Por Ruy Mauro Marini. Traduzido por Pedro Araújo. Via Cuadernos Políticos
Uma das características da sociedade dependente é o considerável grau de autonomia relativa que o Estado goza. Fundamentalmente, isso se deriva de uma lei geral da sociedade capitalista, segundo a qual a autonomia relativa do Estado está inversamente relacionada à capacidade da burguesia levar adiante sua dominação de classe; em outras palavras, um Estado capitalista forte é sempre a contrapartida de uma burguesia fraca.
Porém, colocado assim, isto não faz senão orientar a investigação do problema, sendo necessário passar à indagação do que é que determina essa fragilidade da burguesia. Deixando de lado os fatores históricos, que não podem ser examinados senão no marco das sociedades capitalistas concretas, é possível indicar, neste sentido, alguns elementos gerais que permitem orientar a solução do problema em países como os nossos.
Um deles decorre de que, nesses países, as estruturas pré-capitalistas, ainda que articuladas e integradas sob a dominação do modo de produção capitalista, são objeto de um processo lento de absorção, enquanto que, em condições de dependência, o mesmo modo de produção capitalista encontra dificuldades para generalizar a mais-valia relativa e impedir assim a tendencia à fixação da mais-valia extraordinária (o que se expressa nos obstáculos à nivelação da taxa de lucro). Em consequência, as frações burguesas dominantes, que correspondem ao desenvolvimento objetivo do modo de produção, se encontram imersas em um conjunto de classes e frações de classes que se baseiam em modos de produção distintos, embora subordinados, ou em fases mais atrasadas do desenvolvimento capitalista.[1] Este contexto em que se enquadra a dominação burguesa nos países dependentes explica a debilidade que a caracteriza e responde, em grande medida, ao reforçamento do Estado, fundando a autonomia relativa deste em relação à burguesia.
De outro ponto de vista, nos deparamos com o fato de que as burguesias dependentes se encontram ligadas à burguesia internacional e cada vez mais integradas à mesma. Esta ligação e crescente integração não exclui, porém, a diferenciação – e, em certos casos, inclusive a oposição – de seus interesses a respeito desta última, fenômeno que se designa mediante à categoria de “cooperação antagônica”.[2] As burguesias nacionais ou, para evitar confusão, as burguesias nativas, mesmo quando optam conscientemente por integrar-se à burguesia imperialista, têm que apoiar-se no Estado, enquanto instrumento de intermediação capaz de levar a cabo este processo sem que ele implique na destruição pura e simples da burguesia nativa. Nesta qualidade, atuando como intermediário no processo de convergência da burguesia dependente com a burguesia imperialista, o Estado vê acentuar-se ainda mais sua autonomia relativa e, portanto, sua capacidade de ação em relação à economia dependente.
Finalmente, na medida que a situação que acabamos de indicar implica que o Estado dependente se encontra também referido à burguesia imperialista, as contradições que se estabelecem no seio desta operam no sentido de ampliar sua autonomia relativa, agora em relação à burguesia imperialista. Os estudos sobre a dependência, na medida em que foram formulados em um período que a hegemonia norte-americana sobre a América Latina, e mesmo a nível mundial, era absoluta, obstaculizando contradições agudas entre a burguesia norte-americana e outras burguesias imperialistas, não outorgaram a devida importância a este fato. A atual crise capitalista mundial, ao agudizar as contradições inter-imperialistas, nos obriga a dar-lhe maior atenção. Sobretudo pois, como veremos adiante, essas contradições não se desenvolvem somente no plano externo da economia dependente, isto é, no marco do mercado mundial, senão que se convertem, por efeito da integração imperialista, em contradições internas dos países dependentes.
Assim, por qualquer ângulo que consideremos a autonomia relativa do Estado em nossos países, esta somente pode ser entendida como resultado das contradições de classes inerentes à situação de dependência. Fica, portanto, evidente que essa autonomia tende a acentuar-se ao se apresentar uma crise no processo de reprodução do capital[3] em nossos países, dado que toda crise agudiza as contradições de classes. Por esta razão, ao considerar as perspectivas da atual crise brasileira, nossa atenção se dirige preferencialmente ao Estado, devido à margem de autonomia que a crise lhe dá para projetar um projeto de superação da mesma.
