Por Arthur de Oliveira Machado, Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria.
Reencontrar Marx no marxismo é encontrar o que há de vivo em Marx: em primeiro lugar, que ele é um pensador da Vida. Encontrar Marx, no marxismo, é defender a vida, não compreendida biologicamente, mas, materialmente: a vida que dá a si mesma sentido, e constrói suas significatividades sobre e a partir de si mesma, na luta contra todos que, com os seus poderes, cargos ou mandatos, ameaçam a sua existência.
Lenin admite, em 1908, numa carta endereçada a Gorki, da necessidade de compreender o exercício filosófico como um campo tático. Nesta carta, ele reivindica a necessidade dos intelectuais do partido se posicionar de alguma maneira em relação a doutrinas perigosas, visando sempre a inserção desta posição tática no horizonte estratégico dos combates (LENIN, 2005). Na concordância com a concepção de Lenin, este texto possui como seu ponto inicial o objetivo de buscar ser didático e claro. A primeira dificuldade que a filosofia marxista enfrenta é sempre a de ser compreendida e, na maioria das vezes, ser compreendida por si mesma— daí a preferência por conceitos requintados que ficam, inexplicados, garantindo o privilégio da complexidade da incompreensão. Este texto, portanto, com a pretensão introdutória que possui, arrisca até à repetição exaustiva de certas explicações na tentativa de clarificá-las ao seu máximo. O segundo ponto, o tema realmente nuclear desta discussão, é o esforço de encontrar o terreno que Marx plantou e ergueu seu edifício. No encontro destes pressupostos, pretende-se evidenciá-los, na tentativa de não perdê-los outra vez, e, mais que isso: faz-se necessário que o exercício da tática filosófica dispute a inserção e o reencontro deles, enquanto uma peça viva da engrenagem conceitual marxiana, nas metas, propósitos e estratégias do marxismo de nosso tempo. Sendo um exemplo de um pensamento filosófico que não possua temor em questionar seus fundamentos.
O exercício filosófico, por excelência, possui em sua natureza a capacidade de efetuar uma espécie de reflexão e da verificação dos pressupostos e fundamentos que, durante a ação cientificamente guiada — a análise precisa da realidade concreta que exige e fundamenta a conduta revolucionária, como no exemplo do socialismo científico, do marxismo-leninismo, etc. — , não são suscetíveis de serem analisados. Isto acontece porque dentro de cada disciplina científica, de cada investigação que possui metodologias rígidas de análise dos dados obtidos, os fundamentos que comportam o método são só capazes de enxergar e analisar o que já estiver prescrito dentro do que fundamenta o método. É notável que Marx nos apresente, e em sua obra econômica o faz exaustivamente, sempre um esforço em recuar e encontrar o alicerce que possibilita aquele fundamento. Como se ele recuasse durante seu empreendimento científico sempre a uma verificação dos pressupostos daquela ciência econômica: pressupostos tais que a própria ciência econômica foi incapaz de compreender. Por isso, não são raras vezes que n’O Capital Marx admite o erro — seja de Smith, Ricardo ou Nassau W. Senior, etc — como sendo ingenuidade de um empreendimento irrefletidamente circular por parte de seus operadores, de pensadores que não perceberam as pressuposições absolutamente burguesas em suas disciplinas. Marx, vez ou outra, nos retorna acautelando, nas palavras deste: como um pensamento tautológico.
Mesmo anterior ao seu grande empreendimento, antes de sua “Magnus Opus”, na nossa conhecida Tese Onze, quando devidamente compreendida sob contexto de sua localização, ou seja, dentro de sua circunstância intelectual histórica, encontra-se a exigência do fim da filosofia interpretativa somente enquanto fim de pensamentos especulativos que limitaram-se em continuar sendo pensamentos especulativos. Marx, portanto, direciona muitas críticas dessa natureza aos ideólogos que eram incapazes de produzir categorias e análises sobre os próprios fundamentos idealistas e burgueses de suas filosofias, porque, de fato, tais interpretações eram incapazes de operar qualquer mudança no mundo, justamente em razão da circularidade que comportavam. E esta crítica, que também se tornara crítica da crítica, ousou lançar-se até como crítica da Crítica Crítica (“Kritik der kritischen Kritik”, ou por nós conhecida como “A sagrada Família”), alertou cuidadosamente aos materialistas, anarquistas, e demais vertentes, do perigo de algumas categorias fundadas sobre uma interpretação idealista, burguesa, demonstrando potencial infertilidade nestas investigações que tinham “sobre o ar” os seus fundamentos.
