As contribuições do marxismo althusseriano para o debate sobre o aparelho escolar na sociedade capitalista: notas introdutórias

Danilo Enrico Martuscelli*

Quais foram as contribuições principais que a obra do filósofo Louis Althusser e a corrente marxista althusseriana deram para o debate sobre o aparelho escolar na sociedade capitalista?       


A tese mais conhecida da lavra de Althusser sobre a educação é aquela que caracteriza o aparelho escolar como um aparelho ideológico de Estado e foi formulada no clássico artigo Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado: notas para uma pesquisa, publicado na revista La Pensée em 1970.

Cabe aqui mencionar que esse artigo fazia parte de uma obra mais ampla que Althusser não publicou em vida e que foi organizada sob o nome de Sobre a reprodução. O artigo constitui uma espécie de síntese dos capítulos 5 a 12 deste livro, contendo citações idênticas e retificações na redação de algumas passagens. Além disso, esse livro incorpora um apêndice inédito e um texto publicado em 1976, no qual Althusser procura responder a algumas críticas que recebeu na caracterização que fez dos Aparelhos Ideológicos de Estado. Trata-se do artigo: Notas sobre o AIE (Aparelhos Ideológicos de Estado).

Neste texto, Althusser (1999) dedica algumas breves considerações sobre o aparelho escolar e procura debater qual é o seu papel na reprodução das relações de produção/exploração capitalistas. Tal contribuição foi caracterizada como pertencente à teoria crítico-reprodutivista ou ao paradigma da reprodução, o que resultaria, para alguns de seus críticos, na negação da luta de classes ou na inutilidade dos conceitos de resistência ou contradição para pensar a escola e a educação no capitalismo. Veremos mais adiante os limites dessa crítica e também mais detidamente as formulações originalmente propostas por Althusser e a corrente marxista althusseriana.

Para entender o significado e o alcance desta tese geral, a saber, a tese do aparelho escolar como aparelho ideológico de Estado e analisar outras contribuições aderentes ao marxismo althusseriano, vou dividir a minha apresentação em quatro partes:

Nas duas primeiras partes, tentarei decompor o conceito de aparelho ideológico de Estado. Certamente, as contribuições da sociologia política e da ciência política me serão muito úteis nesta empreitada. Assim:

1) Começarei pelo exame do estatuto teórico que tem o conceito de ideologia no pensamento de Althusser, procurando indicar os deslocamentos internos desta definição em sua obra e destacar o que dá fundamento à tese dos aparelhos ideológicos de Estado.

2) No momento seguinte, procurarei debater o conteúdo do conceito de aparelho de Estado presente em sua análise, com vistas a observar por que um dado aparelho de Estado contribui para a reprodução de determinadas relações de produção/exploração.

3) Na terceira parte, discutirei a especificidade do aparelho escolar como aparelho ideológico de Estado e recorrei à outra importante contribuição formulada por outros autores que seguiram esta tese básica proposta por Althusser e a aprofundaram para examinar a escola no contexto da formação social francesa. Referimo-nos à obra A escola capitalista, de Christian Baudelot e Roger Establet, publicada em 1971.

4) Na parte final, procuraremos debater criticamente a tese do aparelho escolar como aparelho ideológico de Estado e apontar alguns desdobramentos possíveis para uma teoria marxista althusseriana da educação, dando relativa ênfase aos trabalhos de Décio Saes sobre o tema.

Sobre a teoria da ideologia em Althusser

A obra de Althusser ficou consagrada com a publicação de dois livros em 1965: Por Marx (que reúne uma série de artigos que ele publicou nos idos dos anos 1960) e Ler O Capital (obra coletiva que reunia os resultados das discussões sobre O capital realizados por Althusser e seu grupo: Pierre Macherey, Jacques Rancière, Roger Establet e Étienne Balibar). Havia um traço comum que ligava essas duas obras. Ambas propunham uma nova leitura da obra de Marx fundada: na tese da ruptura epistemológica entre os textos de juventude e de maturidade de Marx, que tem profunda relação com a crítica ao humanismo teórico; na crítica ao economicismo; e na defesa do marxismo como ciência, como teoria científica da história (para esta perspectiva, a ciência só pode nascer na e da ideologia, jamais pode eliminá-la, mas é função de toda ciência produzir conhecimento).

