamente motivados por LGBTfobia, trazendo a vida pessoal de parte das vítimas, submetidas à prostituição, como argumento. Culpam individualmente as vítimas por estarem no ambiente violento da prostituição, ao mesmo tempo que se colocam como defensores da sociedade LGBTfóbica que, por meio da expulsão familiar e escolar, joga essas pessoas nesse meio. É uma das formas mais asquerosas do cinismo da sociedade burguesa e dos adoecidos e radicalizados por sua defesa, os fascistas.

LGBTfobia e o avanço do fascismo

A ofensiva burguesa do bolsonarismo, da extrema-direita e do fascismo teve como uma de suas características esse reacionarismo anti-LGBT, a defesa e institucionalização do extermínio imposta a essa população. Bolsonaro se elegeu sob essa plataforma, inclusive espalhando mentiras abertamente em rede nacional sobre um livro de conteúdo sexual que teria sido distribuído nas escolas brasileiras pelo Ministério da Educação como parte do “kit gay” (tanto o livro em questão não fazia parte do programa “Brasil Sem Homofobia”, nome original que recebeu o apelido pejorativo de “kit gay”, quanto o projeto nunca foi implementado!), e também extinguiu os parcos mecanismos institucionais direcionados à questão LGBT, como comissões de políticas públicas.

Atualmente, existe na Inglaterra e nos Estados Unidos uma onda de pânico anti-trans, em que pessoas trans são abertamente classificadas como um “contágio social”, com o auxílio de todo tipo de charlatanice pseudo-científica, inclusive em aliança com nazistas abertos. O Hospital Infantil de Boston recebeu ameaças de ataques terroristas com bomba pelo seu programa de cuidados médicos baseados em evidências direcionados à afirmação de gênero de jovens e crianças trans. Outros hospitais também receberam ameaças, da mesma forma que escolas. É frequente a ideia de que o mero contato de crianças com questões LGBT ou professores LGBT nas escolas são elementos do “contágio social” trans ou LGBT em geral, e de que as escolas que abordam a questão LGBT estariam “sexualizando crianças”.

Houve recentemente (19 de novembro deste ano) o atentado ao Club Q, onde 5 pessoas LGBTs foram mortas, dentre elas duas pessoas trans, 5 anos depois do atentado à boate Pulse (12 de junho de 2016), o ataque mais mortal à comunidade LGBT na história dos Estados Unidos, que matou 49 pessoas e feriu outras 53. O atentado recente ao Club Q ocorre num contexto diferente, de radicalização fascista mais acentuada, em que comentadores de extrema-direita conclamam abertamente sua base para os massacres, com grande foco na pauta anti-trans.

Em todo momento buscam emplacar a mentirosa e criminosa associação reacionária da população LGBT com a pedofilia, uma estratégia LGBTfóbica muito antiga. O incitamento à violência contra pessoas LGBT, e profissionais ligados à questão LGBT por parte destas campanhas fascistas é evidente. Bem como o incitamento à violência e abuso contra crianças LGBT, inclusive por parte dos pais.

A despeito da abundância de estudos científicos, corroborados por associações médicas profissionais, sobre os cuidados médicos direcionados à afirmação de gênero de pessoas trans, incluindo crianças e jovens trans, alguns estados dos EUA estão banindo estes cuidados médicos, e começaram a perseguir famílias que apoiam suas crianças e jovens trans. A campanha fascista se utiliza de desinformação e mentiras absurdas, como dizer que jovens trans menores de idade realizam cirurgias de redesignação sexual (o que não é o caso), ou que crianças recebem tratamento hormonal. Qualquer pesquisa rápida nos materiais científicos disponíveis de diversas associações médicas profissionais desmentem tais mentiras, mas a desinformação é tão grande que até mesmo intelectuais de esquerda acabam incorporando inadvertidamente alguns pontos da campanha fascista anti-trans. Da direita e dos fascistas brasileiros, que engolem e copiam tudo que é “made in USA”, podemos esperar a chegada dos mesmos métodos aqui, processo que já está no começo.

Algumas “importações” dessa lógica já são antigas por aqui, como é o caso da campanha “Escola sem Partido”, em atividade pelo menos desde 2015 e ativa durante o governo Bolsonaro. Campanha de teor fascista, reacionário e fundamentalista cristão, com o objetivo de atingir a população LGBT e a esquerda como um todo, buscava retirar quaisquer noções, reais ou inventadas, sobre a chamada “ideologia de gênero” dos materiais didáticos, o que muitas vezes servia para criminalizar professores vistos como “de esquerda”. Se tratava de uma tentativa de atiçar as bases fascistas na direção do combate ao sistema escolar brasileiro.

E o movimento comunista?

Para definir qual deve ser a intervenção dos comunistas junto a essa população oprimida e explorada, precisamos primeiro investigar a história dessa relação.

Um primeiro passo é reconhecer que, apesar da luta de lideranças comunistas pela descriminalização da homossexualidade na virada do século XX, a história do movimento comunista também reproduziu por diversas vezes a histórica perseguição à população LGBT. Na União Soviética, após ser descriminalizada na revolução de 1917, a homossexualidade foi recriminalizada em 1934. Aqui na América Latina, temos o exemplo da Revolução Cubana, com o caso das Unidades Militares de Ajuda à Produção (UMAPs) e do Quinquênio Cinza.

As UMAPs foram unidades militares que, num período de ataques terroristas dos Estados Unidos e grupos paramilitares contra-revolucionários, buscavam integrar aos processos de produção grupos que se recusassem ou fossem considerados inaptos ao serviço militar: aqueles que recusavam o serviço militar por convicções religiosas; aqueles com nível educacional insuficiente ou sem emprego estável; homens filhos da burguesia; e homens homossexuais. Como estes últimos não eram aceitos no serviço militar, foram integrados à força nas UMAPs, onde sofreram violências e abusos. Duraram de 1965 a 1968. Já o Quinquênio Cinza foi uma campanha de ostracismo que estabelecia que homossexuais não poderiam trabalhar com a educação e a cultura, pois eram considerados “maus exemplos”, situação que durou de 1971 a 1976.