É conveniente observar que a análise da crise como tal não constitui o objeto deste trabalho, ainda que o leitor possa dar conta de algumas hipóteses relativas à ela que se encontram na base do meu raciocínio. No entanto, o que me preocupa aqui é a sinalização de algumas tendências que, em decorrência da crise, estão surgindo no Brasil e que se expressam principalmente através da intervenção do Estado. O exame destas tendências pode ser de interesse para avançar na compreensão dos efeitos que a crise mundial está provocando na América Latina e a influência que podem ter no desenvolvimento futuro de nossos países. Sobretudo porque, ao ser a economia brasileira uma das economias com maior desenvolvimento relativo no subcontinente, juntamente com México e Argentina, a análise de suas reações diante da crise mundial, ou pelo menos de algumas que nos chamaram atenção, permite, ainda que não seja senão por contraste, iluminar melhor as causas do ciclo depressivo que afeta hoje a maioria de nossos países, assim como as possíveis respostas que podem oferecer-lhe.
Clarifiquemos, inicialmente, uma pergunta que o leitor pode fazer-se: a economia brasileira se encontra realmente em crise, visto que seu produto interno bruto cresceu mais de 8% em 1976? A primeira coisa a ter presente é que esse aumento do PIB no ano passado se deu já no marco de uma desaceleração do crescimento econômico do país, iniciada em 1974 e acentuada em 1975. Em grande medida, esse crescimento é derivado da mobilização da capacidade ociosa motivada pela recessão de 1974-1975, não implicando, pois, que se tenha registrado um montante considerável de investimentos produtivos, capazes de assegurar o sustentamento da recuperação. Além disso: o crescimento do ano passado se realizou na contramão dos objetivos estabelecidos pelo governo, que não admitia um índice de aumento do PIB superior a 5%, em vista da acentuação das pressões inflacionárias. Em consequência, a inflação brasileira em 1976 foi superior a 40%, após manter-se situada em nível sempre inferior a 20% nos bons anos do “milagre”, o que tem obrigado o governo a reforçar seus controles para garantir este ano uma taxa de crescimento mais reduzida e afirmar com isto sua política anti-inflacionária.
Isto dito, entremos na matéria. O que interessa destacar, antes de qualquer coisa, é que a crise da economia brasileira, ainda que influenciada pela crise mundial, conta com fontes próprias, que se encontram localizadas no setor de manufatura industrial. Recordemos que a industrialização no Brasil tem seguido a pauta geral latino-americana ou, mais precisamente, dos países latino-americanos de maior desenvolvimento relativo: iniciada nos anos 20, se acelera após a quebra 1929 e ganha forte impulso com a guerra mundial. Por volta de 1950, este processo havia gerado um setor manufatureiro já consolidado e, a partir de então, a economia brasileira começa a gerar seu próprio ciclo económico.
Precisemos este ponto. Ao sustentar que o ciclo econômico brasileiro tem determinações próprias, não pretendemos negar a forte influência que sofre por parte da conjuntura internacional, senão tão só afirmar que o dito ciclo não constitui um mero efeito desta, nem a reflete de maneira mecânica. A atual crise brasileira, por exemplo, surge concomitantemente com a alta dos preços internacionais do petróleo, cujo impacto na economia brasileira é compreensível, se considerarmos que esta abastece menos de 20% do seu consumo interno com a produção nacional. No entanto, mesmo que a crise petroleira não houvesse se abatido sobre o país, este não teria deixado de experimentar a desaceleração de seu crescimento econômico, e inclusive de incorrer em um ciclo recessivo, por volta de 1974.
Isto porque se esgotava então o modelo de reprodução capitalista que se implementara no Brasil, durante a expansão de 1968-73, e se imporia uma alteração do mesmo, para assegurar uma nova fase expansiva. Contudo, a passagem de um ciclo expansivo a outro implica necessariamente pagar o custo da recessão. Este é um elemento essencial a reter: os ciclos expansivos e recessivos da economia brasileira não expressam simples variações conjunturais senão que apontam a mudanças estruturais no próprio modelo de reprodução de capital prevalecente no país. Neste sentido, as crises que ali se verificam tanto questionam e destroem elementos integrantes deste modelo, que correspondem à fase anterior, quanto fazem surgir os novos elementos que determinarão sua modificação na fase posterior. A economia internacional cumpre papel relevante neste processo, mas enquanto fator internalizado pela economia brasileira, e não simplesmente como um estímulo externo, viabilizado através do mercado, como ocorria na fase da economia exportadora, que antecede a fase da moderna economia industrial.
