“Guerra entre nós, paz para os senhores”: de aliados(as) a inimigos(as)

Por Iael de Souza

O fio da meada…

Há algumas décadas, as esquerdas1 perderam muitas das características que as definem(definiam) e identificam (identificavam) enquanto esquerdas. Precisamente, com a queda do Muro de Berlim (1989) e do Leste Europeu (1991), a década de 1990 marca a apropriação das bandeiras de luta das esquerdas pela direita e extrema-direita (CASTELO, 2013), como também uma substantiva mudança na forma de fazer os enfrentamentos e lutas político-sociais, que se transferem das ruas (guerra de movimento, extra-parlamentar) para o campo do parlamento e das instituições (guerra de posição, parlamentar, ocupação de espaços políticos e cargos) do Estado de Direito Democrático Liberal (burguês). Eis a “dominação racional-legal”, como diria Max Weber, da democracia liberal (burguesa) a partir da década de 1990 no Brasil e a produção das metamorfoses das esquerdas.

Safatle (2024a) é categórico ao asseverar que a esquerda perdeu a capacidade de pensar a realidade e propor soluções para os desafios sociais. Porém, encobre essa incapacidade sob a luta com a extrema-direita. Esta, por sua vez, é quem, de fato, “define a agenda dos debates, prendendo o campo progressista em uma dinâmica reativa e defensiva” (SAFATLE, 2024b). Logo, as esquerdas perderam seu tônus muscular e sua capacidade de enunciação – densamente retraída, como aponta Safatle (2024a) – e de pautar a agenda e debate políticos.

Ademais, há um outro aspecto marcante que vem se reproduzindo em muitos dos movimentos ditos de esquerda, fragilizando-os. Aqueles(as) que deveriam ser vistos como aliados(as), porque estão do mesmo lado, apesar das divergências em termos de concepções, ações/posicionamentos táticos e estratégicos, são transformados em inimigos(as), devendo ser combatidos(as), descreditados(as), cancelados(as), isto quando não têm seu nome e imagem difamados.

Tais comportamentos foram ensinados e disseminados aqui no Brasil por Olavo de Carvalho e seus asseclas (ROCHA, 2021), gerando uma dissonância cognitiva que provoca a substituição das mediações pelas representações e narrativas (ROCHA, 2021, p. 23). As mediações conceituais são negligenciadas e as frases de efeito tomam seu lugar. Decorre daí a inviabilidade de diálogo, exigindo antes adesão absoluta (ROCHA, 2021, p. 61), caso contrário, havendo divergentes e divergências, estes(as) serão vistos como “inimigos(as)”, mesmo que sejam aliados(as), pois um “sistema de crenças” foi internalizado servindo como filtro (superego) para tudo aquilo que o contrapõe, tornando a pessoa imune a contestações externas. De modo que a dissonância cognitiva atua como um mecanismo de defesa (ROCHA, 2021, p. 72). A pessoa projeta “suas próprias convicções no outro, no texto e no mundo. Tudo se transforma em pretexto para a reiteração de suas crenças” (ROCHA, 2021, p. 190).

Os acontecimentos dessas duas últimas décadas do século XXI, a polarização das forças político-sociais (negada por muitas das esquerdas, sendo que algumas ainda tentam operar com a conciliação de classes, acreditando num centro democrático inexistente) e o fortalecimento internacional – e em vários Estados Nacionais –, da extrema-direita contribuíram, em grande medida, para que muitas de suas práticas e comportamentos fossem replicados (com a mesma virulência) pelas esquerdas, então descaracterizadas e afastadas de suas bases e identidade.

Os sintomas mórbidos também começam a ser sentidos, percebidos e partilhados por outros(as) colegas de profissão, de diferentes áreas do conhecimento, embora com maior ênfase para a das ciências humanas e sociais. Por isso, é urgente e preciso nos ocupar em ensaiar reflexões catárticas, uma vez que podem proporcionar conhecimento ao homem sobre si e sobre o mundo2 , sobre o seu estar no mundo (tomada de consciência, compreensão = CATARSE), como afirma Lukács (apud OLIVEIRA, 2003, p. 182), exercendo a função de intencionalidades configuradoras de uma experiência.

A motivação para ensaiar essa análise/escrita catártica – e, cem certo sentido, também mimética3 — advém de uma ocasião (todas elas têm o potencial de serem terapêuticas) proporcionada por um evento realizado no mês da Consciência Negra de 2023, num auditório de uma dada instituição, estando presentes ao todo cerca de 20 pessoas, sendo 15 pessoas “pretas” e 5 pessoas “brancas”, inclusa a autora, embora o espaço comportasse um total de 150 pessoas.

Após uma semana de luto e mastigação mental para digerir o vivido – “sentido na pele” –, transcorrido algum tempo da ocorrência do fato e suas consequências, mais sóbria emocional e psiquicamente, agora é possível desenvolver a reflexão catártica necessária para obter algumas respostas e uma melhor compreensão das razões do estado de “guerra entre nós”, numa inversão fatídica e lamentável de um dos famosos trechos da letra da Internacional Comunista, reiterando as assertivas contemporâneas de destruição da ideia de coletivo, de camaradagem, do comum (comunalidade) e de tudo aquilo que reporta à solidariedade, garantindo a “paz para os senhores”.

Uma ressalva deve ser feita acerca da camaradagem. Infelizmente, tornou-se uma raridade na convivência entre as esquerdas – embora sobreviva nos discursos e palavras de saudação proferidas –, até porque foi sendo soterrada e dificultada pelos novos comportamentos disseminados, aprendidos, internalizados e reproduzidos nas situações cotidianas do fazer e das ações político-sociais. Perdemos a noção de que o termo camarada sublinha “o que há de comum entre aqueles que se encontram de um mesmo lado” e que, “independentemente de suas diferenças, os camaradas estão juntos na luta” (DEAN, 2021, p. 20. O itálico é meu).

Essa transformação dos(as) aliados(as) em inimigos(as) ocorre, com certa frequência, na relação entre pessoas “brancas” e pessoas “pretas”. A cor da epiderme é sobremaneira determinante numa sociedade estruturalmente racista (racismo estrutural) e termina se sobrepondo sobre as outras mediações imprescritíveis que traduzem essa cor (“Traduzir uma parte na outra parte – que é uma questão de vida ou morte?” Ferreira Gullar). Pessoas “brancas” e Pessoas “pretas”, mesmo estando do mesmo lado, acabarão, em algum momento, envoltas em estranhamento e conflito.

É sobre essa questão que desejo refletir de forma catártica – uma vez que foi experenciada e vivida –, procurando desnudar e realizar uma aproximação, a mais adequada e condicionada historicamente possível, do seu âmago e nexo causal a fim de apreender suas consequências correlatas, tornando inteligíveis certos comportamentos e falas para que possamos repensar as relações entre as esquerdas e conviver como aliados(as) – e não inimigos(as) –, como camaradas, de fato, na práxis das situações concretas das nossas lutas e ações comuns cotidianas. Assim como Guerreiro Ramos (2023, p. 119), “terei o cuidado (…) de não individualizar as análises a que procederei. Essa, como se sabe, constitui uma regra sagrada para o pesquisador sério e honesto”, até porque:

a teoria científica, ou (…) uma ontologia não fictícia, requer uma retificação de curso, uma correção generalizadora dos fenômenos singulares que está para além da mera cotidianidade. A ciência, para o seu desenvolvimento, requer um tipo de generalização específica, e um tipo de correção das experiências e fenômenos singulares pelas suas dimensões universais. Essa é a razão de fundo para que a prática cotidiana, enquanto tal, não possa servir de critério último e imediato para a teoria (LESSA, 1996, p. 46).

Rodas de conversa, depoimentos, entrevistas e afins são importantes, não há dúvida, mas como ponto de partida, como construção de identidade “em si” (o problema não é só seu, não é vivido apenas por você; outros-as padecem do mesmo mal e é necessário buscar as razões, a raiz disso) e autodefinições (resistência as definições hegemônicas e combate à matriz social de dominação). Contudo, caso não se transcenda esse momento, fica-se preso à sophia (vivência/experiência) e seu caráter terapêutico sem ascender à episteme (conhecimento do real vivido e experenciado) e à construção das mediações que permitem apreender a totalidade social.

O vivido e experenciado, o “sentido na pele” precisa ser apreendido em sua materialidade e concretude, isto é, pelas circunstâncias e condições histórico-sociais que o produzem e condicionam espaço-temporalmente. Condições e circunstâncias que podem ser apropriadas e apreendidas pelo desvelamento das manifestações comportamentais, culturais e ideológicas. Nas palavras de Fanon4 (2020), a importância da experiência/vivência está no seu sentido, o que nos remete à sociologia compreensiva de Max Weber, para o qual é através do desvendamento dos comportamentos e ações (sentido da ação social) que se chega à compreensão das motivações dos indivíduos sociais. Daí a importância “da visão interna, o mais possível completa, de casos particulares” (FANON, 2020, p. 181).

Entende-se, assim, que os racismos não acontecem “em um vácuo político e social” (LORDE, 2020b). Sendo assim, “lugar de fala” não proíbe as demais pessoas de falarem, como tão bem explicitado por Rita Von Hunty/ Guilherme Terreri (“Lugar de fala e a confusão que se faz” …, Tempero Drag, dezembro 2021).

Mais do que nunca, é preciso superar as tipologias autodefinidoras de alguns movimentos que acabam fazendo com que “nos escondamos por detrás das farsas de separação que nos foram impostas e que frequentemente aceitamos como se fossem invenção nossa” (LORDE, 2020c, p. 55. Os itálicos são meus). A autora nos dá alguns exemplos:

Provavelmente eu não posso ensinar literatura feita por mulheres negras – a experiência delas é diferente demais da minha”. (…) Outra: “Ela é uma mulher branca, o que teria para me dizer”? Ou: “Ela é lésbica, o que meu marido, ou meu chefe, diria”? Ou ainda: “Essa mulher escreve sobre os filhos e eu não tenho filhos”. E todas as outras incontáveis maneiras de nos privarmos de nós mesmas e umas das outras (LORDE, 2020c, p. 55).

(…) são as distorções que nos separam. E devemos nos perguntar: Quem lucra com isso? (…) a força das mulheres está em reconhecer as diferenças entre nós como algo produtivo e em defender sem culpa as distorções que herdamos, mas que agora são nossas e que cabe a nós alterar. (…) Acolhemos todas as mulheres que possam nos encontrar, cara a cara, para além da objetificação e para além da culpa (LORDE, 2020b, p. 162, 164 e 167).

(…) Sendo eu uma lésbica negra e mãe em um casamento inter-racial, havia sempre uma parte de mim que ofendia os confortáveis preconceitos dos outros sobre quem eu deveria ser (…) em consequência de um fantasioso e limitado molde de negritude (LORDE, 2020d, p. 173).

Diversas vezes na década de 1960 exigiram que eu defendesse minha experiência e meu trabalho, por ser mulher, por ser lésbica, por não ser separatista (vertente do feminismo radical que se recusava a se articular politicamente com homens), porque algo em mim não era aceitável. Tive que aprender a me agarrar a todas as partes de mim que me serviam, apesar da pressão para expressar somente uma delas e excluir todas as outras (LORDE, 2020d, p. 180).

(…) Em um encontro nacional de mulheres negras em prol da ação política, uma jovem ativista dos direitos civis, que tinha sido espancada e presa no Mississipi poucos anos antes, foi atacada e silenciada porque seu marido era branco (LORDE, 2020d, p. 174).

Não confie em pessoas brancas, porque elas não querem o nosso bem, e não confie em pessoas mais escuras que você, porque o coração delas é tão preto quanto a cara”. (E onde isso me colocava, a filha mais escura?) Ainda hoje, é doloroso escrever isso. Quanto mensagens como essas são herdadas por todas nós, em quantas vozes, de quantas maneiras diferentes? E como podemos suprimi-las da nossa consciência sem antes reconhecer o que diziam e o quão destrutivas foram? (LORDE, 2020e, p. 206 e 207).

No entanto, de antemão, temos ciência do quanto essa questão é espinhosa e difícil de ser enfrentada pelas pessoas “brancas” e pessoas “pretas”. As primeiras, invariavelmente, são vistas e recebidas com “um pé atrás” e “sob suspeita” pelas segundas por conta do racismo estrutural que alicerça a formação econômico-social brasileira colonial, colonizada e colonialista, criando as patologias das pessoas “pretas” e “brancas”, assim como suas “anomalias afetivas” (FANON, 2020, p. 24) e “menos-valia psicológica” (=sentimento de inferioridade – FANON, 2020, p. 72). A epiderme clara, mais clara ou aparentemente “branca” já coloca a pessoa como possível “inimiga”, mesmo que seja “aliada”.

A cor da pele carrega consigo, histórico-socialmente, preconceitos e discriminações tanto para pessoas “pretas” como para “brancas”, sobressaindo ainda o fato de que essas últimas devem mesmo, como forma de remissão, sentir-se culpadas. Não entendem (tanto as pessoas “brancas” quanto as “pretas”) que esse modo de culpa gera “impotência”, “uma atitude defensiva que destrói a comunicação”, sendo usada como “instrumento para proteger a ignorância e manter as coisas como estão, a proteção mais sofisticada da inércia” (LOURDE, 2020, p. 162 e 163).

Por mais pedrada que receba, correndo o risco de ser apetrechada de adjetivos infames, infundados e cancelada por alguns(mas), ainda assim, há certas coisas que precisam ser ditas e refletidas, doam a quem doer, ainda que seja em nós mesmos(as). Na verdade, “passei a acreditar, com uma convicção cada vez maior, que o que me é mais importante deve ser dito, verbalizado e compartilhado, mesmo que eu corra o risco de ser magoada ou incompreendida. A fala me recompensa, para além de quaisquer outras consequências” (LOURDE, 2020c, p. 51).

Procuremos, portanto, fazer a travessia entre os espinhos, enfrentando as dificuldades e os arranhões superficiais e profundos a fim de encontrar as respostas que buscamos e compreender as razões que levam possíveis “aliados(as)” a serem transformados em “inimigos(as)”, sendo, por vezes, odiados e difamados, tendo seu nome e imagem descreditados por aqueles(as) que estariam, a princípio, do mesmo lado (“… luta conjunta com aqueles que definimos como sendo diferentes de nós, mas com quem compartilhamos objetivos comuns” = camarada – LORDE, 2020f, p. 153).

Quem é o inimigo, quem é você”?!

O que é preciso para que todos(as) aqueles(as) que lutam pela supressão das desigualdades sociais (questões sociais) e de todas as formas de opressão, dominação, exploração e expropriação, independente de cor, sexo, sexualidade, idade, nacionalidade, possam encontrar aquilo que os(as) une sem negligenciar ou secundarizar as singularidades e especificidades que os(as) particularizam5? Dito de outro modo, possam encontrar, conviver e viver a “unidade na diversidade”, como diria Karl Marx? Fanon (2020), Lorde (2020) e Collins (2019) também fazem esse questionamento, ainda que de outros modos e com outras palavras.

