Por Gabriel Landi Fazzio
Publicamos o prefácio à edição brasileira de “Anti-Dimitrov: 1935-1985, meio século de derrotas da Revolução”, do comunista português Francisco Martins Rodrigues, recém-lançada pela Editora Ciências Revolucionárias.
Mais de quarenta anos após sua primeira edição, o público brasileiro finalmente tem acesso direito a esta importante obra do camarada Francisco Martins Rodrigues. Considerando os desafios que o movimento comunista tem diante de si, o lançamento não poderia vir em momento mais oportuno. Em uma época na qual a esquerda revolucionária brasileira vê-se sequestrada (nas ideias e na tática) para concepções genéricas de “unidade a todo custo” em nome da luta defensiva contra os reacionários; quando motes em favor da “frente ampla” se tornaram lugar-comum do “bom-senso” militante; neste momento em especial, o “Anti-Dimitrov” é uma peça teórica incontornável, que arma ideologicamente os comunistas consequentes na luta pela sua demarcação política e contra o reboquismo (que coloca a classe trabalhadora como caudatária da pequena burguesia autoproclamada “radical”).
A obra fala por si mesma quanto a seu valor historiográfico: ao longo de suas páginas, o camarada FMR expõe minuciosamente as vacilações ideológicas que levaram a Internacional Comunista a conceder à pequena burguesia a hegemonia na luta contra o fascismo, consagrada na tática da “Frente Popular”. Reportando-se à experiência prática dos partidos “comunistas” oportunistas (o caso da Hungria e da França se destacam), às discussões no interior do Komintern e aos próprios diários do arauto da Frente Popular, Giorgi Dimitrov, o autor nos conduz com firmeza por uma crítica implacável às enormes concessões realizadas em nome do anti-fascismo, ao longo de mais de meio século.
Mas, para o público brasileiro, essa obra adquire um significado ainda mais profundo, ultrapassando os debates táticos diante da ofensiva reacionária que atualmente enfrentamos. O “Anti-Dimitrov” nos permite questionar pressupostos problemáticos há muito dominantes entre os comunistas brasileiros: os pressupostos do chamado etapismo democrático. Por quase um século, predominou em nosso país a concepção esquemática segundo a qual a dependência do capitalismo brasileiro em relação às potências imperialistas e o grau relativamente baixo de desenvolvimento das forças produtivas obrigavam os revolucionários a adiar para um futuro distante a revolução proletária. Com mediações táticas mais ou menos danosas ao movimento operário, o imperativo dominante era submeter os combatentes da classe trabalhadora à hegemonia da “burguesia nacionalista” na revolução “nacional-democrática”.
Essa política reboquista, nos vários matizes em que se apresentou de 1922 até hoje, não foi apenas expressão de erros teóricos particulares da vanguarda revolucionária no Brasil. Agora, com a publicação da obra de FMR, fica facilitado ao público brasileiro compreender de que modo esses equívocos estratégicos e táticos puderam prosperar por tanto tempo, florescendo sob a bandeira da “unidade a todo custo” emplacada por Dimitrov na III Internacional. Se é verdade que tal desvio já deita raízes desde algumas concepções da tática revolucionária a ser adotada, no geral, nos chamados “países coloniais e semi-coloniais”; por outro lado, torna-se bastante evidente o quanto o giro do Komintern em favor da tática de Frente Popular agravou tal desvio. “Desde então, a invenção da ‘etapa democrática’ tornou-se, como não podia deixar de ser, a filha querida do oportunismo internacional, que assim descobriu a justificação ‘teórica’ de que precisava para descartar a revolução proletária, socialista, atirando-a uma vez mais para um futuro nebuloso”. (p. 105)
Após a derrota do movimento pelas reformas de base, nos anos 60, e a capitulação da burguesia nacional à burguesia imperialista (representada de modo cristalino na ditadura civil-militar entreguista), resta hoje pouca dúvida aos revolucionários consequentes sobre o caráter socialista da futura revolução no Brasil, bem como sobre a impossibilidade de contar com qualquer fração da burguesia como “aliada tática” da luta proletária. E, contudo; pressionados entre uma situação política aparentemente regressiva e toda uma série de maus hábitos etapistas e reboquistas; muitos revolucionários honestos ainda deixam aflorar ilusões semelhantes no terreno da tática. Se tornou comum falar da tática de frente ampla, quando aquilo de que realmente se trata é de estratégia: subalternização e rebaixamento dos interesses de classe do proletariado; abandono da conquista do poder pelo proletariado e consequente instauração da ditadura proletária. Esta ideia é antagônica da defesa de um imaginário governo/sistema intermédio –antifascista e patriótico, ou de democracia avançada, democracia popular, de frente interclassista, etc. – em que o proletariado aceita entregar ou repartir a direção política aos democratas burgueses e à burguesia nacional (os trabalhadores reduzidos a carne para canhão, travando guerras e batalhas que são as que interessam à burguesia e não as suas).