Lancemos uma rápida retrospectiva da evolução recente do Brasil, para verificar e precisar essas assertivas. A economia industrial brasileira entra em sua fase de consolidação, de maturidade, nos anos cinquenta, quando se conclui a industrialização baseada na substituição simples de importação, que consistia na produção de bens de consumo habitual. Se abre então uma nova fase de desenvolvimento, que consistia na criação da indústria pesada, produtora de bens intermediários, bens de capital e de bens mistos, como os tem chamado alguns autores. Estes se caracterizam pelo fato de que, ainda que provenham da indústria pesada, destinam-se ao consumo individual; para dar um exemplo, podemos tomar a indústria automotiva, cuja produção ostenta em sua maior parte este caráter.
Considerando os vinte anos do período de maturidade da economia brasileira, alguns autores têm indicado que nele se registram claramente três ciclos econômicos, com uma duração aproximada de cinco anos.[4] O primeiro ciclo de expansão vai de 1957 a 1962, com taxas de crescimento do setor industrial superiores a 9% ao ano; se caracteriza pelo desenvolvimento da indústria pesada, com a implantação de novos ramos, um dos quais — o setor automotivo — desempenhará um papel relevante nos ciclos posteriores. O ciclo seguinte inicia em 1962 e termina em 1967, configurando-se como um ciclo depressivo: junto à queda da taxa de formação de capital, o setor manufatureiro se desacelera visivelmente, passando a apresentar uma taxa média anual de crescimento de apenas 2%; o aumento da taxa de inflação, que em 1964 já rondava cem por cento, leva o governo a aplicar uma política económica que agrava a tendência recessiva e acarreta, como é natural nesta situação, uma violenta centralização de capital.
O terceiro ciclo corresponde ao chamado “milagre” e se estende de 1968 a 1973. Junto a um crescimento do produto interno bruto que oscila em torno de 10%, o setor manufatureiro cresce a taxas que superam 15%, tendo como eixo a indústria automotiva, a qual, com uma produção aproximada de um milhão de unidades no ano passado, ocupa atualmente o nono posto mundial no ramo. Junto a ela, e em muitos casos induzido por ela, se verifica um considerável desenvolvimento na fabricação de máquinas e equipamentos, na indústria naval, na petroquímica e na eletrônica pesada, assim como a implantação da indústria aeronáutica. Se observa também a conformação de um novo setor econômico, que coincide muitas vezes com os ramos mencionados, representado pela indústria bélica ou, para sermos mais precisos (já que a produção bélica leve é mais antiga), a produção de armamento pesado.
A partir de 1974 começa o atual ciclo recessivo, com a queda da taxa de formação de capital e dos índices de crescimento, assim como o recrudescimento da inflação. As previsões oficiais estabelecem, como data possível de conclusão do mesmo, o ano de 1979. Mais importantes ainda são as medidas que está tomando o capitalismo brasileiro, e em particular o Estado, às quais voltaremos mais adiante, e que, de fato, não podem produzir efeitos antes do final da década.
OS CICLOS NACIONAIS E A CIRCULAÇÃO INTERNACIONAL
Indicamos anteriormente que os ciclos econômicos brasileiros se encontram fortemente influenciados pela economia internacional, porém que esta exerce influência na medida em que sua ação é internalizada pela economia do Brasil. Esse é o momento adequado para precisar esta ideia. Com efeito, os ciclos expansivos de 1957-62 e 1968-73 estão diretamente vinculados a mudanças significativas na esfera da produção, que implicaram fortes massas de investimento de capital e, consequentemente, importantes inovações tecnológicas. Um fator decisivo neste processo constitui os investimentos estrangeiros.
Nos países dependentes, a esfera de produção se encontra estritamente articulada com o fluxo circulatório de capital dinheiro e capital mercadoria (sob a forma de meios de produção), originado nos países capitalistas avançados. Esse duplo fluxo pode incidir, de forma mancomunada, no país dependente, como ocorreu no Brasil no período de 1957-62, em que predominou o investimento direto sob a forma de importação de máquinas e equipamentos, ou desdobrar-se para atuar de maneira independente, como sucedeu no período de 1968-73, o que examinaremos depois. Porém, em qualquer hipótese, esse fluxo, uma vez internalizado, constitui um fator determinante na configuração do ciclo econômico do país dependente.
