Por Friedrich Engels, via mlwerke.de, traduzido por Daniel Garcia e Gabriel Landi Fazzio
“A palavra de ordem da abolição do Estado esconde a fuga covarde das lutas imediatas que se apresentam; ou uma espúria inflação da liberdade burguesa à absoluta independência e autonomia do indivíduo; ou, finalmente a total indiferença do cidadão perante qualquer forma de Estado, desde que o avanço dos seus interesses não seja interrompido.”
A abolição do Estado só faz sentido para os comunistas como resultado necessário da abolição das classes, com o que desaparece por si mesma a necessidade do poder organizado para opressão de uma classe pela outra. Nos países burgueses, a abolição do Estado significa a repartição do poder estatal nos padrões da América do Norte. Aqui, o antagonismo de classes está apenas parcialmente desenvolvido; os choques entre as classes é a todo tempo encoberto pela migração da superpopulação proletária rumo ao oeste, e a intervenção do poder do Estado – que no leste é reduzida ao mínimo – sequer existe lá. Nos países feudais, a abolição a abolição Estado significa também a abolição do Feudalismo e a construção de um Estado comum burguês. Na Alemanha, [essa palavra de ordem] esconde, ou a fuga covarde das lutas imediatas que se apresentam; ou uma espúria inflação da liberdade burguesa à absoluta independência e autonomia do indivíduo; ou, finalmente a total indiferença do cidadão perante qualquer forma de Estado, desde que o avanço dos seus interesses não seja interrompido. Que a abolição do Estado tenha sido pregada “um sentido mais elevado” de forma tão tola, naturalmente, não pode socorrer os berlinenses Stirner e Faucher. La plus belle fille de la France ne peut thunder que ce qu’elle a. [“A mais bela menina da França só pode dar aquilo que ela tem”.] [1]
Entretanto, a abolição do Estado – a anarquia – tornou-se uma frase de efeito geral na Alemanha. Os dispersos discípulos alemães de Proudhon, a democracia “superior” de Berlin e até os “mais nobres espíritos da nação” do Parlamento de Stuttgart e a regência Imperial, cada uma a sua maneira, se apropriaram dessa palavra de ordem de aparência selvagem.
Todas essas facções concordam com a manutenção da sociedade civil burguesa [bürgerlichen Gesellschaft] existente e representam necessariamente o domínio da burguesia e, na Alemanha, até mesmo a conquista do domínio pela burguesia; diferem dos verdadeiros representantes da burguesia apenas na estranha forma que lhes dá a aparência de “ir mais longe”, de “ir além”. Em todos os choques práticos, essa aparência se desfez; contra a verdadeira anarquia das crises revolucionárias [N.E.: excluído do manuscrito:”, onde o poder de Estado desapareceu ante o poder das massas”], onde as massas [N.E.: excluído do manuscrito: “se valem da violência”] lutam umas contra as outras com “violência brutal”, esses representantes da anarquia fazem seu melhor para controlar a anarquia. O conteúdo dessa tão alardeada “anarquia” acabou se resumindo àquilo que é, nos países mais desenvolvidos, resumido pela palavra “ordem”. Os “Amigos da Anarquia” na Alemanha estão em plena etente cordiale [“harmonia”] com os “Amigos da Ordem” na França.
Conquanto os Amigos da Anarquia não são dependentes dos franceses Phroudon e Girardin; conquanto sua perspectiva tem origem alemã, todos têm a mesma fonte: Stirner. O período de dissolução da filosofia alemã em geral forneceu a maior parte dos jargões usados pelo partido democrático na Alemanha. As ideias e frases dos últimos eruditos alemães – em particular Feuerbach e Stirner – já estavam, nas mais dissolutas formas, na consciência dos beletristas e na literatura jornalística, e estes formaram novamente a principal fonte para os porta-vozes democráticos do pós-março [de 1848]. O sermão de Stirner sobre a apatridia [Staatlosigkeit] se adequa perfeitamente para fornecer “consagração superior” filosófica alemã à anarquia de Proudhon e à abolição do Estado de Girardini sua mais alta reverência. O livro de Stirner, O indivíduo e sua propriedade [Der Einzige und sein Eigenthum] caiu, com efeito, em perdição, mas seu modo de pensar, em especial sua crítica ao Estado, reaparece nos Amigos da Anarquia. Já tendo anteriormente pesquisado sobre as fontes desse senhor – visto que tinham origem francesa –, deveríamos, para provar suas fontes germânicas, nos debruçar novamente nas profundezas da arcaica filosofia alemã. Quando temos de nos ocupar com a polêmica do dia na Alemanha, é sempre mais prazeroso aderir ao modo de ver dos inventores originais, do que a alguma concepção secundária pelas mãos dos negociantes de sucata.