É verdade também que Marx nos apresenta, contra Max Stirner, no texto por nós conhecido como “A ideologia Alemã”, o perigo de compreender categorias como História ou Classe de maneira abstrata, determinante às individualidades e independente delas, como fossem sujeitos autônomos que determinassem incondicionalmente a conduta humana e não, de maneira igual, o contrário. Em outras palavras, Marx mesmo crítica a noção de relações sociais tida desta maneira (como, de modo mais complexo, propôs o sistema de Durkheim). E ele afirma claramente que somente em aparência poderiam ser tais categorias, abstratas e universais, independentes dos próprios indivíduos que a constroem. Assim mesmo criticou a famosa categoria vinda da filosofia alemã conhecida como Alienação (no sentido de entfremdung) e que se explica sendo o pensamento humano que coloca fora de si a própria essência de si. Feuerbach, por exemplo, assim o fez criticando o cristianismo, sendo este responsável em colocar a essência humana, através da fé, em Deus, algo além-humano. Porém, aos “materialistas vulgares”, para vencer a alienação, bastava modificar o pensamento, pois alienar-se era um pensamento humano que desconhecia a própria essência humana, pondo-a fora de si (em Deus, na Ideia hegeliana, na História, no Direito), definindo como uma substância estranha a si mesmo [Fremde, do alemão: estranha]. Marx opôs-se, e disto encontra-se a famosa frase de que não é a consciência humana que determina, ou pode determinar, o seu ser; pelo contrário é seu ser social mesmo que determina a consciência e suas formas de pensamento. Em outras palavras, não basta mudar-se o pensamento para mudar-se a vida, pois é a vida humana mesma, em todas suas dimensões, que produz o pensamento, que determina a consciência. Por essa influência da tradição na significatividade da vida humana, dos “mortos sobre os vivos”, e da história, é que Marx não ignora ou dispensa, contudo, a religião, a ideologia e todos outros fenômenos que do ponto de vista da análise ontológica rigorosa, filosófica, por assim dizer, são superficiais ou infundados. A ideologia, por ser a expressão de uma realidade social não é por isso falsa, mas pode vir a ser como “(…) a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular” (MARX, 2010 p., 174). Por assim ser, toda iconoclastia e crítica, enquanto somente crítica, não faz com que uma forma de pensamento, uma figura ideológica, deixe de existir. Porque à vida mesmo é que estas formas fazem e dão sentido.
Marx operou com os conceitos possíveis de sua época, mas o seu fundamento é em si mesmo revolucionário. Pois ele é um dos maiores pensadores de todos os tempos simplesmente porque conduziu, na crítica ao idealismo de Hegel, um cuidado ao lidar com as imprecisões das novas vertentes de pensamento que “(…) pontificavam na Alemanha tratando aquele grande pensador pensador como um “cachorro morto”” (MARX, 2013 p., 117). Sua escolha conceitual, em especial o conceito de “materialismo”, dependem de maneira muito rigorosa de seu contexto. Pois, estando Marx localizado na fronteira entre a vertente hegeliana e suas confrontativas vertentes filosóficas, matéria, materialismo e material significavam, indo além da filosofia de Hegel (que dialeticamente suprimia a relação sujeito-objeto em Espírito) e aquém do subjetivismo abstrato de Stirner, o que compreendemos hoje como “subjetividade”. Quer dizer, justamente entre o espírito do idealismo derradeiro e o novo cientificismo que protestava pelo fim da metafísica é que Marx encontra conceitos operáveis e os fundamenta esquematicamente, com toda alta complexidade devida, naquilo que ele, do seu modo, chama mesmo de ‘existência Material’: ou aquilo que chamamos de Vida subjetiva.