Desejo sinceramente levar meu irmão, seja negro, seja branco, a sacudir da maneira mais vigorosa possível a deplorável libré urdida por séculos de incompreensão (FANON, 2020, p. 26).

Negros alienados (mistificados) e brancos não menos alienados (mistificadores e mistificados) (FANON, 2020, p. 43).

(…) o negro escravo de sua inferioridade, o branco escravo de sua superioridade, ambos se comportam em função de uma linha mestra neurótica (FANON, 2020, p. 74).

(…) nosso intuito é viabilizar um encontro sadio entre o negro e o branco (FANON, 2020, p. 94).

Como psiquiatra, devo ajudar meu cliente a conscientizar seu inconsciente, a não mais buscar uma lactificação alucinatória, mas a agir no sentido de uma mudança das estruturas sociais (FANON, 2020, p. 114).

(…) outra solução é possível. Ela implica uma reestruturação do mundo (FANON, 2020, p. 95).

(…) luto pelo nascimento de um mundo humano, isto é, um mundo de reconhecimentos recíprocos (FANON, 2020, p. 228).

(…) respeito aos valores fundamentais que fazem um mundo humano, essa é a principal urgência daquele que, depois de ter refletido, prepara-se para agir (FANON, 2020, p. 232).

(…) mulheres negras e brancas brigamos umas com as outras para determinar quem é a mais oprimida, em vez de enxergarmos as áreas em que nossas causas são as mesmas (LORDE, 2020g, p. 65).

Nos anos 1960, a raiva despertada na comunidade negra era frequentemente expressa não verticalmente, contra a corrupção do poder e as verdadeiras fontes do controle sobre as nossas vidas, mas horizontalmente, entre as pessoas mais próximas de nós que espelhavam nossa própria impotência (LORDE, 2020d, p. 171).

O negro era lindo, mas ainda suspeito, e com frequência nossos fóruns de debate se tornavam arenas de jogos, como “eu sou mais preto que você” ou “eu sou mais pobre que você”, nos quais não há vencedores (LORDE, 2020d, p. 173).

Podemos mesmo ainda nos permitir brigar entre nós? (LORDE, 2020d, p. 176)

Quem de nós ainda se permite acreditar que os esforços para retomarmos o futuro podem ser particulares ou individuais? Quem aqui ainda se permite acreditar que a busca pela libertação pode ser incumbência única e exclusiva de uma só raça, ou um só sexo, uma idade, uma religião ou uma classe? (LORDE, 2020d, p. 177)

Que barreira internalizada e autodestrutiva é essa que nos impede de avançar, que nos impede de nos unirmos? (LORDE, 2020d, p. 178)

Vocês não têm que ser iguais a mim para que possamos lutar lado a lado. Eu não tenho que ser igual a vocês para reconhecer que nossas guerras são as mesmas. O que devemos fazer é nos comprometer com um futuro que seja capaz de incluir cada um de nós e trabalhar para conquista-lo, utilizando os pontos fortes de nossos atributos individuais. E, para fazer isso, temos que aceitar nossas diferenças ao mesmo tempo em que reconhecemos nossas semelhanças (LORDE, 2020d, p. 177).

Espero que consigamos aprender com os anos 1960 que não podemos nos permitir fazer o trabalho dos nossos inimigos, destruindo uns aos outros (LORDE, 2020d, p. 180).

As mulheres negras estão longe de ser as únicas que enfrentam problemas sociais produzidos por raça, gênero, classe, sexualidade, idade, capacidade, nacionalidade e sistemas semelhantes de opressão. Nossas lutas para viver uma vida significativa podem ser organizadas e sentidas de maneira diferente, mas nossas experiências, quando consideradas conjuntamente, revelam por que as ideias continuam sendo fundamentais para as lutas por liberdade, igualdade e justiça social. O compromisso com princípios éticos mais amplos, como esses, nos permite perceber o que temos em comum e, espero, elaborar maneiras de responder coletivamente às injustiças sociais (COLLINS, 2019, p. 11).

Guerreiro Ramos (2023) conflui com Fanon (2020) quando aponta as “patologias” do “branco” – e também do “negro” –, tratadas pelo segundo como “psicopatologia” e um “complexo psicoexistencial” (2020, p. 23 e 26) que afeta a ambos, desdobrado em “anomalias afetivas” (FANON, 2020, p. 24).

Questiono até que ponto aqueles(as) que fazem parte e militam nas variantes frentes do Movimento Negro atual estudam (LESSA, 2014), de fato, para compreender em profundidade, e de modo historicamente condicionado, o que as pessoas autores(as) pretas(os) produziram e produzem. Ecoa a rememoração das palavras de Lorde em minha mente (2020a, p. 87): “Você realmente leu as minhas palavras ou apenas folheou meus livros em busca de citações que pudessem convincentemente sustentar uma ideia pré-concebida (…)”. É o que parece mais plausível pelas circunstâncias atuais dos modos de ser e fazer das militâncias – excluindo as exceções que, ainda bem, existem.

Não sou uma especialista no assunto racial, também não sou uma pessoa “preta”, mas faço uso da palavra e me posiciono partindo da episteme e do materialismo histórico-dialético, apropriando-me de algumas das obras referenciais de autores(as) “pretos(as)” no intuito de compreender mais e melhor as possíveis razões dos estranhamentos e desentendimentos das relações entre pessoas “brancas” e pessoas “pretas” com o fito de superá-los, dado que o processo de revolução social radical necessita de todos(as) nós. Contudo, de antemão, pelas circunstâncias que perpassam essa problemática, é possível afirmar que se trata de uma voz num “diálogo de surdos”, com e entre pessoas que, atualmente, tão somente escutam e aceitam o que afirma seu próprio pensamento (dissonância cognitiva).

No início de sua militância, os discursos e falas de Malcolm X terminaram por inflar e inflamar o ódio das pessoas “pretas” contra as “pessoas brancas” (“Malcolm X – o homem e a mensagem”. Instituto Conhecimento Liberta (ICL), novembro 2023). Todavia, antes de seu assassinato, decorrido algum tempo de maturação intelectual – interrompido e impedido de se desenvolver e tomar corpo teórico/práxico – e “superações por incorporações” de suas primeiras ideias e posicionamentos, notavam-se mudanças substanciais na sua compreensão sobre a relação entre pessoas “pretas” e pessoas “brancas”, podendo e mesmo devendo haver alianças e possibilidade de trabalho comum entre elas.

É o que também ressalva Lorde (2020d) ao tratar sobre os aprendizados da década de 1960 e de Malcolm X, que “passou a examinar as condições sociais sob as quais alianças e coalizações (com pessoas “brancas”) devem realmente ser feitas” (LORDE, 2020d, p. 170. O parêntese é meu). Era o começo de uma reflexão que discutia “as cicatrizes da opressão que nos levam a declarar guerra contra nós mesmos, e não contra nossos inimigos” (LORDE, 2020d, p. 171). As percepções em relação a essas relações entre pessoas “pretas” e pessoas “brancas” deveriam ser alteradas, colocando o foco das nossas energias e lutas em nossos inimigos e não uns nos outros.

Procurando aprender com os anos 1960, Audre Lorde extrai como uma importante lição deste período o quanto o “politicamente correto” havia se tornado “não um guia para a vida, mas um novo par de algemas”. Infelizmente, isto ainda acontece nos dias de hoje:

uma parte pequena, mas ruidosa, da comunidade negra perdeu de vista que unidade não significa unanimidade (…). Para trabalharmos juntos, não é preciso que nos tornemos uma mistura de partículas indistintas que se assemelham a um barril de leite achocolatado homogeneizado (LORDE, 2020d, p. 171 e 172).

Consenso não é um pressuposto, não é algo dado, ao contrário, é construído através do dissenso, da discussão, contraposição, análise, reflexão, do pensar por contradição. Isso significa ouvir o que outras pessoas levantam, analisam, refletem e sistematizam sobre o assunto, problema, ainda que não concordemos com elas. Importa entender seus argumentos, identificar seus referenciais, averiguar a concretude e adequação de sua análise, as mediações estabelecidas com a totalidade do real, com seu movimento, contradições e múltiplas determinações a fim de que seja possível inferir se sua apropriação e aproximação da realidade é a mais adequada e rica de mediações possíveis.

É o que se espera de uma discussão, reflexão epistêmica e ontológica, pautada no materialismo histórico-dialético, para além das opiniões (doxa) pessoais, formadas pelo amalgama do senso comum e das vivências e experiências individuais, invariavelmente arrastando o diálogo para apelações morais devido à falta de argumentos/contra-argumentos científicos.

O valor das vivências e experiências pessoais/individuais já foram reconhecidas. Têm a sua importância, mas por si e em si mesmas não bastam. Se, num primeiro momento, podem contribuir para a construção da consciência (identidade) “em si”, ultrapassando a consciência imediata, é preciso avançar e construir as condições que proporcionem a tomada de consciência (identidade) “para si”6 (IASI, 2011; SOUZA, 2022).

O Movimento Negro da década de 1960, consolidado através das lutas do Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos da América, é ilustrativo quanto à condição para e mediação da passagem da consciência imediata para a consciência “em si” das pessoas “pretas”.

O Movimento Negro brasileiro, criado no final da década de 1970, mais precisamente em 1978, contando com a participação ativa de Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e Elisa Larkin Nascimento no ato público de denúncia contra o racismo, realizado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo (RATTS; RIOS, 2010, p. 82), também desenvolveu um importante papel no processo de tomada de consciência (identidade) “em si” das pessoas pretas.

Importante destacar as duas grandes linhas de atuação dos Movimentos Negros: a) reparadora (fenômeno do “abandônico”, retratado por Fanon, 2020, p. 90 a 94) e b) revolucionária. A primeira, nas suas lutas antirracistas, reivindica as ações afirmativas e reparações histórico-sociais aos silenciamentos, opressões, humilhações, expropriações sofridas. A segunda, para além das reparações e do antirracismo, compreende como questão nevrálgica a luta anticapitalista (racismo estrutural porque é parte da estrutura econômico-social-ideocultural capitalista), anti-imperialista, anticolonista, tendo como projeto a transcendência positiva do modo de vida e estrutura social capitalista, do sociometabolismo sistêmico do capital, fazendo a passagem da consciência “em si” para a consciência “para si”, ultrapassando a questão epidérmica da cor, o sexo, a sexualidade, a nacionalidade e a própria existência das classes sociais.

Muitos dos movimentos negros brasileiros atuam sobre a influência da linha reparadora. Como dito, a atuação do Movimento Negro a partir da década de 1960 e consolidação nas décadas de 1970 e 1980, garantiram conquistas relevantes para as pessoas “pretas”, algo reconhecido por bell hooks7 (2003. Trad. apud ALMEIDA, 2020) e Audre Lorde (2020), a exemplo da importância da auto-estima, autodefinição e autodeterminação, destruindo a matriz imagética da “imposição cultural irrefletida” (FANON, 2020, p. 202) e de um complexo de inferioridade (ou “sentimento de inexistência” – FANON, 2020, p. 152) advindo do processo de colonização, da “situação colonial” (GUERREIRO RAMOS, 2023).

A afirmação e positivação da beleza, estética, cultura, enfim, da valorização humanizadora das pessoas “pretas” ao longo das décadas de 1950 e 1960 (descolonização afro-asiática e pós II Guerra Mundial), 1970 e 1980 representou um importante trabalho de recuperação e resgate de autoimagem, bem como sua redefinição autodefinidora. Apesar disso, como notado por hooks (2003. Trad. apud ALMEIDA, 2020), as gerações de pessoas “pretas” do final do século XX e as do século XXI, beneficiárias dessas mudanças, reconhecimentos e conquistas, continuam imersas em uma “angústia emocional subjacente”.

hooks se questionou:

por que com mais oportunidade e sucesso em todas as frentes, havia tanto sofrimento na vida das pessoas negras. O sofrimento não estava limitado às pessoas pobres e de classe baixa. Não estava relacionado ao quanto de dinheiro estamos ganhando ou quão bem sucedidos estamos (hooks, 2003. Trad. apud ALMEIDA, 2020).

Analisando e refletindo falas de estudantes e da geração baby boomers, concluiu que se tratava de uma questão de autoestima. Reproduzindo suas palavras:

Uma das causas crescentes de alarme tem sido a intensificação da baixa autoestima em face de todo tipo de oportunidades que antes não existiam para nossos ancestrais. Embora o racismo e a supremacia branca ainda estejam na ordem do dia, eles não são determinantes poderosos em nossas vidas como eram antes. Olhando para minha família, eu tenho frequentemente me perguntado por que meu irmão, minhas 5 irmãs e eu parecíamos estar mais frágeis psicologicamente que os nossos pais. Como em muitas famílias negras do Sul, onde educação tem sido encorajada, nós todos estudamos, nos instruímos, nos graduamos, ganhamos dinheiro. E apesar de alcançarmos um nível de privilégio material que nossos pais não conheceram, ganho material não tem servido para mudar o nosso autoconceito básico. Repetidas vezes em nossas conversas nós retornamos a questão da autoestima (hooks, 2003. Trad. apud ALMEIDA, 2020).

A citação reporta ao trecho da tradução do prefácio do livro de hooks, ainda não publicado no Brasil, Rock my soul: Black People and Self-Esteem (Sacuda minha alma: pessoas negras e autoestima. Tradução livre). Como a obra não está acessível em português, desconhecemos o seu teor integral, tendo em mãos apenas o prefácio. Por ele, esse pensamento de hooks precisaria ser preenchido pelas particularidades dos contextos histórico-sociais que marcam o final do século XX e as duas décadas do século XXI do sistema capital mundial.

O mal-estar civilizacional, o aumento geométrico dos problemas de saúde mental, depressão, ansiedade, sensação de “impotência reflexiva” (FISHER, 2020), dentre outros, são alguns dos efeitos colaterais da desindustrialização dos países do Sul Global, com o crescimento correlato do setor terciário, da terciarização, da informalidade, da uberização e pejotização do trabalho, resultando em aumento da insegurança, das incertezas, das angústias, dos temores, da instabilidade dos trabalhadores(as) assalariados(as) e desassalariados(as), assim como na intensificação da precariedade e precarização das suas condições de trabalho, de vida e salários, independente de cor, sexo, sexualidade.

O problema é que como o racismo é estrutural às sociabilidades capitalistas, isto é, parte da fundação do modo de produção capitalista, como tão bem lembrado por Fred Hampton8 (2020), do Panteras Negras, por mais que transformações e conquistas tenham sido conseguidas e acumuladas, tais efeitos colaterais provocados pela reestruturação das relações produtivas e de trabalho (fase atual do sistema capital monopolista imperialista financeirizado), impacta mais intensamente as condições materiais de existência e a subjetividade das pessoas “pretas”.