Os comunistas são os primeiros interessados em estabelecer os fatos sobre estes exemplos históricos. Além de tirarmos lições do estudo destes, não temos nada a esconder. No mais, estabelecer os fatos concretamente é uma arma contra a propaganda burguesa, que os distorce ou exagera de acordo com seus objetivos. Nossas críticas a estas experiências não são um “dar a mão à palmatória” da crítica burguesa ao socialismo, pedindo “desculpas”, pois rejeitamos que as “democracias” capitalistas tenham qualquer parâmetro moral para julgar os exemplos de LGBTfobia em processos como a Revolução Russa e Revolução Cubana.

No mesmo período em que tais exemplos aconteciam, esse tipo de perseguição acontecia em todas as “democracias” capitalistas. Um caso emblemático que demonstra esse fato incontestável é o de Alan Turing, pai da computação, que, por ser homossexual, sofreu castração química forçada por parte da Inglaterra, em 1952. Viria a suicidar-se 2 anos depois, fruto de anos de perseguição e tortura pelas instituições britânicas. Esse crime foi realizado durante o reinado de Isabel II, falecida em 8 de setembro desse ano, e pela qual todo o mundo capitalista se declarou “de luto”! As relações homossexuais foram crime na Inglaterra até 1967.

Em 1988, a Inglaterra da primeira-ministra neoliberal britânica Margaret Thatcher instituiu a “section 28”, lei homofóbica que tornou ilegal órgãos públicos “promoverem” a homossexualidade e proibiu escolas de ensinarem a “aceitabilidade da homossexualidade como uma pretensa relação familiar”. A lei só foi revogada em 2003.

Até 1962 a homossexualidade era caracterizada como crime em todos os estados norte-americanos. Em vários países do ocidente a terapia pseudo-científica de “cura da homossexualidade” era comum, inclusive recorrendo à choques elétricos e lobotomia (extrair um pedaço do cérebro) em países como Suécia, Dinamarca, EUA e Alemanha Ocidental até o início dos anos 80. A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a homossexualidade não constituía doença apenas em 1990.

Uma digressão sobre a instituição da família e as modificações no tratamento da mesma na história do movimento comunista pode nos ajudar a entender as relações entre LGBTfobia, revisionismo, e a própria função da LGBTfobia no capitalismo.

Família e Capitalismo de Estado

Alexandra Kollontai, comunista bolchevique que atuou na revolução de 1917 e tratou da questão da mulher, desenvolveu a posição comunista sobre a instituição burguesa da família: a família é a base da propriedade privada e da herança.

No caso das famílias trabalhadoras, a função da família é ser uma unidade em que o casal, via matrimônio, é tido como separado do restante da sociedade, uma divisão fundamentalmente ligada com a oposição conceitual burguesa entre o público e o privado.

Nas economias pré-capitalistas, a família era uma unidade de produção, em que o trabalho doméstico das mulheres podia produzir artigos a serem levados ao mercado e considerados mercadorias. O avanço do capitalismo e do trabalho industrial transforma esse modo de vida, fazendo com que tudo que era produzido na unidade familiar passe a ser produzido em quantidade maior nas fábricas. A família no capitalismo se torna, então, uma unidade não mais de produção, mas de consumo, mantida apenas por dois fatores: a desigualdade social e econômica da mulher proletária em relação ao homem proletário, que torna ela dependente economicamente deste, essa dependência tirando sua autonomia e prendendo-a ao casamento; e pelo trabalho doméstico, improdutivo na perspectiva da economia nacional, que reserva às mulheres trabalhadoras uma jornada dupla de trabalho (fora de casa, e dentro de casa no cuidado da casa e dos filhos, idosos e doentes), dada a impossibilidade de construir no capitalismo a socialização do trabalho doméstico e do cuidado.

Na perspectiva da economia nacional, portanto, a família no capitalismo é uma unidade de consumo, a ser superada com o advento da revolução proletária e do socialismo:

A economia comunista acaba com a família. No período da ditadura do proletariado há a transição para um único plano de produção e consumo socialmente coletivo, a família perde seu significado enquanto uma unidade econômica. As funções econômicas externas da família desaparecem, e o consumo deixa de ser organizado sob uma base individual familiar, uma rede de cozinhas sociais e cantinas é estabelecida, e o preparo, reparo, a lavagem das roupas e outros aspectos do trabalho doméstico são integrados na economia nacional. No período da ditadura do proletariado a unidade econômica da família deverá ser reconhecida como sendo, pelo ponto de vista da economia nacional, não apenas inútil, mas danosa. A unidade econômica da família envolve (a) o gasto não econômico de produtos e combustível por parte das pequenas economias domésticas, e (b) o trabalho improdutivo, especialmente das mulheres, em casa – e, portanto, está em conflito com os interesses da república dos trabalhadores em um único plano econômico e no uso adequado da força de trabalho (incluindo as mulheres).

Ou seja, no socialismo não apenas a produção passa a ser socializada, como também a organização do consumo. Mas isso não é simples. A única forma de realizar essa socialização do trabalho doméstico e do cuidado dos filhos, com a superação da organização da economia em bases individuais familiares e pequenas economias domésticas, passando a organizar o consumo de acordo com um único plano de produção, é com o avanço da luta de classes, também pós-revolução, que deve continuar a minar as relações de produção capitalistas. Estas relações capitalistas têm como características fundamentais, a serem superadas progressivamente, as relações mercantis e o salariado, como diz Althusser.

Quando, na União Soviética, essa posição proletária se perde em prol da visão economicista de um desenvolvimento burguês das forças produtivas, junto com a perda da transição ao socialismo (ideia que pode ser melhor compreendida com a referência ao conceito de Capitalismo de Estado, defendido por teóricos como Charles Bettelheim, Étienne Balibar, Márcio Bilharinho Naves, Maria Turchetto e outros) temos, consequentemente, a perda do processo proletário de superação da família enquanto instituição burguesa e unidade econômica de consumo. Essa é a base para o processo de fortalecimento da família, comentado por exemplo pela comunista portuguesa Ana Barradas, do coletivo Bandeira Vermelha, em textos como “A família na União Soviética. Crise e reconstituição 1917/1944”. Processo intensificado na União Soviética no período de Stalin, mas já iniciado desde antes quando, com o isolamento da revolução e o fortalecimento das medidas direcionadas ao capitalismo de estado, dos esforços econômicos internos para se defender das ameaças de contrarrevolução, deixaram de verificar-se as condições para estabelecer o programa original dos bolcheviques para a questão.