Nessa construção analítica, Althusser procura dar um tratamento epistemológico para o conceito de ideologia visto como obstáculo epistemológico a ser criticado e superado. Seria tarefa da teoria marxista se confrontar com as noções de natureza metafísica típicos de uma filosofia da história. Nesta primeira fase, a ideologia era também tratada como um dos níveis ou instâncias do modo de produção, mas esse tipo de análise nunca recebeu tratamento teórico sistemático, tal qual veio a assumir o desenvolvimento da análise da estrutura econômica do modo de produção capitalista em O capital, de Karl Marx, e da estrutura jurídico-política em Poder político e classes sociais, de Nicos Poulantzas.

Na tese desenvolvida por Althusser no artigo de 1970: Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, há uma mudança de foco. Crítico da noção de ideologia como falsa consciência, ele formula um conceito original influenciado pelas contribuições da psicanálise. Quais são as teses fundamentais para a elaboração do conceito de ideologia no texto de 1970?

Tese 1: a ideologia significa a “representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”. Essa tese remete à ideia de que ideologia é simultaneamente alusão e ilusão da realidade. Se fôssemos sintetizar essa ideia, seria possível dizer que os homens na ideologia não conhecem as suas condições reais de existência, a não ser como relação imaginária. A ideologia jurídica do contrato, por exemplo, não é mera ilusão, ela leva os agentes da produção na conversa. No plano do contrato, todos se veem como livres e iguais, uns vendem e outros compram a força de trabalho, mas essa relação contratual é a pura manifestação da ideologia jurídica que oculta permanentemente a relação de exploração da força de trabalho. No entanto, vivemos a todo tempo na ideologia jurídica, quando praticamos tal relação contratual e mesmo quando reivindicamos maiores salários ou salários justos.

Tese 2: a ideologia tem uma existência material. Isso significa que as ideologias não pairam no ar, mas se materializam em crenças, rituais e aparelhos ideológicos, de modo que se reproduzem mesmo quando alheias à vontade ou ao livre arbítrio dos indivíduos. Tais práticas rituais se realizam numa ideologia primária, mas podem subproduzir ideologias secundárias, abrindo espaço para a revolta e a consciência revolucionária.

Tese 3: a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos (livres e assujeitados). Por exemplo, no capitalismo, os trabalhadores ou produtores diretos são interpelados como sujeito de direito, antes eram interpelados como coisa.

É principalmente a tese dois que permitirá a Althusser desenvolver a ideia de aparelho ideológico de Estado, ou seja, que lhe possibilita pensar a existência material da ideologia, conectando-a com o conjunto das práticas sociais. Para ele, toda prática social se estabelece por meio de uma dada ideologia.

O que é um aparelho de Estado?

Althusser estabelece uma distinção inicial entre poder de Estado e aparelho de Estado. O poder de Estado designa o objetivo central da luta política de classe. Uma classe revolucionária que queira se efetivar como tal precisa deslocar a velha classe dominante do poder de Estado. É a partir desta primeira ruptura que se torna possível substituir o antigo aparelho e criar um novo. Ou ainda, o Estado enquanto aparelho só existe em função do poder de Estado. Mas ele ressalta a necessidade de pensar outra distinção: a existente entre aparelho repressor e aparelho ideológico.

A interpretação marxista clássica situou-se principalmente na definição do Estado como aparelho repressor que funciona por meio da violência e abrange governo, administração, Forças Armadas, polícia, tribunais e prisões. Foi Gramsci (2002a, 2002b) quem alertou para o fato de que o Estado também é composto por uma série de instituições da sociedade civil. A fórmula sociedade política + sociedade civil, que comporta aquilo que Christine Buci-Glucksmann (1990) chamou de “conceito ampliado de Estado”, a retomada do centauro maquiavélico (coerção + consenso) e a própria noção de hegemonia encouraçada de coerção, são aspectos fundamentais presentes na reflexão de Gramsci e que lhe permite concluir que as relações de produção não se reproduzem apenas por meio da violência, mas também por meio da ideologia.