De todo modo, feitas as devidas ressalvas, o problema da autoestima realmente existe, tanto que hooks reconhece que “nós, pessoas negras, temos sido relutantes em romper com a nossa negação e lidar com a verdade de que a baixa autoestima incapacitante atingiu proporções epidêmicas em nossas vidas” e em muitos livros e artigos escritos por teóricos(as) negros(as) há uma recusa em enxergar “em nosso sofrimento a conexão em primeiro lugar com a falta de autoestima, porque, como um autor colocou, isso é ‘simples demais’”. Chega a afirmar, a certa altura, que “com frequência, focamos tanto em como os outros ferem a nossa autoestima que ignoramos as feridas que são autoinflingidas”. Por fim, desfecha:

Embora possamos ter tido um período prolongado de silêncio, talvez mesmo de negação, quando éramos incapazes de falar abertamente e honestamente sobre a crise de como enxergamos a nós mesmos e os outros e como somos vistos, nós pessoas negras sabemos que nossa autoestima coletiva ferida não foi curada. Nós sabemos que estamos com dor. E é apenas enfrentando a dor que poderemos fazê-la ir embora (hooks, 2003 apud ALMEIDA, 2020).

Por sua vez, Lorde (2020e) aborda a mesma temática por outra perspectiva, dialogando, em certo sentido, com Collins (2019) e sua ideia de “eu coletivo”. Diz ela:

Aprender a nos amar como mulheres vai além da insistência simplista de que “Negro é lindo!” Vai além e mais fundo do que a valorização superficial da beleza negra, ainda que, sem dúvida, seja um bom começo. Mas se a jornada para recuperarmos a nós mesmas e umas às outras continuar inexplorada, correremos o risco de fazer mais uma avaliação superficial do eu, sobreposta à anterior e quase tão nociva quanto ela, pois não passa da superfície. Ela certamente não é mais empoderadora (autodeterminadora). E o empoderamento (a autodeterminação) – nosso fortalecimento a serviço de nós e de cada uma, do nosso trabalho e do futuro – será o resultado dessa busca (LORDE, 2020e, p. 216 e 217. Os parênteses são meus).

(Por isso) faz pouco sentido, no longo prazo, que as mulheres negras troquem um conjunto de imagens de controle por outro, mesmo que os estereótipos positivos lhes tragam um melhor tratamento no curto prazo (COLLINS, 2019a, p. 206).

(…) a conceituação do “eu” que tem sido parte da autodefinição das mulheres negras é distinta. O “eu” não é autodefinido como uma maior autonomia que ganhamos ao nos separar dos outros. Ao contrário, (…) é “a capacidade que alguém tem de reconhecer sua própria continuidade com a comunidade mais ampla”. Ao prestar conta aos outros, as afro-americanas desenvolvem “eus” mais plenamente humanos, menos objetificados. (…) Em vez de definir o “eu” em oposição aos outros, a conexão entre os indivíduos proporciona às mulheres negras autodefinições mais profundas e mais significativas (COLLINS, 2019a, p. 204 e 205).

Em outros escritos, Lorde (2020) acentua a necessidade desse autoconhecimento como poder de cura e desalienação – também requerida por FANON, 2020 – ou, no entendimento de Collins (2019a, 211 e 212), da ascensão à consciência “em si” como processo de libertação e liberdade, já que “uma consciência transformada encoraja as pessoas a mudar as condições de sua vida”, evidenciando as “conexões entre o ‘eu’, a transformação e o empoderamento (autodeterminação) pessoal” (COLLINS, 2019a, p. 211. O parêntese é meu), ou o “autoconhecimento como esfera de liberdade” (COLLINS, 2019a, p. 212), isto porque “qualquer mulher negra que seja forçada a permanecer, como indivíduo, ‘inerte por fora’ pode desenvolver o ‘dentro’ de uma consciência transformadora como esfera de liberdade” (COLLINS, 2019a, p. 211). Afinal, “nossas ações como indivíduos fazem com que deixemos de simplesmente existir no mundo e passemos a ter algum controle sobre ele, elas nos permitem ver a vida cotidiana como um processo e, portanto, como algo passível de mudança” (COLLINS, 2019a, p. 215).

Confluindo com Patricia Hill Collins, Audre Lorde defende a autodefinição como um “tipo de luz sob a qual examinamos nossas vidas” (LORDE, 2020h, p. 45), tendo o poder de influenciar diretamente tanto o modo como vivemos quanto o que somos. Essa busca, única esfera de liberdade possível enquanto perdurar a sociabilidade capitalista, “permite às mulheres negras suportar e, em muitos casos, transcender os limites das opressões interseccionais de raça, classe, gênero e sexualidade” (COLLINS, 2019a, p. 181), como também realizar a “passagem da vitimização para uma mente livre” (COLLINS, 2019a, p. 203).

Ademais, têm a virtualidade de transformar a dor em “força, conhecimento ou ação” a partir do momento que ela é “reconhecida, nomeada e, então, usada de alguma forma para que a experiência mude” (LORDE 2020e, p. 213). A negatividade da dor acontece quando as pessoas são tomadas pelo sofrimento, revivendo uma dor sem investiga-la ou metaboliza-la, de modo que ela não é reconhecida, vivida. É preciso “viver a dor” para romper o ciclo aparentemente inescapável do sofrimento (LORDE, 2020e, p. 213 e 214). Caso contrário, sem examinar profundamente os sentimentos e as emoções, então estereotipados e infantilizados, uma “bomba relógio” é armada dentro de cada um(a) de nós.

Por isso Fanon (2020) diz que “complexo de inferioridade” deve ser traduzido por aquilo que realmente é: “sentimento de inexistência”, já que as pessoas “pretas” não têm tempo nem espaço para se dar ao luxo de analisar suas emoções e sentimentos, tendo de se preocupar em “prestar muita atenção à tarefa árdua e contínua de sobreviver nos planos mais concretos e imediatos” (LORDE, 2020e, p. 213).

Ainda que o Movimento Negro tenha relativamente avançado nesse processo de humanização das pessoas “pretas” desumanizadas, a sobrevivência da estrutura social racista das sociabilidades capitalistas, concretamente manifesta nas relações socioculturais, na divisão técnica-social-hierárquica-produtiva do trabalho e demais dimensões da vida social, contando com o agravante da fase atual do modo de produção capitalista e os retrocessos causados no mundo do trabalho, na esfera das políticas “públicas”, dos “direitos sociais” e demais interesses e necessidades universais, acabam recolocando a autoestima como uma questão atual. Quanto a isso, é preciso considerar que a sociabilidade capitalista opera um sistema de opressões que retira parte de sua força da paralisia de sentimento de impotência de suas “vítimas”, as quais terminam consentindo (para sobreviver) – ainda que internamente discordando – com esse mesmo sistema, passando a viver duas vidas, uma para eles e uma para elas mesmas.

Conforme o exposto, é possível extrair algumas ponderações acerca de como o afetivo, o psíquico (neuroses, patologias), o emocional aviltado, ferido, abafado influencia reflexivamente nas relações entre pessoas “pretas” e pessoas “brancas”, algo enfatizado por Fanon (2020) e também por Guerreiro Ramos (2023). E é o pensamento deste último que cabe aqui resgatar.

A construção da “autodefinição” de Guerreiro Ramos como negro ocorreu por intermédio do autoconhecimento promovido pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), dirigido por Abdias do Nascimento. Inicia sua participação em 1949. Em texto escrito em 1953, assim exprime sua experiência:

O TEN me deu uma oportunidade de viver o problema do negro, em vez de ler ou escrever coisas doutorais sobre ele. (…) E, a partir de uma situação concreta vivida, comecei a estudar a fundo o problema do negro no Brasil. O meu engajamento representou, inicialmente, uma fase de liquidação de certas fixações mentais de que era vítima até aquele momento e, em seguida, conferiu-me a capacidade de ver as relações de raça desde uma perspectiva que não suspeitava existir (GUERREIRO RAMOS, 2023a, p. 132).

O TEN tem sido um campo de exercitação psicológica onde muitos negros, expurgando-se do sentimento de inferioridade e da vergonha de sua cor, reencontram a autenticidade de sua condição racial. Essa autenticidade, tornando-os positivos, não os faz ser contra os brancos; ela os faz livres da ambivalência interior, ou da autoflagelação (GUERREIRO RAMOS, 2023a, p. 134).

O TEN se chama a si próprio de negro, sem orgulho, mas com serenidade. Não é a luta contra o preconceito que o justifica, mas uma concepção profundamente democrática da convivência de raças (GUERREIRO RAMOS, 2023a, p. 134).

Interessante notar que o autoconhecimento de Guerreiro Ramos é mediado por um processo psicoterapêutico: o psicodrama, assim definido pelo autor:

(…) um método de análise das relações humanas e um processo de terapêutica psicológica. (Enseja) ao paciente a possibilidade de lutar – não apenas na dimensão imaginária e verbal, mas em todas as dimensões – com seus temores e ansiedades (GERREIRO RAMOS, 2023b, p. 64 e 65).

Temores, ansiedades e demais sentimentos e emoções dos quais a pessoa é libertada mediante a grupoterapia, “um processo sociológico de purgação de conservas culturais” (GUERREIRO RAMOS, 2023c, p. 61 e 62). “O paciente, no palco, pode ser treinado num novo papel ou numa nova conduta. Sua readaptação é obtida aí, e a confiança que ele aí adquire, (…), pode ser transportada para a vida real” (GUERREIRO RAMOS, p. 65, 2023b). Daí a catarse ser o “mecanismo fundamental do psicodrama” (GUERREIRO RAMOS, p. 65, 2023b).

Vemos que, assim como em Audre Lorde e Patricia Hill Collins, o autoconhecimento e autodefinição desempenham papel vital no processo de desalienação e liberdade, ou autocriação (pessoa humana) e libertação pessoal (autovalorização, autoestima), no caso de Guerreiro Ramos (2023). Porém, o autor ainda vai além, afirmando que não se trata de “orgulho”9 – porque este guarda um risco de perversidade, cujas consequências foram historicamente demonstradas pelo movimento nazista –, mas “serenidade”, e não faz de toda as pessoas “brancas” inimigas, alimentando o sentimento de ódio contra todas elas independente de seu posicionamento de mundo, de classe, de consciência de classe, do lugar ocupado na divisão técnica-social-hierárquica-produtiva do trabalho, de lugar geográfico de nascença, etc. Quando tudo isso é negligenciado, a única coisa a sobressair e importar é a cor da pele, evidenciando as distorções e confusões que nós mesmos internalizamos e passamos a reproduzir, como frisado por Lorde (2020f, p. 143).

Antes de continuar, cabe sublinhar alguns aspectos substanciais sobre o perigo da perversidade do ódio. Primeiramente, “o ódio é a fúria daqueles que não compartilham os nossos objetivos, e a sua finalidade é a morte e a destruição” (LORDE, 2020b, p. 161). Quando se torna um “hábito emocional” ou uma “disposição mental”, une aversão à agressividade (LORDE, 2020e, p. 191). É tão nocivo que se traduz por “um desejo de morte ao odiado, não um desejo de vida a qualquer outra coisa” (LORDE, 2020e, p. 192).

Por seu turno, Fanon (2020, p. 68) nos explica que

o ódio não está dado, precisa ser conquistado a todo instante, precisa ser alçado ao ser, em conflito com complexos de culpa mais ou menos assumidos. O ódio pede para existir e aquele que odeia deve manifestar esse ódio por meio de atos, de um comportamento adequado; em certo sentido, deve tornar-se ódio.

Todavia, a contradição é que esse sentimento de ódio é produto de uma sociabilidade estruturalmente racista. As pessoas “pretas” crescem “metabolizando o ódio como o pão de cada dia”, como explica Lorde (2020e, p. 191), “porque sou negra, porque sou mulher, porque não sou negra o suficiente, porque não sou uma determinada fantasia de mulher, porque eu sou”. Viver diariamente enfrentando os racismos e preconceitos torna o ódio uma “dieta tão consistente, (que) é possível acabar valorizando mais o ódio dos inimigos do que o amor dos amigos” (LORDE, 2020e, p. 191). O fato de ter que metabolizar tanto ódio fez com que as células dos seus corpos aprendessem “a viver dele – do contrário, morreríamos dele” (LORDE, 20202, p. 196).

“O ódio dá origem à raiva, e a raiva é um combustível poderoso” (LORDE, 2020e, p. 191). A raiva é diferente do ódio. Quando trabalhada, pode produzir resultados positivos. “É um sofrimento causado pelas distorções entre semelhantes, e a sua finalidade é a mudança” (LORDE, 2020b, p. 161). Isso demonstra a necessidade de questionar essa raiva, a adestrar e domar (não a negar) para que possa ser orquestrada em benefício próprio, caso contrário, aquela “venenosa infiltração de ódio que alimenta essa raiva” (LORDE, 2020e, 184) pode contribuir para gerar atitudes e comportamentos de crueldade, “que é produto do encontro entre os dois” (LORDE, 2020e, p. 184).

A raiva, afinal,

(…) é uma forma incompleta de conhecimento humano. Mais útil que o ódio, mas ainda assim limitada. A raiva é útil para ajudar a entender nossas diferenças, mas, a longo prazo, a energia gerada apenas pela raiva é uma força cega, que não pode criar o futuro. Pode apenas demolir o passado. Tal força não se concentra no que está adiante, mas sim no que está atrás, no que a criou – o ódio (LORDE, 2020e, p. 191 e 192).

Talvez as pessoas “pretas” ao nutrirem “ódio” pelas pessoas “brancas” possam delas se aproximar e estabelecer contato por intermédio da sua sucessora: a “raiva”, já que “quando não existe nenhuma conexão entre as pessoas, a raiva é uma forma de aproximá-las” (LORDE, 2020e, p. 210). No entanto, “quando grande parte da conexão é problemática (distorções, confusões, preconceitos, discriminações), ameaçadora ou não reconhecida, a raiva é uma forma de manter as pessoas separadas, de colocar uma distância entre nós” (LORDE, 2020e, p. 210). E é assim que o potencial da raiva se perde, porque, comumente, a segunda opção é a que prepondera nos encontros desencontrados entre pessoas “pretas” e pessoas “brancas”, ambas sofrem com suas “anomalias afetivas”, com suas “neuroses” e “patologias” legadas pela perpetuada “situação colonial” (neocolonialismo ou colonialidade são as denominações atuais) da sociabilidade capitalista brasileira.

Retomando Guerreiro Ramos, para ele, na verdade, em território brasileiro não existem pessoas “pretas” e pessoas “brancas”, mas sim mestiços(as), assertiva com a qual acordamos. Muryatan Barbosa, professor da Universidade Federal do ABC, apresentador da coletânea de escritos de Guerreiro Ramos reunidos na obra Negro Sou e uma das referências no estudo e pesquisa sobre o autor, alerta que o sociólogo baiano “se aproximou da temática étnico-racial com o devido cuidado, considerando o perigo de ser acusado de promotor do ‘racismo às avessas’, como costumeiramente se faz no Brasil” (BARBOSA, Apresentação, p. 21. In: GUERREIRO RAMOS, 2023).