E como dito no início deste texto, confere à filosofia também um empreendimento tático, sempre sob o horizonte da estratégia. Contudo, não compete às nossas intenções apresentar um balanço das escolhas, se acertadas ou não, dos caminhos, se corretos ou incorretos, que o marxismo traçou no plano intelectual. Neste sentido, no entanto, podem-se evidenciar duas correntes marxistas igualmente importantes e substanciais na história da teoria dos textos de Marx. Essas tendências poderiam ser resumidas em (1) os que separam dois períodos, o de Marx filósofo sobre a essência humana, alienação e ideologia e do Marx cientista econômico e sociólogo; e (2) os que defendem não haver uma ruptura considerável no pensamento do jovem Marx e de seus escritos tardios. No entanto, ambas correntes de pensamento afirmam que, independente haver ou não continuação teórica, o miolo do pensamento de Marx se localiza em pensar a realidade. Na concordância da congruência teórica dessas distintas interpretações, poderíamos inferir, no entanto, três fases em que Marx se ocuparia da realidade, mas de realidades em níveis distintos:
- Dos textos, os datados até 1845, pode-se afirmar: se ocupam com a realidade negando ou reinterpretando a herança da filosofia alemã ao mesmo tempo em que dialoga com as vertentes insurgentes naquele período. Nestes textos forjam-se os princípios fundamentais da teoria da alienação e, principalmente, da divisão do trabalho, classe e ideologia; o abandono do hegelianismo, o flerte com o materialismo de Feuerbach e a crítica a este pensador posteriormente. Neste contexto também é possível verificar que todos conceitos encontram-se determinados e relacionados diretamente àquilo que Marx chama de “modo de produção e reprodução da própria vida”. Nesta circunstância que a chamada “Divisão do Trabalho” (razão e raiz da propriedade privada) ganha os primeiro esforços de teorização, e verifica-se que nela, na “(…) divisão do trabalho, está dada a possibilidade, e até a realidade, de que as atividades espiritual e material — de que a fruição e o trabalho, a produção e o consumo — caibam a indivíduos diferentes” (MARX, 2007, p., 36). Neste formato, também está fundada a contradição dos interesses dos indivíduos com o interesse coletivo, que não existe enquanto simples representação, “(…) mas, antes, com dependência recíproca aos indivíduos entre os quais o trabalho está dividido” (ibidem). Esta compreensão de divisão, que fundamentará todas as demais (a força de trabalho estranha a si mesmo, diga-se: alienação; a divisão social do trabalho enquanto posses individuais, se somente da força de trabalho ou dos meios de produção, em outras palavras: classe; dos interesses coletivos, não enquanto meras representações do Espirito que se autorrealiza, ou seja: ideologia), inaugura também a contradição entre as possibilidades de realização das individualidades na produção e reprodução da vida, e que não tem outra significância senão o de atualização da própria vida que se vive, com toda sua significância, que sai e percorre por si mesma e que, em uma tautologia, define-se como o que se dá vivendo;
- Esta esfera temporal inclui os textos formulados após a metade de 1840. Nesta seção, encontra-se a gênese do marxismo político. Trata da realidade em um nível não fundamental, ou ontologicamente inverificado. Mas cujos pressupostos podem ser encontrados nos anos anteriores e fundamentados posteriormente. Pode-se incluir como tema central trabalhado neste período as discussões histórico-políticas, como ao exemplo do mais famoso panfleto do mundo, “O Manifesto do partido Comunista”. Contudo, outros textos desse período possuem os mesmos ares, como “As lutas das classes sociais na França” e 18 Brumário, etc. Após esses escritos, Marx se dedica em trabalhar, novamente, nos textos de fundamentos e pressupostos esquematicamente verificados sobre a vida material; conceberá então, na década de cinquenta, após o estudo dos clássicos da economia nacional, sua teoria do Trabalho vivo;
- Na terceira fase, inaugurada e representada pelo que conhecemos como os Grundrisses e a tarefa de edição e publicação, logo mais tarde, d’O Capital, Marx toma a ciência econômica como centro, mas sempre no exercício de recuo a uma espécie de “metaeconomia”. Nesta fase, inúmeras demonstrações documentais buscam exaustivamente afirmar o que é possível encontrar desde o início. É conhecido deste período o momento em que se vê a dialética de Marx em ação, não como um fundamento da materialidade, da natureza ou do que quer que seja, mas como um “método de exposição”. Porém, exposição compreendida enquanto desencadeamento e articulação dos dados e dos conteúdos; em suma, do objeto anteriormente analisado (MULLER, 1982) — que dá à própria obra marxiana a sensação ao leitor de que aquelas categorias se desdobram, em sua totalidade, por conta própria. Na obra econômica, a divisão do trabalho retorna com novos fundamentos técnicos, mas chegando ao já conhecido resultado da fase jovem de Marx: responsável por mutilar o trabalhador, atacando-o na raiz de sua vida. Com a introdução da análise da Mercadoria, novamente retorna a alienação, analisada na forma do chamado “fetichismo da mercadoria”, ainda no início da obra, cuja natureza consiste em desconhecer, ou ainda “estranhar”, na sociedade, o dispêndio de trabalho vivo na produção de um valor de uso, de um utensílio utilizado. E sobretudo — o que este texto pretende se dedicar logo em seguida — a mais famosa elaboração de Karl Marx sob a herança da economia política inglesa: as considerações sobre a mais-valia. Enfim, mesmo que este pensador tenha incorporado a teoria do valor-trabalho, sempre de maneira cuidadosa, ao seu pensamento, sua crítica a ela só possui sentido quando reconhecida a importância operada no giro ontológico do conceito de verdade que ele mesmo realiza: a verdade na argumentação econômico-política marxiana só procede impecavelmente porque possui seu fundamento “metaeconômico”, como temos chamado, assentado sobre uma filosofia da Vida.
