Pisque duas vezes se eu estiver em perigo (ou: Sobre os riscos da renegação)

Por Poly Lapine

Filmes de ação ou de super-heróis, com homens e seus rivais, em geral, não são percebidos como filmes masculinistas. Assim, essas tramas produzem mensagens existencialistas e universais. Por outro lado, em narrativas com protagonistas mulheres a tendência é apreendê-las como muito particular, ou seja, que concebe um recorte estritamente feminino. Essa não é uma crítica feminista.

De um lado temos Poor things (Lanthimos, 2023) com representações estereotipadas de uma mulher que está aquém das regras de uma sociedade conservadora. De outro, temos Pussy Island (Zoë Kravitz, 2024) e a construção de uma atmosfera de terror psicológico e manipulações. Dois filmes atuais com protagonistas mulheres: o primeiro trás uma suposta metáfora do desenvolvimento da sexualidade, enquanto o segundo mostra a necessidade vital de conseguir ultrapassar o reino das imagens e das falsas primeiras impressões.

Pisque duas vezes se eu estiver em perigo — diz Frida ao psicólogo do bilionário Slater King.

O pedido ao psicólogo é uma brincadeira que pode salvar Frida de se envolver e ficar literalmente ilhada com Slater King e seus amigos. No entanto, o gesto de piscar duas vezes também remete ao ato de piscar os olhos para corrigir a visão turva e melhorar o foco em algum objeto. Essa alusão ajuda a pensar que não estamos diante de um filme com uma trama usual. Além disso, a primeira direção de Zoë foge da estética cult e de lugares “comuns”, traz um estilo único e um roteiro que subverte a ideologia dominante.

Em contrapartida, o tão esperado Pobres criaturas (Lanthimos, 2023), por mais que venha de uma adaptação de um livro influenciado pela ficção gótica Frankenstein, de Mary Shelley (1918), cai no “clichê” de uma suposta narrativa feminista. Dessa maneira, por mais que o filme busque construir uma crítica social que remeta ao absurdo da lógica vigente, Lanthimos foge do estilo instigante de suas construções estéticas anteriores e de sua capacidade imaginativa de explorar lugares não-tão comuns.

O que ele faz exatamente? O diretor parece traçar o horizonte de uma criatura que tenta se descobrir enquanto sujeito em uma sociedade que a aprisiona, violenta e censura de várias formas. A saída da personagem é uma certa renegação a isso, travestida de inocência ou o contrário: uma inocência travestida de renegação, quase como um “eu não admito os obstáculos que a sociedade patriarcal me impõe e os prejuízos que derivam daí etc., logo posso fazer do meu jeito” ou “como ainda não re-conheço, posso descobrir”.

O roteiro dá, então, a falsa impressão de que esse gesto é não só possível, como também é uma possibilidade de abertura para uma via muito particular para cada “mulher”. Ele também dá a sensação de uma falta de proporção do problema real das mulheres, passando-se como uma narrativa “sensível” e “empolgante”.

Exemplifico (com spoilers): quando a personagem Bella Baxter viaja com um homem mais velho, com o qual ela escolhe fugir (para fugir, inclusive, da possessividade e da falta de limites de seu “pai/criador”), ela é uma “mulher”1 muito mais nova que o parceiro e que, até então, desconhece a sexualidade vivida por um casal heterossexual. Porém, logo nos episódios de relação sexual com esse homem, Bella se mostra totalmente “aderida” àquela lógica da performance sexual heteronormativa.

(Não se trata aí de uma espécie de fetiche heterossexual — o de encontrar uma mulher muito mais nova, inexperiente, mas muito empolgada com o sexo, de modo a ser mais permissiva justamente por não conhecer tão bem o próprio corpo e os próprios limites?).

Bem, no roteiro, tudo se passa como se estivesse muitíssimo divertido para Bella. A empolgação e o prazer sentidos pela personagem são tamanhos, que ela chega a demandar — como uma criança que pede pela repetição de uma brincadeira — pela repetição do ato sexual.

Após uma série de conflitos com esse homem, Bella decide se tornar prostituta para ter dinheiro. Talvez por sua suposta “inocência”, ela, ao se prostituir, age como se aquela situação não lhe trouxesse tanto desconforto e riscos e como se fosse até uma forma de se entreter ou conhecer seu corpo, a despeito da moral social vigente no contexto do filme. Essa situação é abordada de maneira “caricata”, para não dizer surrealista como costumam classificar esse filme —, e demonstra um gesto idealista, como se a personagem vivesse em um outro mundo, apenas porque ainda não conhece as determinações político-ideológicas reais. Esse gesto de renegação fetichista, baseada na crença em um outro mundo, é, de acordo com Žižek (2016), a capacidade de negar a realidade em benefício de uma fantasia.

Até aí, tudo bem, é só cinema, é só uma personagem em uma história fictícia. Mas, será que ao assistir a esse filme, as mulheres têm a sensação de que basta renegar a realidade que vivenciam? Ou o contrário: para a mulher poder renegar a realidade em que vive, o preço seria arriscar a própria vida?

Seja qual for o espaço de criação simbólica que nos permite criar e fantasiar, para a psicanálise essa sempre foi uma operação importante diante do desamparo. Nossa capacidade de aderir a valores religiosos, ideais, costumes, tradições ou crenças compartilhadas operacionaliza em nossa consciência uma referência possível diante do desamparo. No entanto, essa incrível capacidade humana de se mover por afetos ou portar-se de forma cínica e descrente diante de um excesso inassimilável é, muitas vezes, retirada de alguns sujeitos.