Segundo a autora comunista Wendy Goldman, no livro “Mulher, Estado e Revolução”, na União Soviética o primeiro e segundo Plano Quinquenal, quando se iniciou a industrialização acelerada e coletivização da agricultura, como medidas inclusive para preparar o país economicamente para futuras agressões militares (que viriam a se concretizar, como no caso da agressão da Alemanha Nazista à União Soviética), estabeleceu uma dualidade. Por um lado, houveram avanços sociais, como as mulheres terem começado a ingressar em números significativos em ramos industriais antes dominados por homens. Por outro: “Entre 1928 e 1932, os salários reais caíram chocantes 49%. Como resultado, a renda real per capita não aumentou à medida que mais membros da família começaram a trabalhar, mas caiu para 51% em relação ao nível de 1928. Em outras palavras, dois trabalhadores eram empregados agora ao custo de um. Duas rendas eram agora necessárias onde uma havia sido suficiente. (…) A política salarial não encorajou o ‘definhamento’ da família, mas, ao contrário, contou com a unidade familiar como um meio efetivo de exploração do trabalho. Em um período abertamente definido pela intensificação da acumulação dentro de cada indústria e cada fábrica, a família foi a instituição que permitiu ao Estado realizar a mais-valia de dois trabalhadores pelo preço de um”. Portanto, os avanços sociais relativos não significaram a conquista da independência por parte da mulher trabalhadora em relação à família. Com um desenvolvimento das forças produtivas com características burguesas, a instituição da família precisava ressurgir para cumprir suas funções originais, como reflexo da luta de classes que continua após a revolução. Diz Ana Barradas no texto “Os comunistas e a homossexualidade”:

No fim de contas, todas estas tendências conservadoras visavam restabelecer a velha célula familiar, produtora de uma hierarquia bem definida, reprodutora de valores arcaicos e da prática da autoridade do chefe, da submissão dos filhos aos pais, da mulher ao homem, da repartição desigual do trabalho, dos rendimentos e das responsabilidades, em suma, uma célula capaz de dar base de apoio à nova classe burguesa em ascensão. Deturpando grosseiramente o pensamento marxista, punha-se completamente de parte o programa original dos bolcheviques.

Ora, a homofobia/LGBTfobia se constitui exatamente como um dos mecanismos mais eficientes para o fortalecimento da instituição burguesa e patriarcal da família. As identidades sexuais e de gênero desviantes da norma heterossexista, como a lesbianidade, a homossexualidade, a bissexualidade e a transgeneridade, são reprimidas pela sociedade burguesa com o objetivo de reforçar os papéis rígidos de gênero que estabelecem as posições sociais correspondentes ao homem e à mulher, posições sociais que essa sociedade precisa para que continue em funcionamento a instituição da família. Com os papéis de gênero estabelecidos, a mulher trabalhadora entende que sua “função” é, além da exploração do trabalho que sofre fora de casa, suportar dentro de casa, via contrato de casamento com seu cônjuge homem, a jornada dupla, sendo a responsável pelo trabalho doméstico e o cuidado dos filhos, idosos e doentes.

Dessa forma, diminui para a burguesia os custos da reprodução da força de trabalho, realizando atividades essenciais para que essa força continue se apresentando para trabalhar no dia seguinte. Para a sociedade burguesa, o homem e a mulher devem ser heterossexuais e cisgêneros (ou seja, o contrário de transgêneros), para que assim entendam que sua função é unirem-se via casamento, possibilitando que a burguesia e o Estado burguês não tenham que arcar com os custos que teriam se tivessem que dar conta das tarefas de reprodução da força de trabalho que são o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos, por meio de creches públicas, restaurantes públicos, etc. Tidas como “tarefas naturais da mulher” pelas relações de gênero dominantes, tornam-se atividades realizadas gratuitamente para o lucro burguês.

Essa é a razão, dadas as devidas proporções e análises caso a caso (tanto a Revolução Russa como a Revolução Cubana têm suas particularidades históricas próprias nessa questão, apesar dos dilemas semelhantes), para o surgimento de políticas de fortalecimento da instituição familiar, com a consequente perseguição aos desviantes da norma heterossexista, nas experiências passadas de transição ao socialismo.

Naturalmente, como nos lembra Francisco Martins Rodrigues, não se trata de atirar todas as culpas à União Soviética, à Stalin, à III Internacional, etc. Enquanto os comunistas no Oriente efetivamente fizeram revoluções, mesmo que não conseguindo evitar a derrota da revolução proletária frente às tendências orientadas ao capitalismo de estado, a “deformação do marxismo típica do Ocidente imperialista” representada pela linha dimitrovista das Frentes Populares nos anos 30, inspirada no reformismo operário europeu, não produziu nenhuma revolução (Anti-Dimitrov, p. 255), e figuras como o próprio Dimitrov e o Partido Comunista Francês estavam também plenamente infectados das concepções pequeno-burguesas de “defesa da família”. O exemplo do Partido Comunista Alemão e seu apoio ao Comitê Científico-Humanitário, que lutava pela descriminalização da homossexualidade, parece um caso único.

A teórica marxista Cinzia Arruzza nos lembra ainda do exemplo do Partido Comunista Francês e sua posição contrária ao aborto, e do Partido Comunista Italiano e sua posição contrária à legalização do divórcio (!). Junto com a flagrante incapacidade do movimento sindical historicamente em incluir as pautas da desvalorização do trabalho feminino e da segregação da mulher no mercado de trabalho, o problema parece refletir uma imaturidade geral da luta operária, que temos que superar se falamos seriamente em reconstrução do movimento comunista.