É a partir da combinação de um conceito de ideologia em geral, da relação da ideologia com a reprodução das relações de produção, da materialidade desta ideologia enquanto aparelho de Estado, que Althusser (1999) procura formular a tese dos aparelhos ideológicos de Estado, que compreendem um conjunto de instituições: sistema de igrejas, sistema escolar, familiar, jurídico, político, sindical, de informação e cultural.

Quais seriam as diferenças entre os aparelhos repressivo e ideológicos de Estado? Para ele, só existe um Aparelho Repressivo de Estado, que é unificado, pertence ao domínio público e funciona predominantemente por meio da repressão. Já os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) abrangem uma pluralidade de sistemas institucionais, pertencem ao domínio privado, funcionam predominante por meio da ideologia.

O que unifica a pluralidade de AIEs? A ideologia dominante. A ideologia da classe dominante. Os AIEs estão mais suscetíveis aos conflitos de classe e, nessa perspectiva, de acordo com Althusser nenhuma classe conseguirá manter o seu poder de Estado de modo duradouro, se não exercer hegemonia sobre e nos aparelhos ideológicos. Ademais, Althusser procura identificar a especificidade dos AIEs capitalistas em comparação aos pré-capitalistas. No feudalismo, os AIEs existiam em menor número, pois a Igreja concentrava funções (religiosas, escolares, formação e cultural). O AIE dominante era uma soma de dois aparelhos específicos: o religioso e o familiar. No capitalismo, há uma pluralidade de aparelhos ideológicos, mas há a dominância do par escola-família. A escola é uma das poucas instituições que consegue garantir uma audiência obrigatória, longeva e permanente, ou como ele afirma: “nenhum aparelho ideológico de Estado dispõe, durante um número tão grande de anos, da audiência obrigatória (…) 5 a 6 dias num total de 7, durante 8 horas por dia, da totalidade das crianças da formação social capitalista” (ALTHUSSER, 1999, p. 273). Quais são as especificidades do aparelho escolar como aparelho ideológico de Estado?

O aparelho escolar como aparelho ideológico de Estado

Althusser (1999) observa que, para se reproduzir a força de trabalho, exige-se qualificação e submissão às regras e normas da ordem social estabelecida (submissão das classes dominadas à ideologia dominante). A qualificação é garantida, portanto, nas e sob as formas de submetimento ideológico. O aparelho que permite essa qualificação é o aparelho escolar. O que compõe o aparelho escolar nas sociedades capitalistas? Neste caso, fazemos questão de remeter às observações de inspiração althusseriana realizadas por Décio Saes no artigo “O lugar dos conceitos de ‘estrutura’ e ‘instituição’ na pesquisa em educação”:

“[o aparelho escolar típico da sociedade capitalista] abrange certos agentes (diretor, coordenador, professores e funcionários) em vias de utilizar recursos materiais (prédios, livros, material didático, computadores etc.) para cumprir o objetivo oficial da instituição escolar: a transmissão de ciência e de cultura aos alunos. O pesquisador que adotar um enfoque puramente descritivo no exame do aparelho escolar tenderá a concluir que os agentes do sistema escolar, em geral, atuam com vistas ao cumprimento de objetivos institucionais; e que, por exceção, alguns desses agentes se desviam dos objetivos oficiais da escola. A qualificação de certas práticas escolares, não coincidentes com as regras institucionais, como ‘desvios’ comportamentais se baseia na suposição de que a razão de ser do aparelho escolar está fixada nas regras institucionais e de que a não-coincidência entre as regras institucionais e práticas escolares resulta de problemas psicológicos individuais (stress, burnout, traumas etc.) e, não, de razões sociais profundas. Inversamente, se o pesquisador adotar um enfoque sociológico, ele terá de ir além da mera descrição do funcionamento do aparelho escolar, chegando à análise da estrutura da escola” (SAES, 2012, p. 284)

Isso quer que dizer que os agentes do aparelho escolar são movidos, inconscientemente, por valores estruturais na direção dos interesses, perspectivas e aspirações da classe dominante, ou melhor, da burguesia.