Se consideramos os ciclos da economia latino-americana, observamos que, embora influenciados pela conjuntura internacional, não correspondem diretamente a esta. O caso brasileiro é ilustrativo neste sentido. O primeiro ciclo expansivo mencionado, que começa em 1957, coincide com a dinâmica ascendente da economia mundial. No entanto, embora a expansão da economia mundial tenha se acentuado na década de 1960, nos encontramos com um ciclo recessivo na economia brasileira desde 1962, acompanhado ademais por uma tendência geral da economia latino-americana. Um elemento que contribui para explicar em boa medida esta situação é o movimento internacional de capitais nos períodos considerados. Nos anos cinquenta, este movimento se encontra amplamente dominado pelos Estados Unidos, e se acentua na exportação de capitais privados, realizada principalmente sob a forma de investimento direto. Esta exportação de capitais privado se dirige prioritariamente aos países da América Latina e do Terceiro Mundo, sendo um resultado dela a implantação, no Brasil, da indústria automotiva, na qual o capital estrangeiro detém 90% do capital total investido, com predominância norte-americana.
Nos anos sessenta, a situação se modifica. O capital privado norte-americano, ao mesmo tempo que começa a predominar sobre o capital público, desloca sua órbita para os países da Europa ocidental, Canadá e Japão, invertendo a tendência que havia apresentado anteriormente. No entanto, os investimentos realizados na década anterior seguiam rendendo, ou começavam a fazê-lo, provocando fortes transferências de capital das economias nacionais dependentes aos Estados Unidos. É assim que os investimentos norte-americanos, entre 1960 e 1967, vão à Europa ocidental e Canadá em uma proporção de 70%, enquanto que em relação as receitas norte-americanas de juros, lucros e royalties provenientes do exterior, os países dependentes participam em uma proporção de 60%.[5] Em síntese: ao mesmo tempo que o capital norte-americano se move em direção aos países desenvolvidos, drena recursos dos países latino-americanos e os descapitaliza, o que permite entender em boa parte os problemas enfrentados pelas economias da região neste período, naquilo que se refere à acumulação de capital.
Ao final da década, o fluxo internacional de capitais se modifica novamente, em favor da América Latina. A causa é o extraordinário boom financeiro surgido desde meados da década, sobre a base do eurodólar; uma de suas características mais marcantes é a predominância de empréstimos e financiamentos concedidos por bancos internacionais em relação a investimentos diretos. Entende-se, assim, que um dos fatores determinantes do ciclo expansivo brasileiro de 1968-73, o capital estrangeiro, havia assumido predominantemente a forma de empréstimos e financiamentos e não de investimentos diretos, e que a participação de capitais europeus, em particular da Alemanha Federal, assim como os japoneses, tenha se incrementado de maneira significativa. Junto à dissociação do fluxo circulatório internacional de capital dinheiro e capital mercadoria, se registra, pois, a diversificação de seus países de origem, o que terá consequências importantes à economia brasileira, no período da presente crise.
O ESQUEMA DE REALIZAÇÃO DO SUBIMPERIALISMO
Porém, não somente nas variações de circulação internacional se encontram diferenças significativas para os dois períodos expansivos da economia capitalista brasileira que estamos considerando. As diferenças se manifestam também no plano da circulação interna, ou mais precisamente, da circulação própria da economia brasileira. Considerando que em ambos períodos se altera substancialmente, como assinalamos, o aparato produtivo ou o que poderíamos chamar modelo de acumulação, convém orientar nossa atenção para os esquemas de realização de mercadorias que prevalecem em ambos. Neste sentido, é interessante observar que, enquanto a expansão de 1957-62 se realizou com base no mercado interno e se registrou inclusive, apesar do crescimento do comércio internacional, uma regressão da participação brasileira no mesmo, o segundo período expansivo, de 1968-73, apresenta características distintas.