A LGBTfobia capitalista hoje

Analisar a sociedade capitalista hoje nos permite identificar ainda mais mecanismos que tornam a LGBTfobia e a opressão das mulheres úteis à burguesia. A ideologia dominante sobre o gênero e a instituição familiar não oprimem as mulheres só dentro de casa. Fora, também os trabalhos tipicamente femininos tendem a ser precarizados, como a limpeza, a educação infantil, os trabalhos da saúde com grande presença feminina como a enfermagem e os serviços de limpeza hospitalares, e os trabalhos do cuidado no geral. Estes trabalhos se tornam tipicamente femininos por causa da ideologia oriunda da instituição familiar, que ao atribuir às mulheres o cuidado da casa e dos filhos, atribui ao gênero feminino, como característica natural e inerente, os trabalhos do cuidado. Em todos estes setores laborais tipicamente femininos, como em qualquer profissão, as mulheres recebem menos.

A LGBTfobia cumpre um mecanismo semelhante. A instituição da família, ao estabelecer os papéis sociais rígidos do homem e da mulher, exclui as pessoas LGBT da família (muitas vezes literalmente: já vimos o dado de que as travestis tendem a ser expulsas de casa pela família aos 13 anos de idade). A ideologia dominante de gênero oriunda da instituição familiar também alimenta a exclusão das LGBTs do ambiente escolar, tendência que as campanhas de extrema-direita nos últimos anos buscam intensificar.

Isso se torna útil para o capitalismo ao criar mais um contingente de pessoas que serão jogadas, via marginalização, para os sub empregos precarizados, que o capitalismo sistematicamente produz e precisa que alguém ocupe. Também joga as LGBTs para o exército industrial de reserva, o contingente de desempregados essencial para a burguesia, e para a prostituição, principalmente no caso das mulheres trans e travestis, setor para onde a sociedade burguesa sistematicamente empurra mulheres trabalhadoras. A ideologia da instituição da família trata o espaço familiar como “digno”, e as que são expulsas dele como “indignas”, criando espaços de trabalho que são tidos como externos à família, mas que na verdade são produzidos pelos próprios mecanismos desta instituição. O espaço da prostituição é um destes, e é um espaço de exploração e opressão contra o gênero feminino intimamente ligado à opressão LGBTfóbica, principalmente transmisógina. A condenação hipócrita da sociedade burguesa contra a “indignidade” destes espaços visa ocultar que eles são o seu produto.

As consequências desses fatos, tanto para os comunistas quanto para o movimento LGBT, são claras. Para alguns comunistas intolerantes para com a população LGBT (que ainda existem!), fica evidente que estão errados em tomar como modelo a suposta atitude “proletária” com relação à população LGBT que identificam nas experiências passadas de transição ao socialismo. Estão tomando como paradigma o modelo do capitalismo de estado, ou seja, das distorções internas que os países capitalistas impuseram de fora àquelas experiências, causando a derrota da revolução proletária e a vitória da burguesia burocrática de Estado e dos revisionistas, que operaram a transição daquelas experiências ao capitalismo, dando-as de bandeja à burguesia privada tradicional e ao imperialismo. Um “comunista” LGBTfóbico está seguindo o paradigma do revisionismo e do dimitrovismo “popular” dos anos 30.

Além disso, estão cedendo e vacilando frente a um mecanismo do capitalismo e do fascismo, no qual a opressão e exploração das LGBTs trabalhadoras está entrelaçada com a opressão e exploração específica direcionada às mulheres trabalhadoras como um todo.

Capitalismo “Arco-íris”

Para o movimento LGBT, também há consequências. Não é justificável, para a causa LGBT, o liberalismo que reina em seu meio (como de resto, infelizmente, ainda reina em todos os movimentos de luta contra opressão). Não se justifica a subordinação das paradas LGBT, que iniciaram em lutas populares como a Revolta de Stonewall de 1969, ao financiamento de empresas como Uber, Skol, Burger King, como acontece hoje.

O afastamento entre o movimento LGBT e as lutas da classe trabalhadora significa que o movimento LGBT se afasta das próprias LGBTs trabalhadoras e precarizadas. Aqui, a aproximação com as ilusões de “capitalismo inclusivo” com o argumento da perseguição realizada nas experiências passadas do movimento comunista não convence. O que vale para os comunistas também vale para o movimento LGBT: a perseguição às pessoas homossexuais/LGBT naquelas experiências não era expressão do socialismo e da ditadura do proletariado, mas justamente da incapacidade de se trilhar o caminho para esse objetivo. Incapacidade muito bem auxiliada pelas “democracias” capitalistas, que operaram o cerco burguês àquelas experiências, inclusive jogando o fascismo contra elas, pois não podiam tolerar a ameaça do poder do proletariado. Ao mesmo tempo em que realizavam esta operação, as “democracias” capitalistas também realizavam sua própria perseguição LGBTfóbica. Portanto, o capitalismo não pode justificar sua pretensão de alteza moral neste tema, e o movimento LGBT que lhe dá crédito está traindo as LGBTs mais precarizadas e exploradas em favor da ideia de que a causa LGBT seria “inter-classista” e “apolítica”.

Essas posições, que renunciam à centralidade da classe, tendem à ideia de que ser LGBT é, por si só, um questionamento do sistema. Contra isso, podemos dizer que, por mais que a instituição da família burguesa realmente torne a LGBTfobia um mecanismo do capitalismo, ser LGBT não é, inerentemente, estar fora desse mecanismo. Como diz Holly Lewis, no livro “Politics of Everybody”:

O argumento de que o capitalismo prospera com a normatividade ignora o fato de que também prospera com a diversidade, o pluralismo, a moda e segmentos de mercado. Embora a família heteronormativa seja produtiva para o capital, individualistas urbanos queer e contra-culturalistas “drop-out” também são produtivos para o capital – os primeiros como “criativos” no mercado de trabalho, os últimos como uma população excedente (ou, nos EUA, mão de obra barata pra indústria de serviços). Queers sem filhos também não estão totalmente de fora da matriz familiar visto que membros solteiros e sem filhos da família são frequentemente tributados com o cuidado de idosos. É romântico pensar que você pode mudar o mundo por meio da sexualidade diversa, autoexpressão criativa, e vínculo comunitário. Mas você não pode.