Isto significa que o posicionamento de Guerreiro Ramos referente as relações denominadas étnico-raciais não é aceito no Movimento Negro como um todo. Também é preciso pontuar que por estar inserido naquilo que didaticamente se intitula “classe média” é visto por muitos(as) com desconfiança, o que não acontece com Lélia Gonzalez, cuja família galga tal condição graças ao irmão Jaime, jogador do Flamengo, revertendo a situação existencial inicial da família (RATTS; RIOS, 2010, p. 30, 31 e 32). Talvez esse aspecto não pese tanto em relação a ela porque, diferente daquele, não faz afirmações tão polêmicas quanto.

Para o sociólogo baiano não existem pessoas negras (“pretas”) ou “brancas” em si mesmas, do ponto de vista biológico. Daí usar as aspas na palavra negro em seus escritos. “Ele via tal pertença como algo circunstancial, pois em verdade seríamos todos mestiços, claros ou escuros. Pessoas negras (pretas) ou brancas existiriam por uma construção histórica e social, associada à dominação eurocêntrica do mundo” (BARBOSA, “Apresentação”, p. 22. In: GUERREIRO RAMOS, 2023).

Portanto, o autor tinha uma “visão antiessencialista da negritude”, um contraponto em relação a muitos dos movimentos negros contemporâneos, muito mais voltados e apegados às ações afirmativas, às identidades, às vivências e experiências como essencial e essência do próprio movimento, algo que se torna tendência na última década do século XX e permanece até hoje devido os efeitos do pós-estruturalismo (WOOD; 1999), atualizado através dos estudos culturais, cuja linha hegemônica não é a crítica-revolucionária. A influência é manifestadamente sentida nos discursos e formas de interpretação da grande maioria dos movimentos negros brasileiros.

Assim como Guerreiro Ramos, Fanon (2020) também aponta essas negatividades da “negritude” (o movimento negritude), embora seus leitores atuais, influenciados pelo pós-estruturalismo, ignorem e silenciem, de modo atônito, “as ruminações impacientes do autor contra a idiotice daqueles que se permitiram habituar às incursões raciais de um mundo epidermizado” (GILROY, Introdução, p. 302. In: FANON, 2020). Fanon propõe as pessoas “pretas” e pessoas “brancas” “ultrapassar sua negrura, seus sonhos de brancura, tanto quanto sua escolha negativa da ‘negritude’ rumo a um mundo humano onde brancos e negros possam enfim se reconhecer pela mediação de um projeto comum” (JEANSON, Reconhecimento de Fanon, p. 269 e 270. In: FANON, 2020).

De modo semelhante, guardadas as especificidades, Guerreiro Ramos caminha na mesma direção de Fanon. “As pessoas se tornam negras ou brancas dentro de um sistema mundial de classificação eurocentrado, racista, que em cada região adquiriu particularidades, por vezes contraditórias, por vezes ambivalentes” (BARBOSA, Apresentação, 2023, p. 26 e 27. In: BARBOSA, 2023).

Nas décadas de 1950, 1960 e 1970 os estudos afroamerindígenas e amefricanos da América Ladina identificavam a “situação colonial” como nodal para entender os complexos psicológicos e existências dos quais tanto os chamados “brancos” quanto os chamados “negros” deveriam se libertar. Como disse Fanon (2020, p. 22 e 23) “é preciso libertar o homem”, livrá-lo de todas as formas de ressentimentos a fim de que se torne “acional”, “reivindicando de modo integral a dimensão concreta do projeto humanista de homem, enquanto consciência em si e para si” (FAUSTINO, Posfácio, 2020, p. 248. In: FANON, 2020), ciente de que para isso a exigência consiste, “a um só tempo, a transformação dos homens e das estruturas” (JEASON, Reconhecimento de Fanon, 2020, p. 278. In: FANON, 2020).

“O negro escravo de sua inferioridade, o branco escravo de sua superioridade, ambos se comportam em função de uma linha mestra neurótica” (FANON, 2020, p. 74). Em Patologia social do branco brasileiro, escrito em 1955, Guerreiro Ramos demonstra como “as pessoas de pigmentação mais clara tendem a manifestar, em sua autoavaliação estética, um protesto contra si próprias, contra sua condição étnica objetiva” (GUERREIRO RAMOS, 2023, p. 233), isto é, não se reconhecerem mestiças. Essa é a patologia do(a) “branco(a)” e também, inversamente, dos(as) “pretos(as)”, produzindo um “desequilíbrio na autoestimação” de ambos (GUERREIRO RAMOS, 2023, p. 233).

Apoiado no recenseamento do IBGE dos anos de 1940 e 1950, o autor comenta que não poderia obter melhor flagrante “da perturbação psicológica do brasileiro em sua autoavaliação estética” (GUERREIRO RAMOS, 2023, p. 236). Analisando os dados, constatava que “o nosso branco é, do ponto de vista antropológico, um mestiço, sendo, entre nós, pequena minoria o branco não portador de sangue preto” (GUERREIRO RAMOS, 2023, p. 237).

Assim como observado por bell hooks, o sociólogo baiano infere que ao longo das décadas de 1950 e 1960, devido a luta antirracista dos movimentos negros amefricanos, conquistas se fizeram sentir, produzindo alterações socioeconômicas para certos segmentos das pessoas “pretas”, formando uma camada de “classe média”, principalmente com a urbanização, modernização e incremento dos cargos no aparato estatal.

Verifica-se que desapareceram, desde há muito, do país as situações estruturais que confinavam a massa pigmentada nos estratos inferiores da escala econômica; e, de outro, observa-se que a massa pigmentada, preponderante desde o início de nossa formação, absorveu, pela miscigenação e pela capilaridade social, grande parte do contingente branco, que, inicialmente, podia considerar-se isento de sangue negro. O que, nos dias de hoje, resta de brancos puros em nosso meio é uma cota relativamente pequena. O Brasil é, pois, do ponto de vista étnico, um país de mestiços. Os fatos da realidade étnica no Brasil, eles mesmos, estão iluminando a consciência do mestiço brasileiro e o levam a perceber a artificialidade, em nosso meio, da ideologia da brancura. O ideal da brancura, (…) nas condições atuais é uma sobrevivência que embaraça o processo de maturidade psicológica do brasileiro, e, além disso, contribui para enfraquecer a integração social dos elementos constitutivos da sociedade nacional (GUERREIRO RAMOS, 2023, p. 245, 246. O itálico é meu).

É obvio que o desaparecimento dos aspectos aqui descritos da patologia social do “branco” brasileiro não ocorrerá como consequência de mero trabalho de reeducação e esclarecimento. Esse trabalho, decerto, é necessário e, além disso, de efeitos positivos, nisso que suscetível de libertar muitas pessoas do que se chamou protesto racial. Mas são os fatos mesmos que, em última análise, propiciarão o desaparecimento daquela anormalidade de nossa psicologia coletiva. Esse problema envolve uma questão de articulação de gerações. É natural que os caracteres daquela patologia se mostrem mais vivos nas gerações mais velhas, que receberam, de gerações outras que alcançaram a plena vigência do regime escravo, uma definição pejorativa social do negro e do mulato. As gerações mais novas, entretanto, se mostram mais acessíveis a admitir os novos critérios de avaliação que os fatos estão impondo. A tradição da brancura que ainda sobrevive, entre nós, terá de ser ultrapassada por outra tradição, tradição a que estamos assistindo nascer e que representa novas condições objetivas da vida brasileira. Nos dias de hoje, a idealização da brancura, na sociedade brasileira, é sintoma de escassa integração social de seus elementos, é sintoma de que a consciência da espécie entre os que a compõem mal chegou a instituir-se. (…) Apenas uma situação colonial temporária tem embaraçado esse processo. (…) à luz de uma sociologia científica, o que se tem chamado no Brasil de “problema do negro” é reflexo da patologia social do “branco” brasileiro, de sua dependência psicológica. Foi uma minoria de “brancos” letrados que criou esse “problema”, adotando critérios de trabalho intelectual não induzidos de suas circunstâncias naturais diretas. (…) Nessas condições, reconhece-se hoje a necessidade de reexaminar o tema das relações de raça no Brasil dentro de uma posição de autenticidade étnica (ou, em outras palavras, através do reconhecimento de que somos, majoritariamente, mestiços). Só a simples tomada dessa posição vale como meio caminho andado no discernimento das incompreensões (em Audre Lorde aparecem como distorções e confusões) reinantes em nossas relações de raça, atualmente (GUERREIRO RAMOS, 2023, p. 250, 251 e 252. Os parênteses e itálicos são meus).

Em O Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro defende a ideia de “Povo-Nação” (SOUZA, 2016) e também demonstra que todos(as) aqueles(as) que nascem em território brasileiro são, na verdade, mestiços(as). Sílvio Almeida, em seu livro Racismo estrutural, enfatiza que a “regra de uma gota de sangue” (one drop rule) garante que aquelas pessoas vistas ou tidas como “brancas” no hemisfério sul ou no Sul Global – cujos territórios foram e ainda são colonizados ou neocolonizados, ocidentalizados – não sejam, de fato, “brancas”. As pessoas aparentemente “brancas” dos países periféricos, dependentes, endividados e subservientes às potências centrais, ocidentais e orientais ocidentalizadas, não têm o “sangue puro” em sua ascendência (árvore genealógica familiar) nem em sua ancestralidade (porções genéticas herdadas de gerações anteriores e possíveis origens geográficas, decodificadas pelo DNA), uma vez que “sempre haverá um índi(gena) ou um negro em sua linhagem para lhe imprimir algum ‘defeito’” (ALMEIDA, 2021, p. 79).

O(a) “branco”(a) da ideologia da brancura e da branquidade tem um lugar geográfico específico: o Norte Global. Não é por outro motivo que as atitudes/comportamento racistas sejam recorrentemente referenciados ao eurocentrismo ou ao processo de ocidentalização do mundo, tornado a imagem e semelhança do branco europeu e de sua expansão colonialista/imperialista em torno do globo. Um filme brasileiro que retrata isto de modo exemplar é Bacurau. Em uma das cenas, disponíveis no youtube (“Vocês não são brancos como nós”. Youtube. Cena de Bacurau, 2019), há uma conversa reveladora entre os/as jogadores(as)/caçadores(as) estrangeiros(as) e os/as jogadores(as)/caçadores(as) brasileiros(as):

Brasileiro: A gente não é dessa região.

Estrangeiro: De que região vocês são?

Brasileiro: A gente é do sul do Brasil. Uma região muito rica. Com colônias alemãs e italianas. Somos mais como vocês.

Estrangeiro: Mais como a gente?! (uma estrangeira dá um riso debochado).

Brasileiro: Sim!

Estrangeiro: Eles não são brancos, são? Como podem ser como a gente? Somos brancos. Vocês não são brancos.

Outro Estrangeiro: Bom… Sabe de uma coisa… Eles meio que parecem brancos… mas não são. Os lábios e nariz dela entregam. Estão vendo? Eles estão mais para mexicanos brancos.

Uma Estrangeira: Eu acho que ele é um latino bonitão! (Bacurau, 2019).

A sétima arte reflete, mimeticamente, o peso do lugar geográfico de nascença na definição do “branco” e da “brancura” no modo de vida capitalista, racista, heteronormativo, misógino, patriarcal, machista, homofóbico, imperialista, colonizador. Logo, não é precisamente a cor da pele quem define o que a pessoa é, outras determinações atuam e condicionam sua “identidade”, como o caso de fazer parte do Norte Global ou do Sul Global, se pertence, ou não, a uma elite socioeconômica garantidora de privilégios sociais e se comunga, ou não, com eles, e assim sucessivamente. Esse é um dos desdobramentos que permite compreender a assertiva de Almeida (2021, p. 79): “o pavor de um dia ser igualado a um negro é o verdadeiro fardo que carrega o homem branco da periferia do capitalismo e um dos fatores que garante a dominação política, econômica e cultural dos países centrais”.

Como brasileira que sou, filha de pais brasileiros, nascidos no Brasil, mesmo tendo a “cor da pele branca puxada para bege claro”, considero-me mestiça (GUERREIRO RAMOS, 2023; RIBEIRO, 1995), porque em algum momento da minha ascendência e ancestralidade há indígenas, europeus(eias) e africanos(as) amalgamados, presentes como parte do que e de quem sou, da minha história, que, no final das contas, é a história de todos(as) nós, brasileiros(as), oriundos destas terras. Assim como Audre Lorde, recuso-me a ser encaixada em qualquer tipologia autodefinidora deste ou daquele movimento social e seus “identitarismos limitantes, tipologias fenotípicas”, que contribuem para as desavenças, desencontros, distorções e confusões entre aqueles(as) que estão lutando do mesmo lado, transformando possíveis aliados(as) em inimigos(as), enfraquecendo a luta anticapital, anticapitalista, antiimperialista, anticolonialista, antirracista e destilando ódio/raiva entre nós.

O mais recente Censo Demográfico brasileiro, de 2022, apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), demonstra que somos um país de mestiços, reiterando as tendências vislumbradas por Guerreiro Ramos (2023) na análise do Censo de 1940/1950 e sua conclusão a respeito da “perturbação psicológica dos(as) brasileiros(as)”. Primeiramente, é preciso saber como o IBGE realiza o Censo Demográfico.

“O sistema classificatório do IBGE utiliza, simultaneamente, os métodos da autoidentificação e heteroidentificação” (“Preto, pardo e negro: entenda…”. Universidade Tiradentes – UNIT, 2022). Conforme o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), por autoidentificação ou autoatribuição de pertença “o próprio sujeito identifica o grupo ao qual se considera membro”. Já na heteroidentificação ou heteroatribuição de pertença, “outra pessoa identifica o grupo ao qual o sujeito pertence”.

Contudo, no Censo Demográfico de 2022, o método adotado foi o de autoidentificação ou autoatribuição de pertença, incluindo a percepção “racial” (“Maior presença de negros no país…”. Agência Brasil, 2023). Também é esclarecido que o conceito de “raça” é utilizado “como categoria socialmente construída na interação social e não como um conceito biológico. As classificações são: branca, preta, parda, amarela (origem asiática) e indígena” (“Maior presença de negros no país…”. Agência Brasil, 2023).

Tal classificação utilizada pelo IBGE é um reflexo dos condicionantes histórico-sociais que influenciaram e influenciam para e na constituição da “perturbação psicológica” do “povo brasileiro”, como o entende Darcy Ribeiro (1995), evidenciando algumas das contradições do real, neste caso, traduzidas pelos conflitos racializados gerados e alimentados pelo sistema capitalista. Afinal, como sentencia Haider (2019, p. 125), “raça (é) uma característica estrutural da resposta capitalista à luta de classes vinda de baixo, um instrumento de divisão e desorganização” tendo o potencial de se tornar “um obstáculo ao desenvolvimento da organização de classe”. A citação de Hall (2013, p. 333 apud HAIDER, 2019, p. 121), na sequência, exemplifica sua assertiva:

Embora os pobres negros e brancos se encontrem objetivamente na mesma posição, eles habitam mundos ideologicamente tão separados que cada um pode ser apresentado ao outro como grupo de referência negativo, a “causa manifesta” do infortúnio um do outro. À medida que a situação econômica aperta, a competição entre trabalhadores aumenta. E a competição estruturada em termos raciais ou de distinções de cor é um grande negócio. (…). Portanto, a crise da classe trabalhadora é reproduzida, mais uma vez, através dos mecanismos estruturais do racismo, como crise nas e entre as classes trabalhadoras.