A questão necessária a se evidenciar, ainda mais compreendendo haver uma esfera tática de disputa na disciplina filosófica, é que toda e qualquer categoria que Marx emprega tem como ponto a “materialidade” neste sentido muito particular: de que nasce nas possibilidades individuais da produção e reprodução da vida subjetiva. Quando acusados de economicistas, o companheiro de Marx, Friedrich Engels, responde em carta a Joseph Bloch à acusação mais famosa que depõe contra O Capital. Engels é admiravelmente fiel ao seu colega preciso na defesa: “De acordo com a concepção materialista da história, o elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida real” (ENGELS, 2009). A realidade material não é outra coisa senão o conjunto de componentes que preenchem a vida de um indivíduo, historicamente localizado, e que a sustentam. Economia, neste sentido, é a ciência que analisa a produção e reprodução da vida. Além disso, havia uma razão de ser a economia clássica dona de privilegio na investigação de Marx. Engels, em mesmo local, afirma:
“Marx e eu somos aqueles a quem, parcialmente, culpar pelo fato que as pessoas mais novas frequentemente acentuarem o aspecto econômico mais do que o necessário. É que nós tínhamos que enfatizar estes princípios vis-à-vis nossos adversários, que os negavam.”(Ibidem).
Apesar disso, dessa acentuação e atenção à razão econômica das coisas, há, sobretudo, como tem se repetido, um apelo à vida na Economia política de Marx. O melhor exemplo é também seu desenvolvimento mais conhecido. É desenvolvendo as leis do Mais-Valor, através da teoria clássica de Valor-Trabalho, que é possível verificar tal fundamento presente não só como pressuposto, mas como garantidor do sentido exploratório que o Mais-Valor possui. E neste sentido, evidencia ao mesmo tempo o caráter abstrato da disciplina econômica.
Quando afirma-se aqui que na base dos textos econômicos de Marx é ainda uma filosofia da vida que põe neles sentido, pode-se exemplificar—com o perdão, pelo leitor avançado, da repetição e simplicidade exigida pelo cuidado didático—da seguinte maneira:
- de acordo com o ponto de vista econômico, das leis eternas da troca de Mercadoria, o trabalhador, por não possuir os meios de produção, vai ao encontro do capitalista, que possui tais meios, e vende a ele sua força de trabalho. A Força de Trabalho, nesta circunstância, é como outra mercadoria qualquer, possui um Valor de Troca e um Valor de Uso. O Valor de Troca de uma mercadoria é sempre determinado pelo Tempo de Trabalho Socialmente Necessário para a produção daquela mesma mercadoria; em outra palavras, o Valor de uma mercadoria é determinado pelo Tempo que em média uma “organização social” (as empresas, fábricas, etc.) leva para produzi-la. Portanto, o preço de uma mercadoria é condicionado ao seu Valor e o Valor desta mercadoria é sempre relativo ao tempo de trabalho (não individual, mas social) que leva sua produção. Como já afirmado, a Força de Trabalho é uma mercadoria que, como qualquer outra, possui seu valor. O Valor da Força de trabalho, a saber, é também determinado pelo Tempo de Trabalho Socialmente necessário para produzi-la, ou reproduzi-la (repor a qualidade da habitação, da nutrição básica, vestuário, educação, etc). Desta maneira, o capitalista quando compra a Força de Trabalho ao contratar o seu vendedor (o trabalhador) paga somente o Preço da Força de Trabalho (conhecido como salário), que tem por base o Valor da Força de Trabalho. Porém, se o capitalista paga por uma quantidade