Isso significa que, dentro da luta LGBT, e para o sucesso dessa luta, também precisamos da demarcação de classe entre as pessoas LGBT proletárias, entre as LGBTs trabalhadoras, exploradas e precarizadas, e pessoas LGBT burguesas, pequeno-burguesas e das camadas médias. Isso não significa que não devemos nos opor à LGBTfobia sofrida por estes setores também, afinal esta também é injusta e instrumento do capitalismo e da ofensiva fascista, mas realizar a demarcação de classe para que a pauta LGBT seja direcionada pela parcela da população interessada na radicalidade e na ligação com as lutas do restante das classes trabalhadoras, formando a única luta com força suficiente para questionar as bases mais profundas da instituição burguesa e patriarcal da família e da LGBTfobia.

A demarcação de classe é um instrumento de disputa política, que passa por dizermos que a opressão LGBTfóbica não será resolvida, nem por meio da fuga individual da luta política, nem pela luta centrada em cargos estatais, institucionais ou eleitorais. No primeiro caso, quem tem condições plenas para essa fuga individual já tem de partida uma posição de classe mais confortável; nos segundos, a perspectiva que toma os cargos e a “representatividade” como centrais deve ser exposta como ignorando os mecanismos pelos quais a sociedade burguesa perpetua a opressão LGBTfóbica. Essa perspectiva significa a conquista de alguns “avanços” cosméticos, novamente, para algumas pessoas LGBT das camadas médias em detrimento das LGBTs exploradas e precarizadas.

Objeções comuns à luta LGBT: “Dinheiro rosa”

Há algumas objeções comuns nesse assunto que podem nos ser úteis de tratar sobre. Uma delas é a ideia de que a população LGBT seria uma camada “abastada” da população. Alguns setores do movimento LGBT citam isso como algo positivo, apontando que essa população tem cada vez mais relevância como mercado de consumo. Imaginam que isso seja um sinal benéfico para a inclusão social dessa população.

O que alimenta essa concepção são algumas pesquisas estatísticas, geralmente dos Estados Unidos, que apontam a população LGBT com maior poder de consumo e nível educacional que o restante da população. O que se ignora é que essas pesquisas são geralmente enviesadas, com um erro de princípio fundamental: a questão LGBT é diferente de outras questões sociais, onde o pertencimento de determinada pessoa a um grupo é visível. Não é visível que uma pessoa seja LGBT, como não é possível saber da sexualidade de qualquer pessoa apenas olhando. Ser LGBT é uma questão também de identidade, de se entender como LGBT e declarar essa identificação.

Isso explica o erro metodológico dessa crença, já que pessoas LGBT que respondem esse tipo de pesquisa tendem a ser, a priori, de camadas com situação mais confortável economicamente da população. Afinal, uma pessoa LGBT das camadas médias têm mais condições de se declarar (e de se entender) abertamente LGBT que uma pessoa LGBT da classe trabalhadora, com menos recursos para se proteger da violência LGBTfóbica e da exclusão no mercado de trabalho. Além disso, existem pesquisas recentes que desmontam esse mito, apontando uma conjuntura de precarização das pessoas LGBT.

Outra objeção é a ideia difusa de que a população LGBT estaria ausente do trabalho operário produtivo, do trabalho industrial e agrícola, portanto fora de uma categoria estratégica para a organização do proletariado nas lutas que mais possam desestabilizar o capitalismo. Ademais do fato de que obviamente não há uma ausência absoluta de pessoas LGBT nesses setores, esse tipo de objeção merece um comentário particular.

O agravamento da tendência a crises do sistema imperialista mundial, a partir do começo do século 21, gera um estado depressivo desse sistema, alternando recessões, estagnações e crescimento declinante, sem retomada da trajetória anterior. O quadro geral de crise e ofensiva burguesa leva, no Brasil e em outros países dominados na divisão internacional do trabalho, a um agravamento do desemprego e ao aumento da superpopulação relativa, daquela parcela da massa trabalhadora que é supérflua para a valorização do capital e jogada na miséria, na subocupação ou no exército industrial de reserva, também enormemente ampliado.

A exploração capitalista das inovações tecnológicas contribui para a generalização de relações de trabalho cada vez mais “flexíveis”. O imperialismo gera novas e mais rebaixadas relações de trabalho que são criadas e ganham espaço em diversos países: setores assalariados improdutivos em geral, trabalhadores terceirizados, trabalhos “por conta própria”, informais que vivem como podem na produção e venda de alimentos, no comércio de mercadorias de pequeno valor, na prestação de serviços diretos (“bicos”), trabalhadores autônomos, e a enorme massa popular composta por desempregados, impossibilitados de trabalhar, vivendo na mera subsistência ou escassos programas estatais.

A ideologia dominante LGBTfóbica, que produz a expulsão familiar e escolar, bem como a violência contra a população LGBT nas ruas, é um mecanismo interessante para a burguesia ao jogar as parcelas mais exploradas e precarizadas da população LGBT nesses setores de trabalho. A superpopulação relativa, “supérflua” para o capital, é instrumentalizada na medida em que ocupa os postos de trabalho informais e precarizados que o capitalismo sistematicamente produz, e ocupando o exército industrial de reserva, engrossando a taxa de desempregados que permite à burguesia intensificar a exploração da classe trabalhadora como um todo. A LGBTfobia pode jogar uma parcela da população para esses setores, ao mesmo tempo que constrói a ideologia que justifica aos olhos do senso comum a presença dessa população lá. É a marginalização que determina a inserção de classe das LGBTs trabalhadoras nos postos de trabalho informais e precarizados.

Faz muito mais sentido que os comunistas sejam inimigos irreconciliáveis da LGBTfobia, assim conseguindo inserção na parcela da população LGBT jogada nestas relações de trabalho “flexíveis” criadas pela crise imperialista e pela ofensiva burguesa, particularmente a população trans e travesti que subsiste na prostituição, na limpeza e outros trabalhos precários, do que conciliar com o pânico moral das “famílias de bem” horrorizadas com a população LGBT “pervertida” e “marginal”, que quer corromper suas casas, suas escolas, seus filhos. É comum a confusão desse pânico moral, oriundo da ideologia das camadas médias mais altas que querem preservar seu espaço “privado” familiar, com os interesses do proletariado. Faz muito mais sentido à classe operária buscar a aliança dos trabalhadores informais e precarizados, consequentemente igualmente interessados na radicalidade da luta contra o Estado burguês, do que a busca por apoio ou mesmo direção nas camadas médias e na “intelectualidade progressista”, atualmente dominante nas propostas de “Frente Ampla”.