É a obra de Baudelot e Establet (1980) que nos permite entrever mais detalhadamente quais são esses valores estruturais que permeiam o aparelho escolar e tornam possível a reprodução das relações de produção/exploração capitalistas. Esses autores demonstram o papel que exerce a escola no processo da divisão capitalista do trabalho (trabalho manual/trabalho intelectual) e da divisão da sociedade de classes. Diferentemente de certa análise economicista que analisa a escola como mero epifenômeno das relações de produção ou como algo neutro, Baudelot e Establet demonstram como o aparelho escolar é uma das condições fundamentais para a reprodução das relações de produção.

Quais seriam os traços comuns a todas as escolas capitalistas? A divisão da escola em duas redes, que dá sustentação à divisão do trabalho capitalista típica entre trabalho manual (execução) e trabalho não manual ou intelectual (concepção e planejamento). Assim, eles questionam o mito da escola única que supostamente teria o objetivo de formar, educar, instruir e compartilhar cultura e saber. Para Baudelot e Establet, a escola propicia as condições para a reprodução da divisão do trabalho capitalista, ao conferir aos filhos dos trabalhadores operários uma vida curta na escola, permeada por conhecimentos pseudo-concretos, ao passo que para os filhos da burguesia e da pequena burguesia, permite-lhes o prolongamento da escolarização e o acesso ao conhecimento mais abstrato, tornando-os capacitados para se tornarem os porta-vozes ou “intérpretes ativos” da ideologia dominante.

Para além da discussão promovida por Bourdieu e Passeron (2008) que, na obra A reprodução, demonstraram que a origem social e o acúmulo desigual de capital cultural explicavam as diferentes trajetórias dos estudantes no interior do aparelho escolar e punham em questão a suposta homogeneidade do espaço escolar, Baudelot e Establet nos permitem observar que essa divisão é fomentada e realimentada pelo próprio aparelho escolar, ou seja, não seria algo puramente externo ao aparelho escolar. Assim, os níveis superiores da pirâmide educacional estariam reservados a uma minoria. Todas as classes estariam submetidas à influência da ideologia dominante, mas a partir de práticas escolares distintas. Portanto, o aparelho escolar capitalista formaria distintamente os trabalhadores manuais e não-manuais, mas sempre ocultando isso através do mito da escola única e de suas tentativas de igualizar os desiguais, o que só contribui para reforçar e reproduzir o individualismo burguês, peça essencial ou cimento da exploração de classe. O resultado disso é que o aparelho escolar torna-se um instrumento da luta de classes, ao impedir que os trabalhadores, a grande massa dos estudantes, possam adquirir conhecimentos científicos necessários ao controle técnico/cognitivo do processo produtivo.

Além da divisão do aparelho em duas redes, a escola capitalista se caracteriza pela separação em relação à produção. Ou seja, não ocorre no interior do aparelho escolar, referimo-nos aos estudantes, a exploração econômica de classe, mas o disciplinamento e a inculcação ideológica. Nesse sentido, é que o aparelho escolar reforça a presença da ideologia da classe dominante em seu seio, submetendo e rechaçando permanentemente a ideologia proletária. A rigor, no capitalismo, não faria sentido falar em escola ou universidade dos trabalhadores.

Além disso, os autores chamam a atenção para a necessidade de mudar completamente o vocabulário ou o léxico quando se procura examinar a escola capitalista em seus anos iniciais. Ao invés de fazer uso de termos como: instrução, educação, fracasso, êxito, criança, psicologia da criança, norma, anormal, faz-se necessário introduzir outras noções e conceitos para se aprender seu funcionamento, ou seja, conceitos como: classes sociais, relações de produção, exploração, ideologia, inculcação, servidão, rechaço, disfarce, dominação ideológica devem vir para a boca da cena da análise. Ou ainda, é preciso insistir no conceito de contradição para compreender o fenômeno escolar.