determinada sobre o Valor da Força de trabalho, assim como toda e qualquer mercadoria, o que é utilizado, da mercadoria comprada, é sempre seu Valor de Uso. E aí mora a questão. O Valor de Uso da mercadoria lápis se esgota utilizando-o e sua utilidade é escrever; o Valor de Uso da mercadoria martelo esgota-se na sua deterioração física e sua utilidade é bater, pregar, etc…; e, do mesmo modo, o Valor de Uso da mercadoria Força de Trabalho esgota-se enquanto se trabalha através do dispêndio mental, de energia e força, porém: o Valor de Uso desta rara mercadoria é o de criar mais valor que ela mesma possui. Dessa maneira, em um exemplo de fácil compreensão, se o turno de trabalho é de oito horas (8h), fica bem possível que somente quatro horas (4h) baste ao trabalhador para produzir aquilo que recebeu em seu salário diário, comprar os itens necessários à subsistência, outros artigos de conforto (que são determinados socialmente, como cigarros, cerveja ou vinho, etc) e retornar alimentado, talvez saudável, para o próximo dia de serviço. Àquela primeira metade da jornada de trabalho de 4h Marx dá o nome de Trabalho-Necessário, ou seja, o que o trabalhador precisa trabalhar para produzir o valor equivalente ao Preço investido pelo capitalista. Porém, nas próximas 4h de jornada dar-se-á o Mais-Trabalho, e dele restará um Valor Excedente que ficará no chão da fábrica e, portanto, ao dono deste chão. Isso acontece porque, diferente de outras mercadorias que quando utilizadas em fábrica apenas transferem seu Valor de Troca à mercadoria em produção, a força de Trabalho é a única que, depois de transferir às mercadorias em produção o seu Valor de Troca, ou seja, do trabalhador produzir o equivalente exato ao seu salário em mercadorias, ele pode, o trabalhador, no restante da jornada, continuar produzindo um valor excedente, que não lhe será pago. Produzindo assim o Mais-Valor.
O exemplo anterior, contudo, ao ser observado pelas leis eternas da troca de mercadoria, da teoria do Valor, pelo ponto de vista econômico, não possui qualquer problema. E assim mesmo afirma Marx: em uma esfera guiada pela “Igualdade”, de indivíduos que se relacionam um com outro como iguais possuidores de mercadoria, e “Propriedade”, cada um deles dispondo somente o que é seu, o trabalhador vende sua única mercadoria (Força de trabalho), o capitalista utiliza o seu Valor de Uso pagando-a adequadamente pelo seu Valor de Troca.
Esse é o serviço específico que o capitalista espera receber dessa mercadoria e, desse modo, ele age de acordo com as leis eternas da troca de mercadorias. Na verdade, o vendedor da força de trabalho, como o vendedor de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de uso. Ele não pode obter um sem abrir mão do outro. O valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco a seu vendedor quanto o valor de uso do óleo pertence ao comerciante que o vendeu. O possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia de força de trabalho; a ele pertence, portanto, o valor de uso dessa força de trabalho durante um dia, isto é, o trabalho de uma jornada. A circunstância na qual a manutenção diária da força de trabalho custa apenas meia jornada de trabalho, embora a força de trabalho possa atuar por uma jornada inteira, e, consequentemente, o valor que ela cria durante uma jornada seja o dobro de seu próprio valor diário — tal circunstância é, certamente, uma grande vantagem para o comprador, mas de modo algum uma injustiça para com o vendedor. (MARX, 2013, p., 299).