Com efeito, o esquema de realização proposto pela ditadura militar e o grande capital, para esta fase de desenvolvimento que caracterizamos como subimperialista, se baseou em três elementos fundamentais.[6] O primeiro deles (que, cronologicamente, é o último, já que só se configurou plenamente a partir de 1968, enquanto os demais já haviam se tornado visíveis no curso da crise de 1962-67) é o consumo suntuário. Isto se explica na medida em que os setores dinâmicos da economia brasileira, no período, são aqueles que produzem bens mistos: automóveis, aparatos eletrodomésticos, etc., tornando indispensável dinamizar o mercado interno. A superexploração do trabalho que se baseia o modelo de reprodução, e que leva a que, desde 1965, o salário real dos trabalhadores tenha se reduzido aproximadamente à metade, não é obstáculo para isso. Ao contrário, permite uma redistribuição regressiva da renda, não apenas em favor da classe capitalista, senão também às classes médias, conformando um mercado limitado, porém dinâmico, para a produção de bens mistos e outros produtos suntuários. Esta acentuação do abismo entre a esfera alta e a esfera baixa de circulação nacional implica, desde logo, que se agrave o divórcio entre o desenvolvimento do aparato produtivo e as necessidades de consumo das amplas massas, traço inerente ao capitalismo dependente.
Um segundo elemento na realização de mercadorias do modelo subimperialista é a exportação e, em particular, a exportação de manufaturas. É assim que as exportações totais brasileiras passam de aproximadamente 1.500 milhões de dólares, em meados dos anos sessenta, para mais de 9 mil milhões de dólares, no ano passado; segundo dados da CEPAL, as exportações de manufaturas, que representavam em 1964 modestos 7% das exportações totais, chegam em 1970 a 15% e, em 1975, a 30% do total. Convém explicar aqui que esta porcentagem se refere exclusivamente a produtos manufaturados, já que os semielaborados se contabilizam a parte e têm sofrido pouca variação, alcançando cerca de 10% do total em 1975. Alguns autores têm confundido o problema, ao mesclar esses dados, e têm sustentado inclusive a tese errônea de que a participação de produtos semielaborados no total de exportações não primárias não se altera, quando na verdade diminuiu de 40% em 1970 para 25% em 1975.8[7] Como quer que seja, o notável crescimento da exportação de manufaturas por parte de um país que, como o Brasil, amplas maiorias da população não alcançam os níveis mínimos de consumo confirma a tendência apontada anteriormente, isto é, o divórcio entre a produção e as necessidades das massas.
O terceiro elemento do esquema de realização subimperialista, que é o que mais nos interessa agora, é aquele representado pelo Estado. A importância do gasto público na economia brasileira pode estimar-se se consideramos a relação que guarda com o produto interno bruto: em 1950, excluindo os gastos derivados das empresas governamentais, representava 20% do valor do PIB, enquanto que em 1969 chegava a 34%; neste último ano, a relação subiria a 50%, se agregarmos os gastos das empresas governamentais federais, e mesmo sem incluir os gastos dos municípios e suas empresas.[8] Isto dá uma ideia da importância do Estado como agente econômico no Brasil e é razão suficiente para, em qualquer circunstância, preocupar-se com a política econômica do governo, quando se quer analisar a economia deste país.
O Estado exerce parte da sua influência atuando sobre o capital privado. Tem papel de destaque, sob este aspecto, as encomendas públicas e os subsídios diretos ou indiretos concedidos às empresas privadas, orientando o seu desenvolvimento. Os subsídios diretos no Brasil representam mais da metade da arrecadação total do Estado a partir de impostos diretos; as isenções de impostos concedidas aos exportadores de manufaturas, que constituem subsídios indiretos, correspondem a 50% do custo de produção dos artigos exportados. Porém se, desde este ponto de vista, e o mesmo se poderia dizer dos mecanismos de crédito, o Estado exerce uma influência considerável sobre o curso da acumulação capitalista no Brasil, seu papel passa a ser decisivo se considerarmos a acumulação como tal, isto é, o investimento.