O fato de que tanto os trabalhos informais e precarizados, quanto setores das camadas médias assalariadas, com funções intelectuais e melhor remuneradas podem se encaixar nas discussões sobre trabalho improdutivo, mas no entanto só os primeiros recebem reservas e dúvidas enquanto as camadas médias continuam priorizadas e cortejadas, é um elemento da ideologia pequeno-burguesa em nosso meio.

Divisão e unidade da classe trabalhadora

O que nos leva à questão da “unidade”. Não seria a questão LGBT um fator de “divisão” da classe trabalhadora? É um argumento bastante levantado por setores intolerantes com a população LGBT.

O nacional-desenvolvimentismo, uma das formas em que mais frequentemente se apresenta o reformismo no Brasil, tem uma visão bem delimitada do que é o “trabalhador”. No caso atual, sequer a referência ao “trabalhador” persiste com a mesma força, já não estando mais tão “em alta” há muito tempo. A “esquerda” reformista, oportunista e eleitoreira, hoje em dia, aborda a população na chave de “cidadãos” ou “eleitores”, categorias úteis à desmobilização: os “cidadãos” são brasileiros que esperam passivamente sua “cidadania”, os seus direitos concedidos de cima pelo Estado. Já os eleitores são pessoas que mostram sua fidelidade a determinado projeto político por meio do voto, ao invés de se mobilizarem ativamente no seu local de trabalho e moradia.

Mas a diluição reformista de hoje em dia precisou trilhar um caminho. Nos anos 80, quando a mobilização popular e sindical ainda tinha mais prestígio, o reformismo não podia se apresentar abertamente. Tinha que mobilizar de algum modo a categoria de “trabalhador”, fazendo referência à luta sindical, à luta no local de trabalho, à oposição entre exploradores e explorados.

Mas o uso dessa categoria pelos reformistas, quando querem credenciais de luta radical, trabalhista, sindical, não é sinal de ausência de oportunismo.

O marxismo-leninismo nos ensina que a luta sindical, sozinha, não é garantia de luta revolucionária. A luta sindical mobiliza as pautas econômicas e imediatas da classe trabalhadora, e sendo assim, é fundamental. Mas também é fundamental evoluir das pautas econômicas de cada categoria de trabalho para um programa político que possa unificar a classe operária e as demais classes trabalhadoras em um todo coeso, direcionado à tomada do poder, à derrubada do Estado burguês, da escravidão assalariada, rumo ao socialismo. Aqui entra o papel do Partido Comunista.

E é aqui que podemos perceber a confusão da ideia de “unidade dos trabalhadores”, quando propagada por aqueles setores mais pseudo-radicais entre os reformistas, aqueles mais próximos da base dos partidos reformistas, ou ligados à pelegagem sindical, preocupados com fórmulas que possam desviar as críticas da base. Se a luta sindical sozinha não garante luta revolucionária, podendo ser desviada para o peleguismo, a identidade do “trabalhador” também não garante nada, podendo ser um instrumento desse mesmo peleguismo.

O Partido Comunista deve se preocupar com a unidade da classe trabalhadora. Isto é certo. Mas a sua fórmula para essa unidade não é a diluição sem critérios.

O Partido Comunista deve reunir a vanguarda do proletariado, ou seja, o proletariado mais avançado, com maior experiência na atividade prática da luta e armado com a teoria revolucionária. Esse Partido deve provar, em cada conjuntura concreta, a justeza do seu programa comunista e sua capacidade de crescer entre as classes trabalhadoras e dominadas, participando e avançando na organização de suas lutas, garantindo a hegemonia proletária nas lutas trabalhadoras e populares e o enfrentamento dos inimigos de classe.

O Partido não pode fazer isso por cima das lutas concretas. Ele deve se engajar nas lutas concretas e imediatas, de modo a ser reconhecido por cada setor das classes trabalhadoras e dominadas como o instrumento de suas lutas. Por meio dessas lutas, cada categoria de trabalho percebe, organicamente, a sua unidade de interesses com as outras categorias. Assim, supera-se a fragmentação das categorias, supera-se a consciência imediata e setorial de cada uma delas, e constrói-se a unidade das classes trabalhadoras em torno do programa político comunista, sob direção do proletariado.

Bastante oposto a esse entendimento é o conceito de “unidade dos trabalhadores” quando proposto pelos reformistas e oportunistas. Neste, se trata de diluir as diferenças existentes entre a classe trabalhadora em torno de uma unidade abstrata. A “unidade” é e sempre foi a fórmula dos oportunistas no seio dos trabalhadores em toda parte do mundo, querendo transmitir a ideologia da pequeno-burguesia ao movimento operário, e isso não é atenuado quando eventualmente falam em unidade “dos trabalhadores”. Se trata de uma fórmula mais perniciosa.

O proletariado tem unidade de interesses em seu antagonismo de classe com a burguesia, mas esse antagonismo não nasce pronto. A nível imediato, o proletariado está em conflito consigo mesmo o tempo todo: desde o fato de que há diferentes categorias de trabalho, e em sua consciência imediata os trabalhadores dessas categorias focam em suas próprias pautas específicas e particulares, não percebendo imediatamente sua ligação com as de outras categorias (e às vezes até mesmo percebendo-as como inimigas), até o fato de que o proletário em sua própria constituição é uma mercadoria e está em disputa com os outros por emprego. Isso é enormemente intensificado nas categorias de trabalho informal.

O proletariado só pode se constituir num todo, numa classe em antagonismo com a burguesia, se superar suas divisões internas em prol desse antagonismo. O seu antagonismo com a burguesia, portanto, apesar da potencialidade latente, que tem suas bases concretas na socialização do processo de trabalho produtivo construída pelo capitalismo, é uma questão política na qual o Partido Comunista é o fermento essencial.