O ponto de apelo que Marx parte, que faz também com que parta qualquer sentido exploratório do capitalismo, cuja natureza interna é a de cada vez mais obtenção de Mais-Valor, encontra-se no tempo. Todo Valor para Marx se produz sempre sob um dispêndio de tempo, e dispêndio de tempo, direta ou indiretamente, é dispêndio de vida. O Mais-Valor produzido após o trabalho necessário para equivaler ao próprio salário, diz Marx, ocorre no mais-trabalho, que “(…) pode ser chamado de trabalho não pago” (MARX, 2013, p., 605). Afirmando em outras palavras, tempo de trabalho, pago ou não, ocorre durante o tempo de Vida. Assim sendo, a teoria de Marx opera com o chamado giro ontológico, pois, a verdade das categorias econômicas não está mais fundamentadas sobre o ar, sobre o dinheiro ou outra forma econômica mais, ou menos, abstrata. A exploração não é de um Valor de Uso que produz Valores de Trocas, ou abstrações semelhantes. No modo de produção capitalista explora-se, segundo Marx, o tempo, cujo símbolo é o relógio de fábrica, usurpando a Vida nas suas diversas dimensões: da subjetividade do corpo, que é transformada pelo trabalho, da dimensão intelectual através do trabalho vivo ou do possível tempo livre. Para Marx, a superação da sociedade capitalista só faz sentido porque sob o regime dela “(…) produz-se tempo livre para uma classe transformando todo o tempo de vida das massas em tempo de trabalho” (MARX, 2013, p., 601). E até mesmo a sua teoria socialista (que fica esboçada em passagens d’O Capital, um livro cujo objeto de estudo não é propriamente a transição socialista), tem sua verdade firmemente fundamentada sobre algo tal como a Vida. E nela somente que reside o seu sentido. Não são raras as vezes que Marx, para provar seu ponto, não recorre aos cálculos. Apesar de tratar o exercício econômico como uma séria disciplina que comporta a análise da vida real, mas que, enquanto abstrata, com seus cálculos pouco pode afirmar sobre a experiência de exploração da vida, ao longo do texto muitas vezes recorre a panfletos fabris. Um exemplo disto é o panfleto dos operários de fiação de Blackburn, de 1863, que é anexado às notas d’O Capital. Nele, traz-se um pedido de aumento de salário, diminuição do “sobretrabalho” em nome de operários cuja solicitação maior é para que mantenham-se vivos.
Aparece, como demonstrou-se, o berço das categorias teóricas e do pensamento de Marx: algo simples e básico — por si só, quer dizer, sem o aporte técnico e os ares neopositivistas, é cientificamente irrelevante — , tal como vida real dos sujeitos. Por outro lado, no marxismo, já são bem conhecidas as categorias que encontramos transcendentalidade, que estão além de toda particularidade: historicidade, classe, trabalho, dentre algumas outras. Embora respeitável, importante e necessária, essa interpretação já paradigmática não conseguiu responder a questão sobre o ímpeto que moveu Marx a desenvolver e dedicar toda a própria vida ao estudo minucioso do sistema capitalista, possibilitando um suporte à necessária superação de sua mentalidade e modo de produção. Além disso, após o caducamento de uma dialética na realidade, tornam-se categorias decrépitas para resolver e disputar questões do nosso tempo: como da subjetividade, sob o prisma marxista. Disputa que, inegavelmente, as últimas revoluções burguesas do pensamento liberal têm tido êxito em pleitar, muito embora, a liberdade das subjetividades, sob o sistema capitalista, existe meramente na conveniência aparente. Pois, neste modo de produção, muito se pode mudar enquanto uma imagem de mundo sem necessariamente violar o próprio funcionamento dele. Assim justifica-se a necessidade de recuperação do adágio de Lenin a Gorki, que, como repetido aqui, evidenciou a necessidade de disputa filosófica enquanto uma disputa tática.
A necessidade da recuperação desta tese leninista e, sobretudo, “deste Marx” ocorre justamente pelo período em que nos encontramos, no qual a vida humana é desleixada sob o nome de universais e categorias abstratamente superficiais; em nome de salvar a “economia nacional”. Porém, as abstrações escondem o que verdadeiramente ocorre, a saber, o benefício dos bilionários que surpreendentemente cresce em meio ao caos: “Riqueza dos bilionários cresce durante a pandemia e atinge marca recorde de US$ 10,2 trilhões”, diz a manchete de jornal; ou ainda, ‘Fracasso moral catastrófico’: OMS condena concentração de 99,9% das vacinas por países mais ricos, enuncia Microsoft News. Por outro lado, aos que acumulam, não riquezas, mas, somente esperanças na defesa diária de continuarem em pé, as manchetes anunciam a barbárie que Marx, com sua lucidez perpétua, anunciava em germe: “Polícia apreende 33 cilindros de oxigênio escondidos por empresa em Manaus para fim de especulação financeira”.