O investimento estatal se realiza fundamentalmente para permitir a reprodução do capital privado, dirigindo-se a setores de infraestrutura e serviços básicos, e a novos ramos que não são, todavia, remunerados ou que exigem um capital mínimo muito elevado; nesses casos, o Estado opera muitas vezes a associação com o capital privado, seja para assegurá-lo contra o risco, seja para criar volume de capital necessário para possibilitar a acumulação. O exame do investimento fixo bruto no Brasil, em 1969, nos mostra que o governo participou na sua formação com 34% e as empresas estatais com 27%. A porcentagem total mediante a qual o Estado determinou o investimento fixo terá sido de 60%, restando ao capital privado menos de 40%.[9]
O PAPEL DO ESTADO NA CRISE ATUAL
É natural, portanto, que, ao projetar uma crise cíclica como a que vive agora o Brasil, quando é necessário impor mudanças no modelo de reprodução e, portanto, conformar setores capazes de converter-se em centros dinâmicos de um novo ciclo expansivo, seja necessário perguntar-se para onde aponta o Estado. Um exame superficial da política governamental no período atual permite chegar a algumas conclusões. No essencial, pode-se afirmar que a política econômica do regime militar está orientada hoje para o desenvolvimento de dois setores, estreitamente relacionados: o da indústria nuclear e o da indústria bélica pesada.
Ambos os setores se constituíram em centros de interesse da atual ditadura brasileira desde o início. Já em 1966, quando se negociava no México o que viria a ser o Tratado de Não Proliferação Nuclear para América Latina, o Tratado de Tlatelolco, a conduta da delegação brasileira, opondo-se a tudo que poderia limitar o desenvolvimento da indústria nuclear no Brasil, com caráter bélico ou não, pôs em evidência o que seria uma constante da política da ditadura militar na matéria.[10] Após esforçar-se para obter a cooperação norte-americana para conversão do Brasil em potência nuclear, e logo depois da França, no período em que a política gaullista buscava também a independência nuclear ante os Estados Unidos, os militares brasileiros lograram finalmente seu objetivo com o acordo de cooperação nuclear firmado no ano passado com a Alemanha Federal. Contemplando um investimento global de aproximadamente 5 mil milhões de dólares, para a concretização de um programa que prevê a instalação de oito centrais nucleares, uma planta de enriquecimento de urânio e uma de produção de plutônio, esse acordo não somente colocará nas mãos do Brasil o domínio completo do ciclo da tecnologia nuclear, como representará a abertura de um amplo mercado para produção pesada brasileira, já que se estima que a indústria nacional aportará 70% dos materiais e equipamentos necessários ao complexo nuclear. Notemos, de passagem, que o financiamento concedido pela Alemanha Federal equivale ao montante total de capital estrangeiro que ingressou no Brasil, a título de investimento direto, no ciclo expansivo de 1957-62.
O segundo setor para o qual aponta a política do governo é a criação do que este chama de “complexo industrial-militar”. Os primeiros passos nesta direção se deram a partir 1965, concretizando-se em janeiro de 1966, com a criação do Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI), que integra militares e empresários dos grandes centros industriais do país. Também neste campo o governo militar olha preferencialmente para a Europa ocidental, já existindo programas de fabricação de tanques, aviões, helicópteros, submarinos e mísseis contratados com a França, Itália, Inglaterra e Alemanha Federal. A denúncia do acordo de cooperação militar com os Estados Unidos, que procedeu de forma unilateral o governo brasileiro recentemente, tem como propósito de deixar este último livre para impulsionar com mais força os planos relativos ao complexo industrial-militar.[11] Já se encontra decidido inclusive a localização do mesmo, na zona industrial de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, onde se encontra instalado um complexo da indústria pesada com capitais europeus, entre os quais estão os grupos alemães Krupp e Mannesmann e o grupo italiano Fiat. Um dos objetivos explícitos do governo, ao projetar a constituição do complexo industrial-militar, é a exportação, já havendo antecedentes neste sentido em relação à Bolívia, Paraguai e Chile, assim como os países do Oriente Médio e África.