Por isso, a classificação do IBGE, um aparelho privado de hegemonia do capital, reproduz a racialização como forma de dominação social, mantendo e perpetuando os marcadores sociais que dificultam e obstaculizam a organização de classe, de massas, além de servir de referência para outras instituições e aparelhos de poder institucionalizados.

As variações dessa classificação demográfica em relação ao termo “pardo” ao longo das décadas de 1940 a 2020 espelham as confusões, distorções e “perturbações psicológicas” produzidas e estimuladas pela estrutura social racista da organização produtiva-social capitalista.

“Desde a fundação do IBGE, em 1936, o conceito (pardo) mudou de sentido diversas vezes – e tiveram até anos que não havia uma explicação exata sobre quem a categoria deveria representar” (“Maior presença de negros no país…”. Agência Brasil, 2023).

.1940: pardo são todos que não puderem ser classificados como de cor preta, branca ou amarela.

.1950: não havia definição.

.1960: não havia definição, apenas informava: “para os aborígenes que vivem fora de aldeamento ou postos indígenas, deverá ser assinalado o retângulo de nº 27 (pardo), assim como para os que se declararem: mulato, caboclo, cafuzo, etc.

.1970: não teve questões raciais no Censo.

.1980: será assinalado o retângulo pardo para as declarações diferentes de branca, preta ou amarela, tais como: mulata, mestiça, índia, cabocla, cafuza, mameluca, etc.

.1991: será assinalado o retângulo pardo para as declarações diferentes de branca, preta, amarela ou indígena, tais como: mulata, mestiça, cabocla, cafuza, mameluca, etc.

.2000: para a pessoa que se enquadrar como pardo ou se declarar mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça.

.2010: para a pessoa que se declarar pardo.

.2022: para a pessoa que se declarar pardo ou que se identifique com mistura de duas ou mais opções de cor ou raça, incluindo branca, preta, pardo e indígena.

Fonte: IBGE (“Maior presença de negros no país…”. Agência Brasil, 2023).

Há outros dados relevantes que merecem ser destacados sobre o Censo 2022. Atualmente, os “pardos” correspondem a 45,3% da população, tendo superado, pela primeira vez, desde 1872 (primeiro recenseamento do país), a quantidade dos “brancos”. “A proporção de pretos mais que dobrou entre 1991 e 2022, alcançando 10,2% da população”. Sendo assim, na somatória final, 55,5% da população se identifica como preta ou parda. “Apesar do IBGE não agrupar oficialmente, ativistas e o Estatuto da Igualdade Racial consideram negro o conjunto de pessoas pretas e pardas” (“Maior presença de negros no país…”. Agência Brasil, 2023).

Segundo os dados do Censo por cor ou “raça”, tem-se a seguinte proporção:

PARDOS: 92,1 milhões (45,3%)

BRANCOS: 88,3 milhões (43,5%) (na verdade, em sua maioria, conforme a formação do povo brasileiro, mestiços-as)

PRETOS: 20,7 milhões (10,2%)

INDÍGENAS: 1,7 milhão (0,6%) (isto devido o genocídio colonizador passado e neocolonizador presente)

AMARELOS: 850 mil (0,4%)

(Fonte: IBGE)

Portanto, hoje, o Brasil é um país com maioria de pessoas mestiças, como defendido por Guerreiro Ramos (2023), com o qual confluímos, já que o total da população brasileira, conforme o Censo 2022, é de 203.080.756, sendo que 55% (pardos e pretos) corresponde a 111.694.415,8, restando 91.386.340,2 que englobam as demais classificações.

De acordo com o IBGE, “uma pessoa parda é considerada mestiça, pois apresenta uma mistura acentuada entre uma ou mais etnias” (“Preto, pardo e negro: entenda quais são as diferenças”. Universidade Tiradentes – UNIT, 2022. O itálico é meu).

Talvez as querelas, as confusões, as distorções, as questões e problemas psicológicos (patologias, neuroses, fobias10, anomalias afetivas, sentimento do abandônico11) pudessem ser ao menos em parte combatidas e postas em seu devido lugar se a sociedade brasileira atingisse a compreensão daquilo que realmente é ou, nas palavras de Guerreiro Ramos (2023, p. 252), reconhecesse sua “posição de autenticidade étnica” (majoritariamente mestiços-as), ou ainda, segundo Cida Bento, cofundadora e conselheira do Centro de Estudos das Relações de trabalho e desigualdades (Ceert), “as vozes negras” vêm “sacudindo a sociedade para olhar para aquilo que o país é” (“Maior presença de negros no país…”. Agência Brasil, 2023), ressignificando-o.

(Des)caminhos dos Identitarismos…

Em prefácio ao livro de Asad Haider, Armadilha da Identidade (2019), Silvio Almeida elenca alguns aspectos nodais sobre as polêmicas em torno das “políticas afirmativas ou identitárias”, “políticas de identidade” ou “identitarismo”, algo que venho sublinhando como os perigos da perversidade dos Identitarismos.

Identidade é a percepção que se tem a respeito de si mesmo, com o que e quem nos serve de exemplo, de referência no para que/para quem no processo de construção de nós mesmos. “Somos pensados através da identidade, ainda que nela não pensemos” (ALMEIDA, Prefácio, p. 9. In: HAIDER, 2019). Todavia, “a identidade se torna uma armadilha quando se converte em uma política, ou mais precisamente, em ‘política de identidade’ ou ‘identitarismo’” (ALMEIDA, Prefácio, p. 9. In: HAIDER, 2019).

A identidade não é algo exterior às determinações da vida material, não é ponto de partida e de chegada em si mesma, como acontece no identitarismo, que é incapaz de projetá-la nas relações sociais concretas que sustentam tais identidades sociais, isto porque a identidade tem uma história e essa, por sua vez, condiciona reflexivamente a conformação da subjetividade dos indivíduos (as subjetividades são objetivadas), que na sociabilidade capitalista são sujeitos assujeitados “tornados (não são) negros, brancos, homens, mulheres, (…) etc. pelo funcionamento das instituições políticas, (jurídicas) e econômicas, orientadas pela e para a sociabilidade do capitalismo” (ALMEIDA, Prefácio, p. 9. In: HAIDER, 2019. O itálico e parênteses são meus).

À sombra do identitarismo, o mundo é uma fantasmagoria em que ser negro, mulher, LGBT, trabalhador e todo sofrimento real projeta-se em narrativas fragmentadas, relatos de experiências pessoais e outros subjetivismos travestidos de método. Ainda que se refiram a experiências comuns de muitos indivíduos, as narrativas e relatos subjetivos não nos oferecem mais do que um caleidoscópio sociológico (descritivo). O identitarismo, como forma de pensar a realidade, tem seu limite máximo nas manifestações da ideologia identitária (ALMEIDA, Prefácio, p. 10. In: HAIDER, 2019).

Fica claro que não negamos, muito menos negligenciamos, a relevância da identidade, como o faz certa esquerda que se diz “tradicional”, “raiz”, mas acaba sendo antirrevolucionária e mecanicista ao se declarar anti-identitária, pois não é capaz de apreender as identidades que perfazem os segmentos multifacetados que compõem a classe trabalhadora no mundo contemporâneo, visando e defendendo uma “identidade de classe” inexistente e descolada da própria realidade, tornando-se, assim, antirrevolucionária e, em certo sentido, identitarista, já que a tal identidade de classe proclamada só existe no mundo abstrato das ideias, como abstração, uma vez que não preserva as diversas identidades realmente existentes na composição da classe trabalhadora atual, razão de não conseguir chegar à unidade da diversidade.

Entrementes, as identidades são, sim, ponto de partida, mas devemos partir delas para, incorporando-as, superá-las (superação por incorporação) a fim de que possamos construir um projeto político-social de “alma social” para além do capital e do modo de vida capitalista, estruturando um programa de curto, médio e longo prazo onde “as identidades sejam consideradas como um dado analítico e como um elemento concreto de organização estratégica e/ou tática da política” (ALMEIDA, Prefácio, p. 13. In: HAIDER, 2019), viabilizando a transformação radical da realidade, colocando juntos, do mesmo lado, coletiva e colaborativamente, todos os seres humanos que são expropriados, explorados, dominados, oprimidos, racializados, estigmatizados, vilipendiados, etc.

É dessa ausência de projeto político-social radical de transcendência do capital e do capitalismo por parte das massas, do coletivo, do poder social, desse programa e agenda político-social de curto, médio, e longo prazo que estamos carentes. “Nosso mundo está com extrema necessidade de uma nova universalidade insurgente (estratégica). (…) Se deixarmos de lado o refúgio da identidade, essa discussão poderá começar” (HAIDER, 2019, p. 150).

Essa universalidade insurgente e estratégica, requisitada por Asad Haider,

É criada e recriada pelo ato de insurgência, o qual não reivindica a emancipação unicamente para aqueles que compartilham minha identidade, mas para todos; a universalidade diz que ninguém será escravizado. Ela igualmente recusa congelar os oprimidos num status de vítimas que necessitam de proteção de cima; insiste que a emancipação é autoemancipação. (…) é uma universalidade que necessariamente enfrenta o capitalismo e se opõe a ele. O anticapitalismo é um passo necessário e indispensável nesse caminho (HAIDER, 2019, p. 148).

Nesse sentido, “cada passo para longe da primazia da insurgência e do potencial revolucionário da organização anticapitalista (leva) de volta ao particularismo da ordem existente” (HAIDER, 2019, p. 148 e 149). Na sociedade aparentemente democrática do Estado de Direito (burguês), “a afirmação de direitos e a reivindicação de benefícios só podem ser feitas com base numa identidade singular lesada” (BUTLER, 199, p. 100. In: HAIDER, 2019, p. 35). Daí a luta “por direitos”, por “mais direitos” ou “nenhum direito a menos” não ser anticapitalista, mas preservar a estrutura social do sistema capital e do próprio capitalismo, garantindo, portanto, sua reprodução.

As identidades mediatizadas pelo Estado Democrático de Direito (liberal-burguês) torna os sujeitos totalizados pela particularidade que constitui seu status de demandante, de maneira que “nos tornamos sujeitos que participam na política através da sujeição ao poder” (HAIDER, 2019, p. 35).

Se podemos reclamar que somos de algum modo lesados com base em nossa identidade, como se apresentássemos uma queixa num tribunal, podemos demandar reconhecimento do Estado com base nisso. E, uma vez que são a condição da política liberal, as identidades se tornam cada vez mais totalizantes e reducionistas. Nossa capacidade de ação política através da identidade é exatamente o que nos prende ao Estado, o que assegura nossa contínua sujeição. (…) (Por outro lado), identidade é um fenômeno real: ela corresponde ao modo como o Estado nos divide em indivíduos, e ao modo como formamos nossa individualidade em resposta a uma ampla gama de relações sociais. Ela é, no entanto, (e aqui está o cerne da questão), uma abstração. Uma abstração que não nos diz nada sobre as relações sociais específicas que a constituíram. (Eis a razão do por que) devemos rejeitar a “identidade” como base para pensar a política identitária (HAIDER, 2019, p. 35 e 36. Os parênteses são meus).

As relações sociais específicas que tornam, constituindo, as pessoas “brancas” e “pretas”, ricas e pobres, exploradas e exploradoras, opressoras e oprimidas, dominadas e dominantes, etc. são obnubiladas.

Ora, um negro é um negro por causa do racismo, e não porque sua negritude não é valorizada ou reconhecida; da mesma forma, um branco também é um branco por causa do racismo, e não devido à sua “brancura”. E não há racismo sem estruturas políticas e econômicas que sustentem um processo contínuo de transformação de indivíduos em “negros” e “brancos”. (…) De tal sorte que tratar o racismo como resultado de uma vaga e abstrata ideia de “supremacia branca” sem explicar os termos com que isso é viabilizado política e economicamente apenas comprova o quanto de confusão a versão contemporânea das políticas de identidade pode causar (ALMEIDA, Prefácio, p. 12 e 13. In: HAIDER, 2019).

Eis a armadilha antirrevolucionária da identidade, armada quando a política se reduz à afirmação de identidades específicas. Haider (2019) nos conta que a esmagadora maioria dos movimentos sociais da década de 1950 e 1960 que chamaram a atenção à questão da identidade tinham uma política identitarista completamente oposta e distinta do que vemos atualmente. Exemplifica com o Coletivo Combahee River (CCR), de 1977, “um grupo de militantes negras e lésbicas formado em Boston”, um dos primeiros a utilizar a expressão política identitária, porém, em contraste com os tempos hodiernos, com caráter essencialmente anticapitalista, extrapolando, ainda que inconscientemente, as amarras do Estado Democrático de Direito (que é liberal, burguês e, portanto, jamais poderá estar ao lado da perspectiva do trabalho e da classe trabalhadora – MASCARO, 2013; MASCARO, 2018).

Para o CCR, a política não deveria “ser reduzida às identidades específicas dos indivíduos envolvidos nela”. Conforme a interpretação presente de uma de suas integrantes, Barbara Smith:

O que estávamos dizendo é que temos direito como pessoas que não são apenas mulheres, que não são unicamente negras, que não são apenas lésbicas, que não são apenas da classe trabalhadora, ou trabalhadoras – que somos pessoas que incorporam todas essas identidades e que temos direito de construir e definir a teoria e prática políticas baseadas nessa realidade… Isso é o que quisemos dizer com política identitária. Não estávamos dizendo que não ligávamos para ninguém que não fosse exatamente como nós (HAIDER, 2019, p. 32 e 33).

É interessante que a assertiva de Smith afirma o direito liberal mas também possibilita as condições para sua superação ao lutar pela construção e definição de uma teoria e prática políticas feitas a partir da realidade dos expropriados, explorados, oprimidos, dominados, vilipendiados. Afirma-se, aqui, a auto-organização, a autodeterminação, a autoemancipação, afinal, a libertação deverá ser realizada por todos(as) aqueles(as) que se encontram, de alguma maneira, agrilhoados(as). Eles(as) mesmos(as) devem ser os(as) responsáveis por sua emancipação e não esperar que um(a) outro(a) os(as) represente e faça por eles(as) o que apenas eles(as) são capazes de levar adiante, sem freios, sem desvios e tergiversações, ao fim e ao cabo.