O reformismo, ao propor uma “unidade” abstrata, diluída, sem nada de concreto, transforma “trabalhador” em uma identidade que, de forma não muito diferente da identidade de “cidadão” ou “eleitor”, propõe essa unidade em torno de um programa unitário que não é o do antagonismo com a burguesia, mas o programa de uma unidade forjada, fictícia. Sem percorrer o caminho da luta concreta em que diferentes setores da classe trabalhadora unem forças para viabilizar a derrota do inimigo de classe, a unidade forjada dos reformistas só pode ser a “unidade” em torno da direção das burocracias partidárias, da pelegagem sindical, da “intelectualidade progressista”, da pequeno-burguesia de esquerda. O “trabalhador” do reformismo é o trabalhador submisso, como força de choque dos dirigentes da “Frente Popular”, da “Frente Ampla”, da “Estratégia Democrático-Popular”, entre outras formulações. Ou seja, do projeto de conciliação de classes.

Podemos aplicar o mesmo princípio a outros tipos de divisão entre a classe trabalhadora. O pânico reformista do “divisionismo” que a questão LGBT pode causar é o medo de enfrentar de frente e superar a divisão real, existente no imediato, entre a classe trabalhadora LGBT e a classe trabalhadora heterossexual e cisgênera. Prefere-se, recorrendo ao conservadorismo, identificar um “desviante”, no caso, as pessoas LGBT, e tratá-las como não-pertencentes à classe trabalhadora, estimulando as organizações e militantes a desconsiderar suas demandas.

O resultado é que os trabalhadores LGBT ficam sem um ponto de apoio para a radicalização das suas lutas, contra os reformistas e oportunistas da pauta LGBT, e os trabalhadores heterossexuais e cisgêneros também ficam. Afinal, quando os comunistas se omitem de denunciar a burguesa e patriarcal opressão LGBTfóbica, o resultado é que desperdiçam um importante campo de disputa de consciência da classe trabalhadora como um todo. Com a LGBTfobia, os trabalhadores heterossexuais e cisgêneros podem ter sua atenção desviada para o tratamento da população LGBT como “inimiga”. Ao invés de perceberem sua unidade de interesses com esse setor oprimido e explorado, construindo seu antagonismo conjunto com a burguesia, têm na LGBTfobia um ponto de apoio para verem nestas populações “deserdadas da família” a razão da sua condição de exploração (um dos pontos que é uma das bases da cooptação de extrema-direita, fascista), ou pelo menos um atenuante.

Quando um trabalhador justifica a condição de marginalização da população LGBT, essa justificativa é uma base para que justifique sua própria condição. Por mais dificuldades que possa ter, se julga um membro legítimo da sociedade burguesa, pois tem uma família, ao contrário das LGBTs na marginalidade. Direciona suas noções do que está errado com a sociedade para populações marginalizadas, ao invés de questionar a organização econômica da sociedade como um todo. O proletariado perde um ponto de apoio para se antagonizar com a burguesia. Perde sua coesão de classe, constrói sua identidade de classe não em princípios sólidos mas com base na infiltração de concepções pequeno-burguesas, em que os “trabalhadores de verdade” não querem “sujar sua imagem” com as parcelas trabalhadoras precarizadas, marginalizadas e difamadas.

LGBTfobia e a ditadura militar brasileira

Não é coincidência que o governo “popular” de Dilma Rousseff tenha se posicionado contra o programa Escola sem Homofobia, com Dilma alegando que “não aceita propaganda de opção sexual”, nem que Lula tenha dito, ainda nos anos 80 em meio às movimentações sindicais no ABC, que “não existem homossexuais na classe operária”.

A Comissão Nacional da Verdade de 2014 expôs as “rondas policiais sistemáticas da ditadura militar para ameaçar e prender travestis, gays e lésbicas, cuja prática de “higienização” levou ao menos 1,5 mil pessoas à prisão somente na cidade de São Paulo; as torturas, espancamentos e extorsões dirigidas sobretudo a travestis; censura à grande imprensa quando abordava a temática das “homossexualidades” (o termo LGBT não era usado na época) e aos veículos gays, como o emblemático jornal “Lampião”; afastamento de cargos públicos por conta da sexualidade, como ocorrido em 1969 no Itamaraty; prontuários de servidores públicos com registros sobre a sexualidade; além de perseguições aos embrionários movimentos de gays e lésbicas na década de 1970”.

Em 1987, já em meio à “Redemocratização”, ocorre a “Operação Tarântula”, uma operação especial da polícia para caçar e prender travestis, com a desculpa da epidemia da AIDS, e o pretexto declarado de “ultraje ao pudor e crime de contágio venéreo”, que em menos de duas semanas prendeu arbitrariamente, em meio a torturas, espancamentos e extorsões, 300 travestis. O fato de que não se sabe de movimentações de solidariedade por parte das organizações de esquerda e do movimento de trabalhadores em geral neste período expõe a falência da chamada “Redemocratização”, e da esquerda na época, que com a derrota da luta armada já estava completamente hegemonizada pela chamada tática de “frente democrática”. Esta política se provou incapaz de constituir força contrária ao caráter “lento, gradual e seguro” imprimido a uma “Redemocratização” conduzida pelos próprios militares.

Uma “Redemocratização” que praticamente não desmantelou os mecanismos de repressão da ditadura militar, e instituiu uma Lei de Anistia Geral em que nenhum torturador, nenhum assassino de presos políticos foi punido. A Operação Tarântula é o símbolo de uma democracia fajuta e de um movimento de trabalhadores subordinado aos frentistas “democráticos” ao invés de buscar alianças nas camadas populares e marginalizadas para se insurgir contra a sociedade burguesa.