Baudelot e Establet procuram sustentar assim que o aparelho escolar exerce um papel importante na reprodução das relações de produção na medida em que: “1) contribui para a formação da força de trabalho; 2) contribui para a inculcação da ideologia burguesa” (BAUDELOT, ESTABLET, 1980, p.254) Ou como procura sintetizar Trópia (2009, p. 20-21):

“Cabe ao aparelho escolar a formação técnica e ideológica da força de trabalho, especializando os trabalhadores segundo o padrão produtivo, impedindo que eles obtenham os conhecimentos científicos necessários ao controle técnico/cognitivo do processo produtivo. Cabe, assim, ao aparelho escolar formar distintamente o trabalho manual e o trabalho não manual, ao mesmo tempo em que deve ocultar tal distinção. Esta ocultação, é preciso repetir, não ocorre apenas no terreno das ideias e dos conteúdos, mas é estrutural, ou seja, a própria forma como a escola e o ensino estão organizados (escola única, êxito segundo as capacidades, distribuição por critérios meritocráticos) oculta cotidianamente a natureza de classe da escola.”

Assim como, cabe à “escola capitalista também assum[ir] a função política de inculcar a ideologia burguesa e difundi-la, como verdade, como ciência, no interior da escola. O processo de difusão ideológica não ocorre apenas por meio da transmissão de ideias, mas também de práticas pedagógicas materiais: processos avaliativos, processos de emulação (premiação e punição).” (TRÓPIA, 2009, p. 20) Ademais, é preciso observar que esse processo de inculcação ideológica envolve contradições, resistências e lutas que precisam ser neutralizadas ou contidas por meio de práticas repressivas, disciplinares e coercitivas para que se torne possível a reprodução das relações de produção/exploração capitalistas.

Os limites da caracterização do aparelho escolar como um aparelho ideológico de Estado

A primeira crítica a se destacar está relacionada ao tratamento do aparelho de Estado como duas grandes ramificações: uma responsável por aplicar a violência e a repressão e a outra responsável pela organização do consenso, pelo disciplinamento e submetimento das classes à ideologia da classe dominante. Althusser parece reconhecer problemas nesta distinção quando afirma que o aparelho repressor funciona predominantemente por meio da coerção enquanto que os aparelhos ideológicos funcionam predominantemente por meio da ideologia. A questão é que essa discussão acerca dos meios dos quais se valem o Estado para garantir a ordem social, ocultam ou secundarizam o debate acerca da função do Estado de organizar politicamente as classes dominantes e desorganizar permanentemente as classes dominadas. Aqui, é preciso insistir, como faz Poulantzas em Poder político e classes sociais, que dois valores fundamentais orientam e condicionam as práticas dos agentes estatais e são importantes para que o Estado cumpra essa função. O primeiro é o direito burguês que igualiza os desiguais e produz o efeito ideológico do isolamento, os agentes da produção não se reconhecem como classes, mas como indivíduos cidadãos. O segundo é o burocratismo, ou seja, o Estado se apresenta como não sendo monopolizado por nenhuma das classes, gerando assim o efeito ideológico de representação da unidade e englobando todos os cidadãos na ideia de representante do Povo-nação. Portanto, a ideologia é mais um efeito desses valores estruturais que permeiam a atividade do aparelho de Estado, do que um mecanismo que separa as atividades dos diferentes aparelhos de Estado. No final das contas, a função do Estado precisa ser realizada seja pela via da repressão ou do consenso.

Associado a essa primeira crítica, está justamente a definição do aparelho escolar como aparelho ideológico de Estado, ou seja, como parte do Estado. Não há dúvidas de que esse aparelho é condicionado pelas regras, políticas e diretrizes estabelecidas pelo Estado, mas ao ampliar demasiadamente o conceito de aparelho de Estado, Althusser e seus discípulos acabaram enfraquecendo uma das teses centrais da tradição marxista do Estado. Ou como aponta Goran Therborn (1987, p. 69):

“A partir de um ponto de vista analítico parece bastante estéril e inclusive desconcertante ampliar o conceito de Estado de modo a abranger tudo aquilo que sirva à reprodução de uma ordem social. Isso, ademais, contraria o conceito marxista de Estado como uma organização especial, separada do resto da sociedade e estreitamente relacionada com a existência das classes”.