“O que torna um movimento anticapitalista (…) é saber se ele é capaz de atrair um amplo espectro de massas e de possibilitar sua auto-organização, buscando construir uma sociedade na qual as pessoas se governam e controlam suas próprias vidas” (HAIDER, 2019, p. 41). Enfim, não basta ser antirracista, é imprescindível que também sejamos anticapitalistas. Um exemplo ilustrativo é o Partido dos Panteras Negras:

(…) reconheciam que os negros foram oprimidos numa base especificamente racial e que, portanto, tinham que se organizar de forma autônoma. Mas, ao mesmo tempo, falar de racismo sem falar de capitalismo é esconder o que é necessário para que o povo tenha de fato o poder nas mãos. Apenas cria uma situação em que o policial branco é substituído pelo policial negro. Para os Panteras isso não era uma libertação (HAIDER, 2019, p. 44).

Caso fiquemos presos apenas às identidades, desconectando-as das estruturas sociais, das relações sociais e de produção específicas que as produzem e condicionam historicamente, terminamos servindo “aos propósitos de reprodução do capitalismo, que historicamente tem se mostrado capaz de metabolizar o racismo e transformá-lo em aspirações de consumo e de poder (capitalismo negro)” (ALMEIDA, Prefácio, p. 14. In: HAIDER, 2019. O parênteses é meu).

Também precisamos ficar atentos as artimanhas jurídicas do Estado aparentemente democrático do Direito (liberal, burguês).

Na maior parte dos casos, ainda que possa gerar conflitos e trazer mudanças significativas na vida das pessoas, “mais direitos” não constitui um problema sério para o capitalismo: conceder direitos evidencia a plasticidade de um sistema que precisa ser reformável para continuar se reproduzindo. Quando o único objetivo das esquerdas é o reforço da subjetividade – especialmente de sua forma mais bem-acabada, a subjetividade jurídica – as formas sociais do capitalismo (mercadoria, dinheiro, Estado) que estão conectadas com a forma jurídica serão preservadas (ALMEIDA, Prefácio, p. 14 e 15. In: HAIDER, 2019).

Na sua forma ideológica contemporânea, diferentemente da sua forma inicial como teorização da prática política revolucionária, a política identitária é um método individualista. Ela é baseada na demanda individual por reconhecimento e toma essa identidade individual como ponto de partida. Ela assume essa identidade como dada e esconde o fato de que todas as identidades são construídas socialmente. E porque todos nós temos necessariamente uma identidade que é diferente da de todos os outros, ela enfraquece a possibilidade de auto-organização coletiva. O paradigma da identidade reduz a política a quem você é como indivíduo e a ganhar reconhecimento como indivíduo, em vez de ser baseada no seu pertencimento a uma coletividade e na luta coletiva contra uma estrutura social opressora. Como resultado, a política identitária paradoxalmente acaba reforçando as próprias normas que se propõe a criticar (HEIDER, 2019, p. 49 e 50).

Em suma, pelos aspectos aqui elencados e ponderados, é possível inferir que a crítica aos identitarismos, às políticas identitárias na contemporaneidade é uma necessidade e tarefa para tentar acabar com a “guerra entre nós”, com as confusões e distorções reinantes entre possíveis aliados(as) que acabam se tratando, no geral, como se fossem inimigos(as), acreditando que o são. Ademais, somente a crítica pode contribuir para que entendamos, de uma vez por todas, que as identidades não são anuladas pela luta anticapitalista/anticapital, ao contrário, elas são (re)conhecidas e incorporadas para a construção coletiva do projeto político-social de transformação radical do modo de vida existente, dado que apenas assim a unidade na diversidade poderá, de fato, se concretizar efetivamente na realidade da luta do trabalho contra o capital.

Identidade “para si” ou consciência de classe “para si”: a “universalidade insurgente e estratégica”

A identidade “para si” é ir além de si mesmo, é uma identidade onde os indivíduos se reconhecem como parte/membro da espécie humana, um todo maior, retotalizando os fragmentos do real, refazendo, através das mediações, as relações entre particularidade e universalidade, indivíduo e sociedade, indivíduo e gênero humano.

A consciência de classe “para si” transcende os interesses e necessidades corporativos/reivindicativos, de grupo, de “coletivos”. É um produto de uma dupla negação: “num primeiro momento, o proletariado nega o capitalismo assumindo sua posição de classe, para depois negar-se a si próprio enquanto classe, assumindo a luta de toda a sociedade por sua emancipação contra o capital” (IASI, 2011, p. 32).

Esse momento do processo de tornar-se consciente, que é a consciência revolucionária, é um dos mais difíceis, porque para alça-lo é imprescritível romper e superar a produção das subjetividades jurídicas, a sujeição dos indivíduos à particularidade inerente ao direito, que fragmenta, individualiza e inviabiliza a construção da luta e organização social de massas. A fragmentação e individuação via políticas identitárias e suas demandas pela representatividade no Estado de Direito (liberal, burguês) torna improvável e mesmo quase impossível a constituição da noção de continuidade no outro. Não ter ciência deste fato é um dos mais graves e cruciais problemas para a formação da consciência “para si”, já que ela pressupõe, justamente, transcender a temporalidade do indivíduo, o presente presenteísta, o aqui e agora.

A consciência “para si” exige um novo indivíduo capaz de compreender seu esforço como parte de um esforço coletivo, de uma totalidade maior. “O que se exige é um esforço do indivíduo capaz de conceber, ao mesmo tempo, a fraqueza da pessoa, seu caráter transitório e a percepção no outro, a continuação da obra coletiva que é a história” (IASI, 2011, p. 41). Trata-se de um reconhecimento de que estamos todos(as) interligados, que, na verdade, “somos um” e que “eu não sou eu, nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio” (Adriana Calcanhoto – O Outro) a partir deles.

Dissemos que o ponto de partida é a identidade, a sua autoconstrução enquanto autodefinição, como defendem Patrícia Collins e Audre Lorde, ou autocriação, como demonstra Alberto Guerreiro Ramos. É o momento de ganhar confiança para agir e se posicionar, para falar e contestar, para reivindicar e se organizar, mobilizar, estimulando uma prática insurgente de desalienação, a qual exige um “trabalho criativo envolvido em sua própria desalienação e, desse modo, em sua própria libertação”, pois “só esse grande esforço poderá dar início a uma humanidade autêntica para além das variedades amputadas e codificadas pela cor da nossa pele que nos são impostas pela ordem colonial (GILROY, “Introdução à edição inglesa de 2017”, p. 304 e 296. In: FANON, 2020).

Um tempo precisa ser transcorrido12 até que essa consciência “em si” se materialize na constituição de uma nova postura, atitude, conduta perante as situações concretas vividas nas experiências diárias de uma sociedade racializada e estruturalmente (política, econômica, cultural) racista, produzindo um novo indivíduo pela elevação cultural e moral13, como demonstrado por Guerreiro Ramos e a experiência do Teatro Experimental do Negro (TEN).

Destarte, esse indivíduo novo, desalienado, liberto pela tomada de consciência de si e do mundo, necessariamente se sente e atua como um insurgente, porque adquire consciência que as diferenças, como quer Lorde (2020i, p. 136 e 137), tão somente poderão se realizar na plenitude historicamente possível caso a todas as pessoas seja garantido acessar e usufruir, enquanto pressuposto, as condições materiais e espirituais de existência socialmente produzidas e acumuladas, base imprescindível ao seu desenvolvimento humanizador e omnilateral. Só assim as diferenças serão, de fato, “reconhecidas em pé de igualdade”, potencializando a busca por novas formas de ser no mundo, como também o poder de gerar esse novo mundo por intermédio da “interdependência de diferenças mútuas (não dominantes)” (LORDE, 2020i, p. 136 e 137), reunidas em um projeto político-social coletivo, de transformação radical do existente.

Este seria um caminho possível para traduzir o que vem a ser a “unidade na diversidade”, algo tão difícil de se conjugar em palavras e materializar em ações que produzam camaradagem entre aqueles que deveriam estar, mas acabam não estando, do mesmo lado, isto porque

(…) não temos critérios para tratar as diferenças humanas em pé de igualdade. Como consequência, elas têm sido confundidas ou utilizadas de maneira equivocada, a serviço da separação e da confusão. Certamente, existem diferenças muito reais entre nós, com relação a raça, idade e sexo. No entanto, não são essas diferenças que estão nos separando. É, antes, nossa recusa em reconhece-las e analisar as distorções que resultam de as confundirmos e os efeitos dessas distorções sobre comportamentos e expectativas humanas (LORDE, 2020j, p. 142).

Entrementes, primeiro é preciso superar aquilo que impede a todos(as) nós de acessar e usufruir da riqueza socialmente produzida, porque este é o pressuposto, a condição para que cada qual possa descobrir e desenvolver seus potenciais, habilidades, capacidades segundo sua vontade e necessidade, fazendo proliferar as diferenças não-dominantes que realmente poderão fazer prosperar a humanização dos seres humanos. Por enquanto, se a lógica da produção/reprodução capitalista for mantida o que se perpetuará será a produção/reprodução das desigualdades sociais que inviabilizam e abortam a existência de diferenças não-dominantes.

Uma outra condição essencial é nos tornar conscientes da interdependência entre todos os seres humanos, de que somos parte e membros do gênero humano e que, mesmo não tendo ciência, esse gênero faz parte de nós, somos o que e como somos hoje devido o legado histórico-social da humanidade. Não se trata de um universal abstrato e vazio, do universalismo liberal, onde “o corpo epidermizado se torna o objeto primeiro da hierarquia racial” (GIROY, “Introdução à edição inglesa de 2017”, p. 305. In: FANON, 2020) e do domínio colonial/imperialista.

A consciência dessa interdependência entre os indivíduos auxilia a romper com a rotina mecânica e naturalizada do cotidiano, com a aparente independência entre os indivíduos e a ilusão de suas vidas fragmentadas. Na verdade, alcançasse a compreensão de que “não posso não me solidarizar com a sorte reservada a meu irmão. Cada um dos meus atos implica o homem. Cada uma das minhas reticências, cada uma das minhas covardias manifesta o homem” (FANON, 2020, p. 103). Por isso, impõe-se à realidade humana a obrigação

de sentir-se responsável por seu semelhante. Responsável no sentido de que o menor dos meus atos implica a humanidade. Cada ato é resposta ou pergunta. Ambos talvez. Ao expressar determinada maneira de o meu ser se superar, afirmo o valor do meu ato para outrem. Inversamente, a passividade observada nos momentos perturbadores da História é interpretada como fracasso diante dessa obrigação (FANON, 2020, nota 9, p. 104).

Essa consciência “para si” produz uma transformação substancial, qualitativa, na relação com o aqui e agora (presenteísmo). As demandas da vida cotidiana são avaliadas em uma nova escala valorativa. O viver a vida é impulsionado “pela manutenção e desenvolvimento da relação do indivíduo com a história”, desenvolvendo uma capacidade de sentir o mundo em sua totalidade, perfazendo as múltiplas determinações que religam todos os fatos, fenômenos e acontecimentos aparentemente fragmentados da realidade. “A reflexão e consciência do que se faz (e por que se faz) passa(m) a ser (…) ‘uma segunda natureza’: a vida não vai ser ‘levada pela vida’, mas será conduzida pelo indivíduo no limite em que isso por possível” (LESSA, 2014, p. 36).

Todavia, a universalidade humana concreta necessita, antes de tudo, reconhecer o racismo estrutural do modo de produção capitalista14 para poder superá-lo. Logo, deve-se enfrentar e transcender a construção socio-histórica que torna as pessoas “pretas”, “brancas”, “amarelas”, “vermelhas”, “marrons”, etc.. A hierarquia racial só existe por conta “de um sistema mundial de classificação eurocentrado, racista, que em cada região adquiriu particularidades, por vezes contraditórias, por vezes ambivalentes” (MURYATAN, Apresentação, p. 26 e 27. GUERREIRO RAMOS, 2023).

É dentro desse contexto que entendemos a sentença que Fanon utiliza para concluir sua obra: “Ó meu corpo, faz sempre de mim um homem que questiona!” (FANON, 2020, p. 242). Antes de ascender à consciência revolucionária ou “para si”, à universalidade insurgente e estratégica, entendendo-se, vendo-se e se sentindo como parte/membro do gênero humano (unidade na diversidade), é preciso conquistar a consciência “em si”, construir sua autodefinição (identidade), autovalorização (autoestima) e se autocriar como pessoa humana, só assim é possível ir além da “negritude” e do “negro”, numa superação por incorporação.

Como frisa Gilroy (p. 300. In: FANON, 2020):

Essa aspiração a um universalismo apenas poderia ser alcançada depois de um desvio do trauma da subordinação racial e de um acerto de contas com os efeitos do racismo em todos os níveis. (…) O médico em Fanon sabia que as feridas psíquicas que daí resultavam haviam sido infligidas tanto em negros quanto em brancos. (…) Daí a batalha contra o racismo e a destruição da ordem racial exigirem o reconhecimento de que, em um sistema maniqueísta, a humanidade dos dois lados está corrompida e comprometida por ter sido articulada em formas racializadas.

Este é o passo necessário e insuprimível para superar o universalismo liberal, abstrato do humanismo ocidental, “sem, contudo, abrir mão da busca pela apreensão e pela autorrepresentação de si naquilo que há de universal no gênero humano, considerando assim sua história, seus encontros, desencontros e contradições” (FAUSTINO, Posfácio, p. 261. In: FANON, 2020). Isto não significa fazer da consciência “em si” e da identidade momentos fixos, mas entende-los como passagem incontornável. Num projeto político-social verdadeiramente de alma social, coletivo, de massas, todas as vozes, todas as identidades devem ser ouvidas e imprimir suas necessidades, tendo em comum a supressão, definitiva, do cerne nevrálgico que gera todas as formas de opressões, dominações, expropriações, explorações: o sistema capital e o modo de vida capitalista.

É também Frantz Fanon (2020) que evidencia, na conclusão de sua obra, a necessidade da práxis política insurgente e subversiva/revolucionária como condição de suplantar, de uma vez por todas, os racismos e racialismos, efetuando as transformações sociais concretas na ordem social, mas “sem perder de vista a demanda afetiva do desejo que as compõe”. E, acima de tudo, com a clareza de que “essa exigência afetiva e subjetiva (…) ocorre sem que se desconsiderem as mediações histórico-concretas postas pela objetividade social sob a qual emergem” (FAUSTINO, Posfácio, p. 262. In: FANON, 2020).

Para além do cultural, prisão do universalismo liberal,

mais do que um regozijo no reconhecimento reconfortante das grandes conquistas negras que precederam o trauma modernizador da África, a destruição dessa ordem racial talvez exija de nós o desenvolvimento de uma perspectiva transformadora e orientada para o futuro que é expressamente proibida pelas engrenagens de aço do racismo governamental e psíquico (GILROY, Introdução à edição inglesa de 2017, p. 296. In: FANON, 2020).