Assim, a obra de FMR permite ao leitor dar um passo em frente no estudo crítico do etapismo. A aprovação da tática de Frente Popular pelo 7o Congresso da Internacional Comunista deixou o legado de uma grosseira falsificação da política de frente única operária. O próprio Comitê Executivo da IC, às vésperas do 7o congresso, criticou a perspectiva revolucionária que tentava “substituir a tática de frente única por uma política capituladora face aos partidos social-democratas”, formando “um bloco indiferenciado com os chefes traidores da social-democracia.
Com esse giro aparentemente tático, mas, na realidade, estratégico do 7º Congresso, “a IC renunciava à guerra aberta para arrancar os operários à influência social-democrata, reconhecia a social-democracia como o seu ‘território’ próprio e propunha-lhe um pacto de assistência mútua contra o fascismo. A política de frente única fora até aí uma política de guerra contra a social-democracia; passava a ser uma política de paz e cooperação.” (p. 77).
Em oposição a essa visão, Francisco Martins Rodrigues oferece uma concepção distinta de unidade. Tendo em vista Lenin, que “trabalhando pela hegemonia do proletariado, sob a condução da sua vanguarda, estava a trabalhar pela unidade” (p. 68), FMR propõe uma leitura classista e revolucionária da tática da frente única, indispensável para que possamos diferenciar, em nossa época, entre as revindicações defensivas proletárias capazes de unificar o movimento revolucionário socialista; e as concepções defensivas pequeno burguesas, abstratamente democráticas, que solapam a hegemonia da classe trabalhadora na luta contra a reação e o imperialismo.
Como afirma Francisco Martins Rodrigues nos artigos que completam esta edição, os revolucionários não são, contudo, sectários. Não têm problema em convergir numa qualquer luta, manifestação, greve, etc, com forças pequeno-burguesas. A questão é estarem eles aí com as suas reivindicações próprias, que são as dos proletários. Contrários ao espírito de “unidade por cima”, apresentam-se com autonomia, sem acordos de cúpula entre chefes e organizações e com o maior entendimento possível entre as bases populares e trabalhadoras. Promovem ações práticas em que a unidade se consegue sem a cedência e o rebaixamento dos propósitos proletários mais radicais e recusam que as suas reivindicações de classe sejam restringidas àquilo que é aceitável para a burguesia.
Não se tratava de simples inflexão tática e muito menos de desvios de conduta, maus hábitos, personalismos totalitários ou algo do gênero. A profundidade do rompimento de Francisco Martins Rodrigues em 1985 com o reformismo consagrado pelo 7º Congresso está claramente plasmada e aprofundada nos artigos que mais tarde elaborou, alguns dos quais aqui se reproduzem.
Como afirma o autor em um desses artigos (incluído nesta edição), FMR adianta uma razão essencial para esta atitude tática ao serviço duma estratégia proletária: “Lenine não deixou dúvida nenhuma de que toda a política do proletariado, para ser revolucionária, tem que assentar na luta pela hegemonia, pela demarcação, pela diferenciação, pela independência. Denunciando ‘o medo indecente de isolar o proletariado do povo pequeno-burguês’, explicava que o proletariado tem que aprender justamente a isolar-se das flutuações da pequena burguesia, para a educar e não ser arrastado por ela”. Ao menos por martelar essas verdades elementares na cabeça dos revolucionários, em tempos de vacilação e reação (se não por muitas mais razões), o “Anti-Dimitrov” mantém-se uma leitura indispensável.