Assim, embora o aparelho escolar como aparelho ideológico possa se ver afetado ou condicionado por uma dada legislação ou por normas prescritas, favorecidas ou permitidas pelo Estado, a rigor, não é parte integrante desse mesmo Estado. É preciso reconhecer aqui que, em ao menos duas passagens do artigo clássico, Althusser faça uso da expressão “aparelho ideológico material”, parecendo com isso apontar para a tese que nos parece central e mais adequada: a de que a ideologia se materializa em aparelhos. Consideramos que a expressão aparelho escolar capitalista já seria suficiente inclusive para indicar a conexão existente entre um dado aparelho ideológico e determinadas relações de produção/exploração, pois como já vimos, se por um lado o aparelho escolar não é um mero epifenômeno das relações de produção, pois cria e realimenta as condições para tal reprodução, por outro é precisar negar a tese que dissocia completamente o aparelho escolar das relações de produção, o que se costuma a figurar a partir da ideia de que o que se faz na escola seria resultante da livre vontade dos indivíduos que a compõem.

Há ainda um outro questionamento a fazer sobre a tese do aparelho escolar como aparelho ideológico dominante na sociedade capitalista. Althusser estabelece uma distinção entre o aparelho ideológico dominante no feudalismo, a religião, e o aparelho ideológico dominante no capitalismo, a escola. Aqui, faz-se necessário recuperar os importantes questionamentos feitos por Poulantzas (1977) no Prefácio da obra A Internacional Comunista e a escola de classe, organizada por Daniel Lindenberg. Para Poulantzas, não faz sentido falar em um “aparelho dominante invariável” no capitalismo, tal como se passava no feudalismo com a religião que concentrava várias funções (política, religiosa e escolar). De acordo com ele, a depender das diferentes fases do capitalismo, se articularão diferentes formas de reprodução da ideologia dominante:

“No caso do MPC, o papel dominante entre os AIE pode ser assumido por aparelhos ideológicos diferentes – portanto, também pela escola – segundo os estágios deste modo na combinação concreta no interior de cada formação social capitalista, e a luta de classes que aí se desenrola, numa palavra, segundo as etapas históricas que cada formação capitalista atravessa”. (POULANTZAS, 1977, p. 6-7)

Caberia ainda discutir as críticas dirigidas aos althusserianos que teriam supostamente negligenciado a luta de classes, as contradições e resistências nas escolas. Em termos gerais, tais análises críticas tendem a ser refratárias ao conceito de reprodução justamente por sustentarem uma concepção de história que só abrigaria a ideia de mudança. No limite, projetam uma espécie de inflação de contradições para chegarem à conclusão de que tudo muda a todo tempo. O que deve ser observado e discutido é o alcance dessas mudanças. Se o aparelho escolar capitalista contribui para reproduzir as relações de produção/exploração capitalistas, isso não quer dizer que Althusser e seus discípulos neguem a luta de classes ou a própria ideia de contradição, mas que operem com um conceito de história que comporte tanto a ideia de mudança ou transformação social quanto a ideia de permanências ou reprodução social. Nessa perspectiva, é possível extrair do marxismo althusseriano dois conceitos de luta de classe: um fraco, que se define pela funcionalidade em relação à ordem social, e outro forte, que diz respeito à transição social, ao choque de classes. O que equivale a dizer que uma das condições necessárias para a transformação do aparelho escolar é a ocorrência de uma revolução política, uma transformação do próprio poder de Estado, processo no qual uma nova classe dominante assumiria o lugar da antiga classe dominante. Fora disso, as mudanças no aparelho escolar apenas expressariam as lutas de classes existentes no interior da ordem social. Ou melhor, penso que uma pesquisa do aparelho escolar deve levar em consideração o seu lugar na reprodução e na transição social.

Falamos disso, pois o debate sobre as resistências na escola corre o risco de cair num “vazio teórico”, como já nos alertou Tomaz Tadeu da Silva (1992). Isso ocorre, pois às custas de dar elevada centralidade às lutas que se operam no interior do aparelho escolar, muitos analistas se inclinaram a opor reprodução e contradição ou a opor reprodução e resistência, caindo numa perspectiva voluntarista e otimista e num apelo romântico à oposição. Citamos aqui o que afirma Tomaz Tadeu da Silva (1992, p. 57) sobre a teoria da resistência:

“Descobrir que as pessoas a situações de opressão não nos diz nada sobre como estas situações se originam, em primeiro lugar, nem como são mantidas, e por este motivo não nos diz nada também sobre como elas podem ser transformadas. Simplesmente verificar e documentar a existência de resistências (…) não é o mesmo que explicá-las. E sem explicá-las, como sabemos, não há teoria”.