De toda forma, não podemos eliminar do horizonte da consciência “para si”/ revolucionária que as lutas pontuais, particulares e/ou específicas empreendidas no enfrentamento das opressões/dominações/expropriações/explorações cotidianas germinam de um modo de vida que faz de tudo para nos dividir, individualizar (individuação), sequestrando nossas bandeiras, nossas reivindicações, nossas pautas ao torna-las políticas “públicas” de Estado, ao propagandeá-las nas mídias transformando-as em moda e consumo, incluindo-as, assim, na reprodução sistêmica do capital, neutralizando o que poderia ser uma ameaça ao sistema. Devemos manter sempre, no horizonte, no desenvolvimento em curto, médio e longo prazo de nossos programas e práxis política revolucionária, o pensar para além de um mundo racializado, dado que nossas lutas são para transformá-lo e construir um mundo verdadeiramente humano, onde as pessoas se enxerguem e percebam, primeiramente, como pessoas humanas, eliminando toda e quaisquer formas de marcadores sociais.

Descubro-me um dia no mundo e reconheço a mim mesmo um único direito: o de exigir do outro um comportamento humano. (…) Não existe um mundo branco, não existe uma ética branca, nem tampouco uma inteligência branca. O que existe, de ambos os lados do mundo, são homens que buscam. (…) No mundo para onde estou indo, eu me crio incessantemente. (…) Não sou escravo da escravidão que desumanizou meus pais. (…) A desgraça da pessoa de cor é ter sido escravizada. A desgraça e a desumanidade do branco consistem em ter matado o ser humano onde quer que fosse. Consiste em, ainda hoje, organizar racionalmente essa desumanização. Mas eu, homem de cor, na medida em que me seja possível existir plenamente, não tenho o direito de me confinar em um mundo de reparações retroativas. Eu, homem de cor, quero apenas uma coisa: que o instrumento jamais domine o homem. Que cesse para sempre a escravização do homem pelo homem. Ou seja, de mim por outro. Que me seja permitido descobrir e desejar o homem, onde quer que se encontre. O negro não existe. Não mais que o branco. Ambos têm que se distanciar das vozes desumanas dos seus respectivos ancestrais, para que possa surgir uma autêntica comunicação. Antes de enveredar por uma voz positiva, cabe à liberdade um esforço prévio de desalienação. Um homem, no princípio da sua existência, está sempre congestionado, afogado na contingência. (…) É por meio de um esforço de resgate de si mesmo e de depuração, é por meio de uma tensão permanente da sua liberdade que os seres humanos podem criar as condições ideais para a existência de um mundo humano. Superioridade? Inferioridade? Por que não tentar simplesmente tocar o outro, sentir o outro, revelar-me o outro? (FANON, 2020, p. 240, 241 e 242).

Que encerramento maravilhoso o de Frantz Fanon! O seu “homem” reporta à humanidade, ao gênero humano presente em todos nós, nada tem a ver com machismo ou sexismo como algumas feministas acreditam atualmente. Ele escreveu a obra na década de 1950, em períodos revolucionários, onde o conceito tinha outro significado. Não podemos interpretar os conceitos de acordo com o nosso tempo, isto corresponde a desvirtuar os autores e suas ideias, pensamentos e análises. Fanon deseja “libertar o homem”, portanto, os seres humanos de sua cegueira, desaliená-los para que voltem a ser e se enxergar pelo que de fato são: continuidade uns dos outros. Questiono-me até que ponto as juventudes militantes de hoje compreendem isso. No caso das problemáticas aqui tratadas, “as universidades fomentaram um discurso despolitizado sobre esses problemas”, algo identificado por Barbara Smith, do Combahee: “Infelizmente, pela política identitária ser frequentemente introduzida aos jovens por acadêmicos que têm uma compreensão parcial da profundidade dela, eles também reproduzem uma confusão (HAIDER, 2019, p. 59).

Como diz Audre Lorde, são essas confusões, essas distorções que criam o mote para lacrações, cancelamentos e difamações. Daí ser essencial e diferencial o estudo, a discussão e análise pautadas em argumentos científicos e não em opiniões ou reproduções do que se ouviu de alguém com “reconhecida” autoridade no assunto. Nós mesmos(as) precisamos nos apropriar das ideias, pensamentos dos(as) autores(as) por uma leitura imanente de seus escritos.

Retomando e finalizando a temática da consciência “para si” e/ou revolucionária, ascender a ela é um caminho tortuoso, repleto de provações para nos fazer desviar e ficar fixados às identidades (consciência “em si”). Lélia Gonzalez, sem eu ensaio intitulado “A categoria político-cultural da amefricanidade”, ao tecer algumas considerações sobre as diásporas africanas – dentre elas a da escravidão do sistema colonial referente a fase da acumulação capitalista do capital –, resultando no espalhamento dos povos africanos pelos demais continentes, mais precisamente para as Américas (do norte, central, insular e do sul), diz que estes não eram mais reconhecidos pelos seus irmãos africanos como verdadeiros africanos, já que passaram a ser “afro/afro-americanos”, “afro/afro-colombianos”, “afro/afro-brasileiros”, “afro/afro-peruanos” e assim sucessivamente.

O esquecimento ativo de uma história pontuada pelo sofrimento, pela humilhação, pela exploração, pelo etnocídio aponta para uma perda de identidade própria, logo reafirmada alhures (o que é compreensível em face das pressões raciais no próprio país). Só que não se pode deixar de levar em conta a heroica resistência e a criatividade na luta contra a escravização, o extermínio, a exploração, a opressão e a humilhação. Justamente porque, enquanto descendentes de africanos, a herança africana sempre foi a grande fonte revificadora de nossas forças. Por tudo isso, enquanto amefricanos, temos nossas contribuições específicas para o mundo pan-africano. Assumindo nossa amefricanidade, podemos ultrapassar uma visão idealizada, imaginária (quando ocorre a autodesignação de afro/africano-americano, o real dá lugar ao imaginário e a confusão se estabelece) ou mitificada da África e, ao mesmo tempo, voltar o nosso olhar para a realidade em que vivem todos os amefricanos do continente. (…) nós, amefricanos, mais do que nunca, constatamos as grandes similaridades que nos unem (GONZALEZ, 2020, p. 136 e 137).

A construção de um pan-africanismo entre as próprias pessoas “pretas”, passagem para a consciência “para si”, é um dos primeiros desafios enfrentados, como demonstra Gonzalez. Os africanos que ficaram na África não mais reconhecem seus irmãos desterrados como parte e membros da terra que lhes deu origem. Se essa dificuldade se coloca entre as próprias pessoas “pretas”, quem dirá entre pessoas “pretas” e “brancas”, ambas alienadas e marcadas pela racialização da hierarquia racial e da ideologia racial.

A confusão e distorções chegam a tal ponto que acabam gerando aquilo que Paul Gilroy denominou de ambivalência da reação dos oprimidos em relação a sua identidade, já que “questionar a própria ideologia racial pode parecer uma negação da capacidade de agir dos oprimidos” (HAIDER, 2019, p. 93).

Pessoas que foram subordinadas pelo pensamento racial e suas estruturas distintivas (nem todas por códigos de cor) empregaram por séculos os conceitos e categorias dos dominantes, dos proprietários e dos perseguidores para resistir ao destino que a “raça” colocou a elas, assim como para se opor ao baixo valor que davam a suas vidas. Sob as condições mais difíceis e a partir dos materiais precários que certamente não teriam selecionado se pudessem ter escolhido, esses grupos oprimidos construíram tradições complexas na política, ética, identidade e cultura (GILROY apud HAIDER, 2019, p. 93). (…) Afirmar e defender essas tradições reforça a ideologia racial, mas também fornece uma forma de defesa e proteção. As experiências de “insulto, brutalidade e desprezo” são “inesperadamente transformadas em importantes fontes de solidariedade, alegria e força coletiva”. Essa conversão (…) é um poderoso fator da persistência da ideologia racial: “Quando ideias de particularidade racial são convertidas desse jeito defensivo, de modo que forneçam uma fonte de orgulho em vez de vergonha e humilhação, torna-se difícil renunciar a elas. Para muitos povos racializados, a ‘raça’ e as identidades de oposição duramente conquistadas que ela sustenta não são algo para se abandonar facilmente ou rapidamente” (HAIDER, 2019, p. 93 e 94).

Vemos o quanto as políticas identitárias, as lutas particularistas, pelas contradições que carregam, podem ser perniciosas e uma armadilha, frustrando a passagem da consciência “em si” à consciência “para si”/revolucionária caso não sejam ultrapassadas. A própria diáspora perde a “alteridade fundante” que contém em si mesma, como aponta Gilroy (apud HAIDER, 2019, p. 146), uma vez que a “diáspora quebra com a ‘ideia de nacionalidade cultural’ e com ‘as concepções superintegradas de cultura que apresentam diferenças étnicas, imutáveis, como um fosso intransponível nas histórias e experiências de ‘negros’ e ‘brancos’”.

Entrelaçando alguns dos fios, mas sem amarrar

Toda vez que se trava uma discussão ou debate envolvendo “raça” e classe, invariavelmente aqueles(as) que são identitários(as) acusam seus críticos de serem mecanicistas, economicistas por defenderem a categoria da classe como fundamento fundante15, aquilo que nos uni, apesar das diferenças. Gilroy “(argumenta) que a tarefa de uma análise materialista (é) mostrar como ‘significações raciais, solidariedade e identidades constitu(em) a base para a ação’”:

Diferentes padrões de atividade “racial” e de luta política se apresentarão em determinadas condições históricas. Eles não são concebidos como uma alternativa direta à luta de classes no nível da análise econômica, mas devem ser reconhecidos como sendo potencialmente uma alternativa à consciência de classe no nível político, assim como um fator nos processos contingentes nos quais as próprias classes são formadas (GILROY apud HAIDER, 2019, p. 130 e 131).

A classe é formada por “uma multidão de pessoas irredutíveis a qualquer descrição única”.

Entre elas não existe um interesse comum significativo e automático. Não podemos reduzir nenhum grupo de pessoas e as multidões que os grupos contêm a um único interesse comum, como se estivéssemos reduzindo uma fração. Um interesse comum é constituído pela composição dessas multidões em um grupo. Trata-se de um processo de prática política. A supremacia branca é o fenômeno pelo qual a pluralidade de interesses de um grupo de pessoas é reorganizada na ficção de uma raça branca cuja própria existência é baseada na história violenta e genocida da opressão de pessoas de cor. As lutas auto-organizadas dos oprimidos contra a supremacia branca conseguiram enfraquecer significativamente, embora sem eliminar, esse tipo de organização. Não foi por acaso que essas lutas levaram à percepção de que era necessário constituir um interesse comum por meio da organização de classe, que se amplia a uma oposição ao sistema capitalista como um todo. Afinal, é a estrutura do sistema capitalista que impede que todas as pessoas que não têm posse dos meios de produção, independentemente de suas identidades, tenham controle sobre suas próprias vidas e satisfaçam os desejos que possam ter, em todas as suas particularidades. Contudo, isso não significa que um argumento “reducionista de classe” seja uma posição viável. Enquanto a solidariedade racial entre brancos for mais forte do que a solidariedade inter-racial, tanto o capitalismo quanto a branquidade continuarão a existir. (…) os argumentos positivistas de que a classe importa mais do que a raça reforça um dos principais obstáculos para a construção do socialismo (HAIDER, 2019, p. 81).

A citação acima é extremamente necessária para lançar luz sobre uma questão que causa tantas discórdias, discursos inflamados e polêmicas. A classe se forma enquanto classe no decorrer das lutas, na radicalização delas e mediante sua aproximação cada vez maior da raiz de todos os males e mazelas sociais, que é o sociometabolismo sistêmico do capital, cuja produção destrutiva coloca em risco a reprodução e existência de todas as formas de vida do planeta Terra de forma tão evidente como nunca antes foi possível constatar em outro momento histórico-social. Nesse sentido, a reflexão desenvolvida por Mauro Iasi é fulcral:

Do nosso lado, do lado de cá (…), há uma força que só se torna universal quando se contrapõe a algo que lhe trava, que é um entrave universal. O entrave universal está dado (o capital). A perspectiva crítica ao marxismo vai colocar como resposta a isso ou a ausência total do sujeito, que é a resposta pós-moderna, não tem sujeito porque não tem história, não tem intencionalidade, (…) ou ainda, por uma boa ou má intenção, a substituição do sujeito por outros sujeitos. (…) O que fica obscurecido, ao meu ver, pela ideologia é: você está se confrontando com quem? Senão, a burguesia entra (…) como mais uma particularidade e seus interesses e o Estado como o salvador que produz um diálogo e um caminho para que nenhuma das particularidades se imponha. Se o Estado é um estado de classe, ele vai transformar esta particularidade, que é da burguesia, em pseudo-universalidade. É preciso construir a efetiva universalidade, e isto só se dá na luta, onde esses segmentos (…) não aceitam a premissa de que a diversidade implica na negação da ideia de um sujeito de classe, e nem que a classe (deve ser vista) como mais uma das particularidades. É compreender o sujeito da classe no processo da sua construção como sujeito histórico, abrangendo essa diversidade. (…) A classe não pode chegar ao universal negando as particularidades, de fato terá que envolver a questão de gênero, a racial, a ecológica, a da diversidade sexual e etc. Mas esse é um ser de classe em construção (…), (já que) a história mais recente mostra que num certo momento de expressão dessa luta, da luta de massas, inclusive em grau de rebelião as vezes, como aconteceu na América Latina, como acontece frequentemente na Europa, não culmina numa transformação social que nega a base que gera os nossos problemas, que é o capitalismo. Então, está em construção (“A humanidade contra o capital”. TV BoitempoCafé Bolchevique, Mauro Iasi, junho, 2024).

A classe é um “ser em construção”, como diz Iasi, constituído mediante a prática político-social da organização e mobilização das massas, das multidões em um sujeito coletivo/plural, tornado classe. Essa é a autocrítica realizada pelo marxismo materialista, histórico-dialético atualizando o pensamento de Marx. Não se trata de “reducionismo de classe”, mas da apreensão adequada de como os sujeitos, as massas, as multidões se constroem enquanto classe no âmago das contradições da situação histórico-concreta presente, considerando as mutações do mundo do trabalho e das condições materiais de existência dos(as) trabalhadores(as) subsumidos ao capital.

Precisamos requalificar os nossos debates, as nossas reflexões, as nossas proposições e nosso modo de fazer a luta político-social a fim de conseguirmos construir, colaborativamente, um projeto político-social de classe da perspectiva do trabalho e da humanização omnilateral de todos os seres humanos. Amiri Baraka, poeta e militante negro, conhecido antes da militância como LeRoi Jones (HEIDER, 2019, p. 98) faz uma autocrítica demonstrando os limites da consciência “em si”, das políticas identitárias e da necessidade da construção da perspectiva de classe.

Naquele tempo eu era um nacionalista negro, um nacionalista cultural, que não compreendia a realidade da luta de classes. Eu achava, e dizia a milhares de pessoas, que a luta dos negros era contra os brancos, ponto”. (…) “É um nacionalismo estreito esse que afirma que o homem branco é o inimigo”, Baraka disse ao New York Times, em 1974 (HEIDER, 2019, p. 108 e 109).