Conclusões
Essas orientações que se fazem presentes na política econômica brasileira, na perspectiva de destravar a acumulação capitalista através da criação de novos setores dinâmicos, têm muitas implicações. Destacaremos três, nesta oportunidade. Em primeiro lugar, a sinalização de que a crise capitalista mundial, cuja mola vital se constitui pelo confronto entre as grandes potências capitalistas, não apenas precipitou a crise econômica brasileira: ofereceu também ao Brasil a possibilidade de superá-la. Com efeito, tanto no que se refere à energia nuclear, como em relação à indústria bélica, o Estado brasileiro se vale hoje da acirrada competição estabelecida entre Estados Unidos e Europa ocidental, em particular a Alemanha, assim como o Japão, para assegurar a captação de recursos proporcionados pelo fluxo circulatório mundial de capitais, meios de produção e tecnologia. O Brasil não superará deste modo a dependência; porém, ao diversificar sua articulação com a economia capitalista mundial, se abrirá espaço para levar adiante seu projeto de desenvolvimento industrial e, sobre as bases deste, sua afirmação como potência média no esquema mundial de repartição do poder. Em outros termos, o Estado brasileiro se serve das contradições inter-imperialistas para garantir a realização de seu projeto subimperialista.[12]
Em segundo lugar, é importante notar o fato de que a diversificação de suas relações de dependência com a economia capitalista mundial repercute no Brasil mediante a diversificação de sua estrutura produtiva, implicando inclusive a redistribuição regional da mesma, dando lugar a emergência de novas contradições interburguesas no país. É assim que a implementação da indústria nuclear e bélica abre perspectivas desiguais à indústria pesada já instalada no país, agudizando ali o processo de centralização do capital, ao mesmo tempo que, tal como se encontra projetado, reproduz no seio da economia brasileira as contradições inter-imperialistas que se dão no plano mundial. Neste sentido, é significativo que o desenvolvimento dos novos setores dinâmicos que se propõe desenvolver Brasil esteja baseado em capitais europeus e japoneses, e não norte-americanos, e tenham sede preferencial na região de Minas Gerais, e não em São Paulo.
Finalmente, seria necessário considerar as consequências que as mudanças propostas para o modelo de acumulação de capital terão na esfera de realização, caso sejam plenamente realizadas. Como indicamos anteriormente, o esquema de realização da economia brasileira, em sua fase subimperialista, se encontra sustentado pelo consumo suntuário, o mercado mundial e o Estado. Quando analisei pela primeira vez este esquema, há alguns anos, assinalei que o primeiro elemento de sustentação: o consumo suntuário, aparecia como o mais precário, enquanto que o mais sólido, e o único viável a longo prazo, constituía o mercado mundial. No entanto, a válvula de escape para os problemas de realização colocados pela economia brasileira – problemas que, obviamente, agravam-se nos ciclos recessivos – constitui-se no Estado, cujo papel promotor de demanda é praticamente ilimitado, sempre que não se alterem significativamente as condições em que se opera a reprodução de capital, isto é, desde que não seja posta em xeque a superexploração do trabalho.[13]
Estas indicações adquirem particular validade nas atuais circunstâncias. Se mantendo o novo projeto econômico levantado pelo capitalismo brasileiro, o consumo suntuário será inevitavelmente sacrificado em face do consumo estatal (o único que, desde o ponto de vista do mercado interno, pode sustentar a produção bélica). Isto não significa dizer que o consumo suntuário desaparecerá: se manterá para os grupos de alta renda e deverá inclusive dinamizar-se outra vez, no marco de uma eventual recuperação, ainda que em bases mais estreitas; porém, terá revelado seus limites e será inadequado para a criação da demanda requerida pelos novos setores dinâmicos. Por outro lado, a menos que se opere no quadro de uma economia autárquica, como foi a economia de guerra nazista, o Estado não pode funcionar como o principal fator de criação de demanda. Do contrário, é preciso encontrar uma saída natural para a produção dos setores dinâmicos, a qual só pode ser proporcionada pelo mercado mundial. O papel do Estado é complementar e, no devido tempo, suprir as deficiências desse mercado, mas não o substituir.
O projeto econômico do capitalismo brasileiro, na sua atual fase recessiva, tende, pois, a reafirmar as tendências subimperialistas e, simultaneamente, em absoluta concordância com sua dialética interna, a avançar no sentido de uma economia ainda mais excludente e seletiva que a que emergiu no marco do atual regime militar. Com efeito, ao se restabelecer o dinamismo econômico do país, no ciclo de 1968-73, observou-se que as grandes massas restaram excluídas das possibilidades de consumo oferecidas pelo novo modelo de reprodução capitalista, com o qual se agravava a cisão entre a esfera alta e a esfera baixa da circulação e se ratificava, como fenômeno permanente, o que alguns haviam suposto ser um efeito passageiro do céu depressivo. Os que assim pensavam, saudaram com entusiasmo o surgimento do consumo suntuário e alimentaram ilusões sobre sua extensão a setores cada vez mais amplos, que incluiriam as massas trabalhadoras.[14] O atual ciclo recessivo não pode deixar de fazê-los ver que a economia dependente, enquanto economia da superexploração, se move sempre no sentido de agudizar o divórcio da produção em relação as necessidades de consumo das massas e, assim, excluir ao invés de incluir parte delas na esfera alta de circulação. No curso da atual crise, os grupos médios e inferiores da pequena burguesia, que haviam logrado participar em algum grau dessa esfera, estão sendo expulsos dela e muitos desses grupos já não poderão escapar do círculo de ferro da esfera baixa, mesmo na hipótese de que, superada a crise, o capitalismo brasileiro ingresse em um novo ciclo expansivo.