Por fim, ainda operando no registro da teoria marxista althusseriana da Educação, caberia entrar nos meandros na discussão da escola de classe, da escola capitalista, e nos perguntar se alguma fração de classe em particular se apresentaria como força dirigente do sistema educacional público. É o que se propõe a responder Décio Saes (2005) no artigo “Classe média e escola capitalista”. Para o autor, no plano retórico, os membros de todas as classes buscariam algum tipo de educação para seus filhos e empunhariam a bandeira da educação universal nos níveis mais elementares. No entanto, na prática, essa bandeira seria um mito. Por quê?

A classe capitalista em suas diferentes frações não deseja que os trabalhadores tenham “educação de menos”, nem “educação de mais”. Os conhecimentos adquiridos pelos trabalhadores devem se restringir àqueles necessários, em caráter subordinado, ao processo de trabalho. Ou seja, não deseja trabalhadores sobrequalificados. Além disso, teme os efeitos politizadores da educação dos trabalhadores. Nesse sentido, a classe capitalista teria muita dificuldade de se apresentar como força principal a instauração de uma “educação elementar obrigatória e gratuita”.

Os trabalhadores manuais teriam também dificuldade de exercer esse papel de força principal. A despeito de buscarem alguma educação para seus filhos, não valorizariam incondicional e absolutamente a educação escolar de base, pois as crianças constituem mão de obra suscetível de ser colocada, desde cedo, a serviço da reprodução material da unidade familiar. Ou seja, os “custos indiretos da escolarização” seriam muito elevados. Mais educação para os filhos pode implicar empobrecimento da família, ou menor entrada de renda para a família. Maior escolarização representa sacrifício da renda familiar.

Assim, a classe média seria a única classe social cujos membros consideram que a reprodução de sua situação econômica e social através dos filhos depende essencialmente da educação escolar, pois é esta que permite no mínimo, à geração seguinte, manter a condição de trabalhadores não-manuais, superiores, dentro da hierarquia do trabalho, aos trabalhadores manuais.   Em síntese: no capitalismo, é a classe média que tende a valorizar a escolarização, pois esta é a via fundamental de ascensão social ou de manutenção de distinção e superiores diante dos trabalhadores manuais.

Breves conclusões

Diante do exposto, consideramos que uma das características básicas da pesquisa marxista em educação é a de examinar o caráter de classe da escola capitalista, afastando-se, assim, das problemáticas teóricas que tratam a escola a partir de pressupostos formalistas ligados aos princípios autodeclarados da instituição escolar e de seus agentes. No que se refere ao marxismo de inspiração althusseriana, sua especificidade está em demonstrar a função do aparelho escolar no processo de reprodução das relações de produção/exploração capitalistas. Isso não quer dizer que o aparelho escolar não seja atravessado por resistências e contradições. Aqui, seria necessário qualificar as resistências e contradições presentes na escola para evitar um tipo de análise que opere com a ideia de que não haveria obstáculos estruturais para a transformação do aparelho escolar capitalista. Nesse sentido, no processo de reprodução do capitalismo, os conflitos que emergem no interior da escola jamais podem assumir uma natureza disruptiva, pois sempre serão condicionados pela dinâmica da dominação de classe. Algo distinto ocorre nos processos de transição social, nos quais os valores que orientam o aparelho escolar deixam de produzir efeitos pertinentes e se abre a possibilidade de destruir o velho aparelho escolar e de substitui-lo por outro. Portanto, sem revolução política prévia, as possibilidades de transformar o caráter do aparelho escolar capitalista são nulas.


*Docente do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais do Campus Chapecó e do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas do Campus Erechim da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). –  Retomo aqui as discussões da palestra que proferi no dia 18 de abril de 2018 nos marcos da Jornada 200 anos de Marx: Marxismo e Educação, organizada pelos Centros Acadêmicos de Ciências Sociais, História, Pedagogia e Geografia e por discentes de Letras e realizada no Campus Chapecó da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Agradeço a Alexandre Marinho Pimenta pelas críticas e comentários feitos à primeira versão deste texto. – Correio eletrônico: daniloenrico@gmail.com


  Bibliografia:

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