Voltando à nossa crítica ao filme, o diretor utiliza um recurso muito desgastado no cinema tradicional: a exploração do corpo nu da mulher/atriz Emma Stone em várias cenas de sexo. Ele traz isso com uma atmosfera que constrói o impulso ao riso: uma mulher que precisa ganhar dinheiro e, para isso, se prostitui, aparecendo nua na tela em situações degradantes. Não é preciso nem entrar em detalhes sobre o que poderia ser trágico em relação à personagem.

Nada acontece, o filme continua na atmosfera de descontração, a personagem assiste aulas de medicina, continua com seu comportamento de renegação, mas este se torna um pouco mais adaptado ou mais consciente da moral social. Com isso, temos um final feliz.

A crítica de Pobres criaturas não é o objeto desse comentário, mas serve para mostrar o descompasso desse filme e o mérito de Pisque duas vezes. Neste, ao contrário da atmosfera psicodélica e fantasiosa de Lanthimos, Zoë (2024) opta por um cenário no qual esse gesto de “renegação” da realidade, por mais que seja buscado pelas personagens (mulheres) do enredo, é trazido com a tensão e apreensão que se encaixam bem na narrativa. Quando a garçonete Frida decide se juntar ao bilionário de tecnologia Slater King e seus amigos para uma viagem, com a expectativa de viver as férias dos sonhos, temos, o tempo todo, a sensação de suspense e de que algo pode dar muito errado.

Frida parece se sentir feliz e aliviada por ter aquela “sonhada” chance de estar com um homem “bonito”, “rico” e “equilibrado” (tal personagem diz que faz terapia, que busca cuidar de seus traumas e BLÁBLÁBLÁ). Existe, então, uma atmosfera de tensão no roteiro, uma desconfiança que ameaça a probabilidade de isso realmente estar acontecendo, e Frida percebe, ao mesmo tempo em que decide ignorar sua intuição. A personagem fica dividida entre a ideologia dominante — essa fantasiosa percepção de que ela seria a mulher “escolhida” por Slater King e que estaria em uma espécie de conto de fadas — e a “realidade” até então vivenciada, de ser uma mulher negra e se sentir “invisível”. Essa divisão que a personagem apresenta se complexifica na interação desconfortável com os outros integrantes da ilha, que estão “curtindo” suas férias.

Por outro lado, essa divisão, ou seja, a sensação de poder experimentar um mal-estar mesmo estando em uma situação “supostamente agradável”, não pode aparecer e é maquiada com as perguntas “está tudo bem?” e “você está se divertindo?”, constantemente respondidas de modo contente e afirmativo pelas mulheres.

O elenco trabalha muito bem sob a estranheza que essa situação causa nas personagens, e a história fica macabra quando ocorre o desaparecimento da amiga da personagem principal da noite para o dia. Frida fica desesperada e desconfiada do fato de nenhuma das outras personagens se lembrarem de Jess e percebe que os homens da ilha estão apagando as memórias de suas companheiras de alguma forma.

Essa descoberta parece fundamental para toda a trama e para o que se segue, mas, ainda melhor que isso, aponta para uma artimanha ideológica infame e muito comum no patriarcado: as memórias dos sujeitos são facilmente apagadas e suas narrativas sofrem deformações, de modo que passam a não se reconhecer e a não reconhecer tão facilmente o que de fato ocorreu nas relações. No filme, por exemplo, a felicidade supostamente experimentada pelas mulheres que estão na “ilha”2 ocorre sob o preço de elas serem torturadas e até mesmo mortas — e isso só é possível com o apagamento de suas memórias.

Uma solução aparece, por acaso, quando Frida é encorajada a beber um líquido que uma mulher mais velha lhe oferece. A figura dessa mulher mais velha é curiosa: ela porta uma verdade, porém, não é capaz de dizê-la à personagem principal. Esse líquido faz com que Frida seja invadida por flashes dos acontecimentos de violência e abuso das noites anteriores. Como complemento de suas reminiscências, assim como ocorre no processo de análise, o acesso do sujeito ao lugar que ocupa em uma determinada situação só é possível por meio de sua fala e quando esta é capaz de trazer à tona o desconforto e as emoções que estão em jogo.

Não temos aqui, um final feliz, mas temos a tensão de embarcar em uma realidade na qual as memórias e a ação ativa das personagens podem não apenas salvar a vida delas, como também trazer um benefício futuro e, por que não, justiça?

Até que ponto, renegar as violências sofridas não é uma forma “forçada” de esquecer os traumas e, por isso mesmo, repeti-los?

Referências:

Kravitz, Z. (Diretora). (2023). Pussy Island [Filme]. Bleecker Street.

Lanthimos, Y. (Diretor). (2023). Poor Things [Filme]. Searchlight Pictures.

Magritte, R. (1929). La trahison des images [A Traição das Imagens].

Shelley, M. (1818). Frankenstein: ou o Prometeu moderno (M. C. Grossman, Trad.). DarkSide Books. (Publicado originalmente em 1818; edição DarkSide em 2017).

Žižek, S. (2006). O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (M. L. De Andrade, Trad.). Boitempo Editorial.

Outras informações: Poly Lapine é uma analista que nunca tem tempo a perder, caminha na fronteira entre mundos e tem o interesse em se aventurar entre o que é conhecido e o desconhecido.

1 Apesar de ter o corpo de uma mulher a personagem tem o psiquismo de uma criança. Isso ocorre porque o Dr. Baxter implanta o cérebro de um bebê no corpo de uma mulher adulta.

2 A ilha de Slater King pode ser uma metáfora para a percepção de isolamento e inviabilidade de narrativizar uma experiência.

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