É preciso superar a tentação de imputar a toda pessoa “não-preta”, “não-negra” a culpa pelo racismo, pela ideologia racial e pela própria supremacia branca. É preciso “libertar o homem”, como conclama Fanon (2020); é preciso desalienar “negros” e “brancos” de seus traumas, complexos, neuroses e patologias, como também defende Guerreiro Ramos (2023) e outros(as) ativistas e pensadores(as) negros(as). William Edward Burghardt Du Bois, ativista negro, sociólogo e historiador socialista, defendeu que o capitalismo era a causa primária do racismo, não estando sozinho na empreitada. Somam-se a ele uma miríade de intelectuais e ativistas negros(as), como: Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, o próprio Alberto Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, José Carlos Mariátegui, Eldridge Cleaver, Donald Lee Cox, Field Marshall, Linda Harrison, Michael Mccanne, Fred Hampton, dentre outros.

Caso continuemos presos nessas armadilhas que só fazem atiçar a “guerra entre nós”, estaremos reproduzindo a ideologia racial e de “raça”, “uma forma de classificação arbitrária que somente tem algum significado porque tem consequências sociais” (HEIDER, 2019, p. 72). Na verdade, precisamos, urgentemente, reconhecer que, embora a “abstração de ‘raça’ já (seja) constituinte da nossa forma de entender o mundo”, apenas poderemos compreendê-la, efetivamente, na hipótese de traçarmos “todos os fatores concretos e específicos que a geraram – indo das nossas ideias ao mundo material e sua história” (HEIDER, 2019, p. 75).

Embora as décadas de 1950, 1960 e 1970 tenham comprovado, cientificamente, a inexistência de “raças” entre seres humanos (BOVE. “Racismo: como a ciência desmantelou a teoria…”. BBC, 12 de julho de 2020), questionando a continuidade e validade do uso do próprio conceito, o racismo permanece e o conceito continua sendo usado nas ciências sociais e humanas. Contudo, não podemos permitir, como fazem atualmente muitos dos intelectuais e ativistas, que nosso posicionamento e ação políticos se reduzam sobremaneira “ao policiamento da nossa linguagem, à questionável satisfação de provocar culpa nos brancos, enquanto as estruturas institucionais de opressão racial e econômica permanecem” (HAIDER, 2019, p. 45 e 46).

O “politicamente correto” pode tornar-se, como se tornou, um par de algemas, paralisando e engessando a própria possibilidade de reflexões e análises críticas necessárias para desarmar as armadilhas pós-modernas que varrem do horizonte a transformação radical e estrutural da realidade para a construção de um outro mundo possível e desejável.

Para começo de conversa, como “exposto pelos revolucionários negros ao longo da história americana (e também da Améfrica Ladina), (…) o projeto de emancipação requer a superação da ideologia racial” (HEIDER, 2019, p. 79) e, junto com ela, todas as terminologias e conceitos que a embasam e sustentam. Ao continuar discutindo e brigando entre nós para saber quem está com a razão, ao invés de nos mobilizar e organizar para construir a luta antirracista, anticapitalista, antiimperialista, anticolonialista, tudo se resumirá a “uma questão de policiar a linguagem daqueles que eram a princípio camaradas, (…) introduzindo um clima de paranoia e desconfiança” (HAIDER, 2019, p. 92) entre aqueles que embora do mesmo lado, agem como se não estivessem.

A partir de Guerreiro Ramos (2023), Fanon (2020), Audre Lorde (2020) e tantos(as) outros(as), busquemos definir e identificar, enxergar e perceber aquilo que de fato somos, e não o que impõe a ideologia da hierarquia racial, da racialização do racismo, alicerce do capitalismo que nutre sua reprodução estrutural, ou do universalismo liberal ocidental abstrato. Às particularidades e especificidades dos interesses e necessidades imediatas que hoje mobilizam as lutas sociais precisamos estabelecer as mediações mediatas, retotalizando os fragmentos do real, os fenômenos, os dados objetivos, permitindo que possamos construir o sujeito coletivo da classe do trabalho contra o capital. Para além das cores, do sexo, da sexualidade, do gênero, das nacionalidades, de todos os marcadores sociais; para além do aqui e agora, edificando, coletiva e colaborativamente (unidade na diversidade) um projeto político-social, de “alma social”, de futuro, contemplando todas as pessoas, valorizadas, pensadas e entendidas enquanto seres humanos, que devem ter como pressuposto as condições essenciais para explorar e desenvolver suas capacidades, habilidades e potencialidades e, assim, satisfazer seus desejos e realizar suas particularidades e especificidades. Não é só desejável, é possível, é concretamente realizável. “Tenho fome de mulheres negras que não me rejeitarão com raiva e desprezo antes mesmo de me conhecer ou de ouvir o que tenho a dizer. Tenho fome de mulheres negras que não se afastarão de mim ainda que discordem do que digo” (LORDE, 2020e, p. 206).

Nesses tempos conturbados e com certa dose de distopias fílmicas como forma de esperançar, uma das principais tarefas históricas de todos(as) nós que se dizem revolucionários(as), é sermos capazes de enunciar o futuro e planejá-lo de forma programática – além de cultivar a memória de nossas lutas para nunca nos trair e sermos tentados a dizer que não é mais possível sonhar com um outro mundo.

Todo agricultor sabe que cultivo é cuidado, método, exatidão. É preciso entregar às gerações que virão uma organização específica, uma tradição particular, um programa bem definido, uma visão de mundo que não se confunde com qualquer outra. (…) para que nossos descendentes não precisem recomeçar do zero, não tenham que reinventar a roda e reaprender tudo o que foi inventado e descoberto por seus antepassados. Tal é a obra com que todos nós, revolucionários sem revolução, somos convocados a contribuir. Somos revolucionários profissionais, um pouco estropiados pelas duras condições em que nos coube viver e militar (…) Somos o vínculo entre gerações, entre eras revolucionárias, um interregno, uma pausa que não pedimos nem nunca desejamos, mas que se impôs. (…) Viver fora de seu próprio tempo, em função das gerações futuras – não é isso a essência do que é ser (verbo, deve ser conjugado em todos os tempos) humano? (CANARY, “O drama dos revolucionários…”. Esquerda Online, 4 de abril de 2024. O parênteses é meu).

Espero que as sinceras análises e reflexões aqui desenvolvidas, oriundas de um sentimento de angústia e perplexidade incômoda com as circunstâncias e modos de interação atuais entre aqueles(as) que se dizem de “esquerda” ou “progressistas” possam contribuir, de alguma maneira, para repensarmos nossas relações, comportamentos e atitudes, tratando aqueles(as) que estão do mesmo lado que nós como aliados(as) e não inimigos(as), de modo que possamos ter “paz entre nós” para, conjunta e colaborativamente, como verdadeiros camaradas, construir e levar, ao fim e ao cabo, a “guerra aos senhores”.

* Isael de Souza é Professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Faculdade de Educação, Depto de Fundamentos da Educação. Mestre em Ciências Sociais pela UNESP/Marília. Doutora em Educação pela Unicamp/SP. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Trabalho, Saúde e Subjetividade (NETSS), da Faculdade de Educação da UNICAMP/SP e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Educação e Ensino-Aprendizagem de História (NUPEEAH), da Universidade Federal do Piauí, campus de Picos. E-mail: iaeldeo@gmail.com.

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RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra Cultura e Retórica do ódio – crônicas de um Brasil Pós-Politico. Posfácio de Cláudio Ribeiro. 1 ed. Goiânia: Editora e Livraria Caminhos, 2021.

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WADE, Peter. Raça: natureza e cultura na ciência e na sociedade. In: HITA, Maria Gabriela (Org.) Raça, racismo e genética: debates científicos e controvérsias sociais. Salvador: EDUFBA, 2017.

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Preto, pardo e negro: entenda quais são as diferenças”. Universidade Tiradentes – UNIT, 20 de outubro de 2022. Disponível em: https://portal.unit.br/blog/noticias/preto-pardo-e-negro-entenda-quais-sao-as-diferencas/.

Vocês não são brancos como nós”. Youtube. Cena de Bacurau, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q9u75ASrikc.

1 Necessário utilizar o plural porque existem variados posicionamentos e nuances da esquerda: moderada, social-democrática, progressista, centro-esquerda, radical, etc.

2 Tomada de consciência “de si” e “em si” proporcionando as condições para a construção da consciência “para si”, ou “autocriação” – enxergar-se e compreender-se como pessoa humana – e “autovalorização” – autoestima.

3 Porque “carrega um sentido humano que expressa os anseios, necessidades e impasses para os quais se busca uma resposta, ou ao menos uma tentativa de compreensão”, estando “estritamente relacionada às condições objetivas da existência […], aos modos como se dá a relação do homem com a realidade” (OLIVEIRA, 2003, p. 182, 183), derivando daí o reflexo estético desta mesma realidade.

4 Esta obra de Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas, foi traduzida no Brasil apenas em 1983. É herdeira de uma virada de interesses onde as perspectivas teóricas revolucionárias declinam, perdendo a hegemonia intelectual entre as esquerdas mundiais, principalmente após os acontecimentos de 1989 (queda do Muro de Berlim) e 1991 (queda do Leste Europeu). Embora escrita em 1951, é resgatada pelo surgimento do pensamento pós-colonial no âmbito dos estudos culturais britânicos, na década de 1980, que fez de Fanon “um de seus pais fundadores. (…) a retomada pós-colonial de Fanon, por meio de Pele Negra, será marcada pelo pós-estruturalismo, pela filosofia da diferença e pela virada linguística. Pode-se dizer que as preocupações com a práxis revolucionária darão lugar à busca pela tematização psíquica do desejo, da linguagem e das políticas de representação” (FAUSTINO, Posfácio, p. 258 e 259. In: FANON, 2020), indo na contramão da proposição do próprio autor e recusando elementos tão caros a ele como a noção de práxis (revolucionária) anti-colonial.

5 É uma escolha consciente a utilização do termo “particularizam” ao invés de “diferenciam”, porque as diferenças apenas poderão verdadeiramente existir se o pressuposto do fim das desigualdades sociais estiver dado como realidade, isto é, o fim da desigualdade no acesso e usufruto das condições materiais e espirituais da produção e reprodução social por todos os indivíduos sociais.

6 Para uma apreensão mais densa a respeito dos momentos do tornar-se consciente – já que é um processo, não sendo adquirida –, correspondentes a: a) consciência imediata ou ingênua, b) consciência corporativa-reivindicativa e/ou consciência “em si” e c) consciência “para si” e/ou revolucionária, ver Mauro Iasi e Iael de Souza, referenciados.

7 A escrita do seu nome é em letra minúscula porque foi a “maneira que ela encontrou de evidenciar a importância de seus escritos e legado, e não de sua figura, evitando assim um personalismo, valorizando a coletividade” (ebiografia.com/bell-hooks). O pseudônimo bell hooks é uma “homenagem à bisavó, conhecida dentro da família pela coragem de dizer a verdade. Quando bell hooks começa a escrever, ela adota o nome da bisavó como uma forma de reivindicar esse legado” (blogs.unicamp.br/mulheresnafilosofia/bell-hooks/). Nome de batismo: Glória Jean Watkins, 25/09/1952.

8 “(…) nunca negamos o fato de que há racismo na América, mas dissemos que o subproduto, o que decorre do capitalismo, resulta ser o racismo. Que o capitalismo vem primeiro e depois vem o racismo. Que quando eles trouxeram escravos para cá, o fizeram para ganhar dinheiro. Então, primeiro veio a ideia de que queriam fazer dinheiro, então os escravos vieram com esse objetivo. Isso significa que o capitalismo tinha que [vir antes]; em termos históricos, o racismo tinha que vir do capitalismo. Tinha que haver o capitalismo primeiro e o racismo foi um subproduto dele” (HAMPTON, p. 153. In: MANOEL; LANDI, 2020).

9 Entende-se que o “orgulho”, estimulado pelo Movimento Negro, foi utilizado para combater os estereótipos, os racismos, os preconceitos disseminados em relação à imagem e autoimagem das pessoas “pretas” pela sociabilidade capitalista eurocêntrica e suas colônias ocidentalizadas. As pessoas “pretas” não deveriam sentir vergonha, mas “orgulho”; não deveriam acreditar que eram feias, mas reconhecer sua beleza. A questão é que o “orgulho” também tem um outro lado, e este acaba contribuindo não para positivar, mas negativamente para azedar as relações entre a diversidade dos fenótipos humanos, fazendo de possíveis aliados(as) inimigos(as).

10 “A questão é saber se é possível para o negro superar seu sentimento de inferioridade, expulsar de sua vida o caráter compulsivo que tanto o aproxima do comportamento fóbico” (FANON, 2020, p. 65).

11 “Ser ‘o Outro’ é uma expressão reiteradamente encontrada na linguagem dos abandônicos. Ser ‘o Outro’ é sentir-se sempre em posição instável, é manter-se em alerta, pronto para ser repudiado e (…) fazendo inconscientemente tudo o que é preciso para que a catástrofe prevista ocorra. (…) O abandônico exige provas. (…) Não confia em ninguém. Antes de entrar em uma relação objetiva, exige do parceiro provas reiteradas. (…) O abandônico é um exigente. É que ele tem direito a todas as reparações. (…) (Queremos) permitir ao homem de cor compreender, com a ajuda de exemplos precisos, os elementos psicológicos que podem alienar seus semelhantes. (…) nosso intuito é viabilizar um encontro sadio entre o negro e o branco (FANON, 2020, p. 90, 91, 93 e 94).

12 “Mal abri os olhos que me haviam vendado e já querem me afogar no universal? E os outros? Aqueles que ‘não têm boca’, aqueles que ‘não tem voz’…” (FANON, 2020, p. 198).

13 “O sociodrama é precisamente um método de eliminação de preconceitos ou de estereotipias que objetiva libertar a consciência do indivíduo da pressão social. (…) preconceitos foram as causas dos conflitos e da incompreensão entre as pessoas. Tal análise exerce sobre a audiência uma visível influência liberatória ou catártica” (GUERREIRO RAMOS, “Teoria e prática no sociodrama”, p. 79 e 81. In: GUERREIRO RAMOS, 2023).

14 Há registros da existência do regime de escravidão desde o período histórico conhecido como Antiguidade. No entanto, ela não ocorria por distinção fenotípica ou pela cor da pele. Geralmente, derivava de dívidas contraídas ou acumuladas; do fato de ser imigrante/estrangeiro ou, então, inimigo, sobrevivente de guerra. A escravidão mediante cor da pele/fenótipo e sua suposta justificativa “científica” (teoria evolucionista/eurocentrista e teoria das raças) é oriunda da fase de acumulação primitiva do capital e da transformação da força de trabalho dos povos não-brancos e africanos em “coisa” desumanizada e/ou mercadoria (Ver ALMEIDA, 2021 e WADE, 2017).

15 Ainda que tenha de ser construída, pois não está dada. No movimento, na luta, torna-se consciente, sendo assim, torna-se classe.

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