Que lembremos das organizações LGBT (ou mais propriamente do “Movimento Homossexual Brasileiro”, termo mais comum no período) que resistiram no período: o SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual, o Grupo de Ação Lésbico-Feminista, o jornal ChanacomChana, o jornal Lampião da Esquina. Houve, inclusive, aproximação por parte do SOMOS ao movimento sindical, por meio da “Comissão de Homossexuais Pró-1° de Maio” que levantou duas faixas durante uma manifestação do 1º de Maio de 1980, no ABC, que diziam: “Contra a intervenção no ABC”, e “Contra a discriminação do/a trabalhador/a homossexual”.

Por fim, a Família

A atitude dos reformistas em relação ao reacionarismo da sociedade burguesa é a de que devemos nos resignar e nos subordinar às expressões mais atrasadas da consciência das massas, pois “não há o que fazer”. Em seu imediatismo, propõem que, se há expressões de conservadorismo entre as massas, devemos ou reproduzi-las ou tomá-las como dado imutável, para não perder apoios e votos. Essa é a base do oportunismo e eleitoralismo, tanto dos LGBTfóbicos “de esquerda” quanto da esquerda que transforma a questão LGBT num adorno inócuo, fazendo reivindicações contra o “preconceito” mas sem ousar incorporar as demandas LGBT no âmbito do trabalho, contra a instituição da família burguesa e sua ligação com a escravidão assalariada.

Confundem esse oportunismo e eleitoralismo com a busca que devemos ter pelo convencimento e debate com as massas, conscientes de que não chegaremos a lugar nenhum sem passar pelo engajamento concreto com elas e com suas lutas políticas e sociais reais. A confusão dos reformistas é assistida pelas campanhas de desinformação da direita fascista que, buscando cooptar as classes trabalhadoras, afirmam que os comunistas querem “destruir a família” precisamente no que as famílias trabalhadoras ainda resguardam de ajuda mútua e solidariedade.

Nossa arma contra isso são as concepções de Kollontai e Marx: da mesma forma que a resposta do Manifesto Comunista às acusações hipócritas burguesas de que queremos “abolir a propriedade” é chamar atenção para o fato de que o capitalismo já “aboliu a propriedade” para a grande maioria da população, o Manifesto também responde às acusações de que os comunistas querem “abolir a família” afirmando que o capitalismo já a “aboliu” para a grande maioria da população. Isto é, só a burguesia tem a família enquanto unidade social relevante, para a proteção da sua propriedade e herança.

O que sobra para a classe trabalhadora é uma instituição burguesa, que em sua configuração decadente nada lhe interessa. Destrinchemos o problema de forma clara: a jornada dupla das mulheres trabalhadoras, imposta pela exploração capitalista vigente, deteriora as relações de cuidado com os filhos (e ainda por cima, sempre que acontece algum problema neste âmbito, todas as culpas são jogadas às mães trabalhadoras). A desigualdade entre homens e mulheres torna a família um espaço de dependência econômica das mulheres, criando um ambiente de violência doméstica e abuso. A LGBTfobia torna a família em um ambiente de violência contra jovens e crianças. E todas estas questões alimentam as relações de trabalho exploratórias no conjunto da sociedade.

As características que as famílias trabalhadoras ainda resguardam de ajuda mútua e solidariedade nada têm a ver com a instituição da família como desejada pela sociedade burguesa. Essas características são, na verdade, expressões das formas futuras de organização social, que as classes trabalhadoras constroem em suas vidas pela sua experiência diária de resistência ao capitalismo.

São embriões de novas formas de união, nas quais “meus” filhos não serão apenas os “meus” filhos, já que a criança em situação de rua é tão minha responsabilidade quanto responsabilidade de qualquer outro da mesma sociedade, e me importo com ela da mesma forma que me importo com “meus” filhos; nas quais jovens e crianças não estão sujeitos a abusos, violências e expulsão familiar por parte de seus pais; nas quais a união não se irá se basear na dependência econômica de nenhum dos membros, dependência econômica que fomenta a dominação do homem sobre a mulher.

Formas de união nas quais seremos todos parte da “grande família proletária” (Kollontai), onde não existe a ideia de família enquanto unidade separada do restante da sociedade, enquanto divisão entre quem está no espaço considerado “digno”, por ser o espaço “privado”, e quem está nos espaços “indignos”, onde sua marginalização, segregação e exploração são justificadas socialmente.

Estes embriões estão presentes nas redes de solidariedade construídas nas periferias, pelas famílias trabalhadoras que resistiram à sua renda brutalmente afetada pela pandemia. Nos esforços das mulheres trabalhadoras na construção destas redes, na tentativa de criar formas coletivas de ajuda mútua para lidar com as jornadas duplas e triplas, e com a violência doméstica e a proteção contra agressores. Na resistência das famílias trabalhadoras à violência policial e ao genocídio por parte do Estado capitalista. Nas redes de apoio e casas de moradia construídas pela população LGBT em apoio às LGBTs expulsas de suas famílias, em situação de vulnerabilidade social ou de rua.

A direita fascista busca cooptar a classe trabalhadora, com o objetivo de criar uma consciência distorcida em que a defesa dessas espaços de ajuda mútua e solidariedade são conectados com a defesa de um modelo idealizado e patriarcal de família nuclear, modelo correspondente à família enquanto instituição burguesa, que serve à classe que busca destruir todos os espaços de ajuda mútua e solidariedade da classe trabalhadora! Uma consciência distorcida em que a defesa radicalizada de um modelo de submissão da mulher, de violência institucionalizada contra a população LGBT, incluindo crianças e jovens, seja vista como defesa dos últimos espaços em que as classes trabalhadoras vivenciam a solidariedade de classe frente ao mundo hostil e desumanizante da exploração do trabalho, quando a luta comunista busca exatamente a expansão destes espaços!

Este é o ponto nevrálgico que os comunistas precisam ressaltar quando falam do significado real da questão da família no programa comunista e das formas concretas a serem construídas na luta por uma nova sociedade. Nesta luta, a postura radical de princípios pelo fim da LGBTfobia é essencial.

Mas a família patriarcal ainda reina: ainda que liberalizado e quase incontestado, o capitalismo global não pode passar sem ela. E assim será até que os comunistas tenham a clarividência de compreender que o grande combate pelo derrube da burguesia passa também pela abolição da família e por uma sexualidade não reprimida, como defendiam os bolcheviques.

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