Reunidas as contradições interburguesas que a crise está fazendo explodir e o desespero das massas trabalhadoras que, após uma ligeira melhora nos seus salários – que também despertou ilusões a respeito de uma mudança de tendência na matéria – sofrem outra vez a degradação de suas condições de vida, a reação da pequena burguesia diante da situação aparece, neste momento, como o principal fator de instabilidade política no Brasil. Pelo papel estratégico que ocupa no sistema de dominação, a pequena burguesia, ao esboçar seu movimento de insurgência, atua como um detonador e prenuncia um acirramento da luta de classes no país, neste final da década. Em última instância, será o rumo que a luta de classes tomar e os resultados por ela produzidos que viabilizarão o novo projeto do capitalismo brasileiro ou o mergulharão em uma crise que, superando as flutuações da conjuntura e provocando profundas mudanças estruturais no país, finalmente abrirá ao povo brasileiro o caminho da sua libertação.
Notas
[1] Artigo traduzido da versão publicada em espanhol, na revista mexicana Cuadernos Políticos, em sua edição de número 13, de 1977.
Tradução: Pedro Araújo, advogado, formado em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins e mestrando em Sociologia pela Universidade de Lisboa.
[1] Analisei parcialmente este fenômeno para o caso chileno, em El reformismo y la contrarrevolución. Estudios sobre Chile. Ed. Era, México, 1976, parte II, cap. 1.
[2] Veja-se meu livro Subdesarrollo y revolución. Ed. Siglo XXI, México, 1974, 5a. ed. aumentada, pp. 60 ss.
[3] Atualmente, há uma tendência incorreta de substituir o conceito de reprodução do capital, que engloba o conjunto do ciclo do capital, pelo de acumulação, que é muito mais restrito e não compreende integralmente sequer à fase da produção.
[4] Entre outros, Albert Fishlow, “Algumas reflexões sobre a política econômica brasileira após 1964”, em Estudos Cebrap 7 (S. Paulo), janeiro-março de 1974, pp. 6-65, e Edmar L. Bacha, “Issues and Evidence on Brazilian Recent Economic Growth”, Development Discussion Paper, n. 12, Harvard Institute of International Development, fevereiro de 1976.
[5] Ministério da Indústria e Investigação da França, La división internationale du travail. La Documentation Française, Paris, 1976, vol. I, p. 55.
[6] Para um desenvolvimento deste tema, ver Subdesarrollo y revolución, cit., parte IV
[7] Dados da Economic Survey of Latin America 1975. Nova York, 1976.
[8] Dados citados por Werner Baer e outros, “As modificações do papel do Estado na economía brasileira”, Pesquisa e planejamento econômico. n. 3 (4), Rio de Janeiro, dezembro de 1973, pp. 898 y 905.
[9] Ibid., p. 904.
[10] Sobre a participação brasileira nas negociações de Tlatelolco, ver meu artigo, em colaboração com Olga Pellicer de Brody, “Militarismo y desnuclearización en América Latina; el caso de Brasil”, en Foro Internacional, n. 29, México, julio-septiembre de 1967.
[11] Ver Subdesarrollo y revolución, cit., pp. 69 ss.
[12] Mais detalhes sobre a relação entre o Estado e o subimperialismo podem ser encontrados no meu artigo “La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo”. Cuadernos Políticos, n. 12, México, abril-junio de 1977, e em Subdesarrollo y revolución, cit.
[13] Ver Subdesarrollo y revolución, cit., parte IV.
[14] Entre outros, Fernando Henrique Cardoso e Pierre Salama. Uma crítica desta posição pode ser encontrada no meu artigo citado na nota 13.