“Mais uma vez selem-me o hipogrifo, musas,
para cavalgar rumo à terra romântica”
[Wieland, “Oberon”]
Antes de adentrar o supracitado livro de Stirner, deveríamos nos transportar de volta para a “antiga terra romântica” e para o tempo esquecido em que este livro apareceu. A burguesia prussiana, agarrada ao embaraço financeiro do governo, começou a ganhar poder político, enquanto, ao mesmo tempo, junto ao movimento constitucional burguês, o movimento comunista se espalhava cada dia mais entre o proletariado. O elemento burguês da sociedade, ainda necessitado de apoio do proletariado para alcançar seus próprios objetivos, necessitava em todo canto abraçar um certo socialismo. Os partidos conservadores e feudais se viram também obrigados a fazer promessas ao proletariado. Ao lado da luta da burguesia e dos camponeses contra a nobreza feudal e a burocracia – [surgiu] a luta do proletariado contra a burguesia; entre elas, uma série de classes intermediários de socialismo; o reacionário, o pequeno-burguês, o socialismo burguês; todas essas lutas e esforços barrados, amortecidos em sua expressão pela pressão do poder dominante, pela censura, pela proibição das associações e assembleias – essa era a posição dos partidos na época em que a filosofia alemã celebrava seu último miserável triunfo.
A censura forçava de pronto todos elementos mais ou menos impopulares a usar sua forma de expressão mais abstrata possível; a tradição filosófica alemã, que acabava de chegar à dissolução total da escola hegeliana, forneceu essa expressão. A luta contra religião perdurava. Quanto mais se tornava difícil a luta política contra o poder constituído na imprensa, mais zelosamente ela foi levada a cabo na forma de luta religiosa e filosófica. A filosofia alemã, em sua forma desintegrada, tornou-se patrimônio comum dos “letrados”, e quanto mais se tornou propriedade comum, mais ainda desintegrados, confusos e insossos se tornavam os filósofos, e esse desleixo e insipiência deram a eles novamente uma maior visibilidade aos olhos do público “letrado”.
A confusão na cabeça dos “letrados” era aterradora e crescia gradualmente. Foi um verdadeiro cruzamento de ideias de origem alemã, francesa, inglesa, antiga, medieval e moderna. A confusão era tão grande que todas as ideias estavam apenas em segunda, terceira ou quarta mão, e circulavam de formas distorcidas até o ponto do não reconhecimento. Não apenas as ideias dos liberais e socialistas, franceses e ingleses, mas também a ideia dos alemães, como Hegel, seguiram esse mesmo destino. A literatura completa de cada geração, em especial a que veremos, o livro de Stirner, forneceu incontáveis provas disso, e a literatura alemã de hoje ainda sofre fortemente com as consequências disso.
Sob essa confusão, as lutas do espelho filosófico serviram como reflexo das lutas reais. Cada “nova virada” na filosofia chamava a atenção geral dos “letrados” que, na Alemanha, incluem incontáveis mentes ociosas, referendários, estagiários, teólogos fracassados, médicos mortos de fome, escritores etc., etc. Para essas pessoas, cada “nova virada” traz a superação e o descarte de uma fase do desenvolvimento histórico. O liberalismo burguês, por exemplo, logo que qualquer um o criticasse, estava morto, retirado do desenvolvimento da história e aniquilado da práxis. Bem como o republicanismo, o socialismo e assim por diante. O quanto esses níveis de desenvolvimento foram “aniquilados”, “diluídos”, “descartados”, foi mostrado depois na Revolução, em que eles tiveram um papel central, e na qual, de repente, seus aniquiladores filosóficos não estavam mais em questão.
O desleixo na forma e no conteúdo, os chavões arrogantes e a envaidecida banalidade, a tola trivialidade e a miséria dialética desses últimos filósofos alemães ultrapassam tudo que já se viu até aqui nessa matéria. Ela só foi alcançada através da ingenuidade do público, que aceitou essas coisas sem questionar, por serem “inéditas” e “sem precedentes”. A nação alemã, a “completa” […] [N.E. Aqui termina o manuscrito].
Notas:
[1] O excerto aqui redigido por Engels também foi utilizado por Marx em seu ensaio sobre Girardin e seu “socialismo tributário”, também traduzido no LavraPalavra.