Aprendemos que a natureza do capital é a multiplicação dele mesmo, enquanto geração de Valores excedentes ou de preços cada vez mais especuláveis. Sabemos que a moral do capital é parcialmente a mesma que César queria à sua esposa (“mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”): ao capitalismo, basta parecer. E o capital leva ao cabo sua tarefa natural, mesmo na contradição de exterminar o próprio trabalho que ao capitalista gera valor. Porque se a natureza do capitalismo é a obtenção de Mais-Valor do tempo de trabalho, do tempo de vida alheio e apossado, isto significa afirmar que sua natureza é da exploração da vida. Em outras palavras, sua natureza é dessa usurpação do tempo de vida, que, com a naturalidade da correnteza dos rios, flui, pois, naturalmente, em direção a nada menos que a morte. Em tempos da recuperação dos materialismos vulgares, de discussões tidas necessárias há cinquenta anos atrás, o fundamento de Marx é asfixiado sob algum economicismo ou leitura parcial da intersecção de forças que preenche e permeia a vida material dos sujeitos.
Os grandes nomes da ideologia que hoje ganham espaço de análise nas mídias e nos jornais são os mais avançados da mentalidade científica. São cientistas econômicos, mas de uma economia que, segundo Marx, chama-se vulgar — vulgar porque não capilarizada conceitualmente na produção e reprodução da vida material, da vida subjetiva —, que nutre sua preocupação ao Produto Interno Bruto ou compreendem os indivíduos como trabalho, mão de obra escalada ou ociosa, e sempre determinados a uma certa organização social. E de fato, são importantíssimos à compreensão da sociedade. Antagonicamente à economia, encontram-se localizados os biólogos e médicos — cuja importância no atual cenário é incontestável, inegável, tornando qualquer agradecimento incapaz de reconhecer tamanha importância; incapaz de expressar a gratidão equivalente à atuação destes mesmos, que seja na pesquisa ou na linha de frente, depositam seus esforços diariamente, pondo em risco a única coisa que possuem, suas vidas, e em razão de outras. Porém, estes, incompreendem as determinações sociais fundadas sobre o modo de vida, e que leva ao descumprimento das normas e orientações, que acabam por sendo tomadas, em um subjetivismo abstrato, por irresponsabilidade. Por outro lado, um marxismo maduro, capaz de não fragmentar, na análise, os componentes da totalidade material, determinando o funcionamento do todo a uma de suas partes, possui privilégio interpretativo; pois, é um marxismo que não existe em compreender a realidade histórica somente a partir da economia vulgar, da ciência social e política ou da filosofia, mas, antes, da conjunção de todas estas, verificando que é na “(…) intersecção de numerosas forças, uma série infinita de paralelogramos de forças, que resulta em um dado evento histórico.” (ENGELS, 2009). Além disso, é necessário a este marxismo manter à vista que tal intersecção é nada menos que uma contradição formada das, e pelas, vontades subjetivas da Vida individual (Ibidem).
E, ao encontro do princípio do texto, afirma-se, portanto: a tática da filosofia marxista é encontrar este Marx que verificou uma subjetividade material capaz de lidar com as filosofias da subjetividade abstrata de nosso tempo. Mas, localizada dentro do horizonte estratégico que é o de reencontro de um Marx perdido no marxismo. É a volta a este pensador e a gênese de seu pensamento. Porém, voltar a Marx não se faz como um impulso idealista de tentar replicar suas interpretações, já complexificadas pelo devir histórico e pelas revoluções burguesas, aos dias de hoje. Encontrá-lo é, dentro de um marxismo enrijecido, responder taticamente às necessidades que a realidade concreta nos impõe hoje como tarefa, que a história dos conceitos desafia todas e todos que ousam pensar sobre a emancipação humana, retornando ao impulso primeiro de um pensador que, há muito tempo já morto, foi impedido de vivenciar as tentativas e êxitos da realização de seu pensamento e das crises de algumas destas realizações. A volta a Marx, encontrando-o no marxismo de nossos dias, é um retorno ao fundamento que moveu um dos sujeitos mais incompreendidos da história das ideias, mas que encontrou a verdade do mundo naquilo que hoje mais ele carece. Isto é, a saber, na esquematização rigorosa da vida subjetiva.
Por fim, reencontrar Marx no marxismo é encontrar “o que há de vivo em Marx: em primeiro lugar, que ele é um pensador da Vida.” (HENRY, M. 2014). Encontrar Marx, no marxismo, é defender a vida, não compreendida biologicamente, mas, materialmente: a vida que dá a si mesma sentido, e constrói suas significatividades sobre e a partir de si mesma, na luta contra todos que, com os seus poderes, cargos ou mandatos, ameaçam a sua existência.
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