Por Camila Koenigstein.
O presente trabalho tem como intuito analisar as contribuições de Antônio Gramsci acerca do fordismo uma nova forma de dominação do capitalismo. Para tanto, iremos utilizar como ponto de partida sua obra Americanismo e Fordismo.
Antônio Gramsci nasceu na Sardenha em 22 de Janeiro de 1891. Vinculado desde cedo ao movimento operário italiano, teve sua vida marcada pela pobreza e militância. Seus escritos o colocaram em uma posição de destaque dentro das publicações de cunho esquerdista.
“Produziu uma obra sempre voltada para o debate, para interlocução, para a polêmica. Mesmo uma parte significativa de suas epístolas esteve canalizada para os objetivos de uma ação político-cultural dos quais nem mesmo sua correspondência privada mostrou-se imune.
Assim Gramsci já trazia consigo o perfil do ator político revolucionário, do “homem comunista” almejado pela filosofia da práxis.” (DEL ROIO, 2005, p.15)
Em 8 de novembro de 1926 Gramsci foi preso, em uma Itália já regida pelos princípios fascistas. Seus escritos mais conhecidos foram os Cadernos do Cárcere, produção composta de estudos que perpassam por temas como cultura, política e sua experiência no cárcere. Em 1934, com a saúde já debilitada, é posto em liberdade condicional. Passou por vários hospitais, mas faleceu aos 46 anos, deixando uma produção de peso para compreensão das diversas esferas da sociedade.
“Gramsci (assim como Lukács) faz parte da segunda fase de refundação comunista, cujas características são a derrota da revolução socialista internacional, o início da transição socialista na União Soviética, numa situação de atraso e isolamento e o enfrentamento da ofensiva do capital, sob a forma fascista.” (DEL ROIO, 2005, p.19)
Sendo da segunda fase de teóricos debruçados a compreender o capitalismo e suas dinâmicas, Gramsci – ainda que isolado das relações sociais – percebeu que os Estados Unidos eram um país com bastante potencial para abraçar o modo de vida capitalista. Diferentemente de Lênin, no seu famoso texto “O Imperialismo, fase superior do Capitalismo”, no qual focou na expansão do capital via dominação de colônias, formação dos países rentistas e consequentemente o surgimento do parasitismo imperialista, que criaria uma fase apodrecida do sistema capitalista, Gramsci olha para um modo de vida que compactua com os ideais do capitalismo: o americanismo.
Não que Lênin não tenha observado a atuação americana no processo de expansão do capital e seu papel Imperialista, mas ele mesmo não previa que os Estados Unidos tornariam- se a personificação do modo de vida capitalista.
“Vemos três regiões com um capitalismo altamente desenvolvido (alto desenvolvimento dos meios de comunicação, do comércio e da indústria): a da Europa Central, a britânica e a americana. Entre elas, três Estados que exercem o domínio do mundo: a Alemanha, Inglaterra e os estados Unidos […] Nas regiões britânicas e americana, é muito elevada a concentração política, mas há uma desproporção enorme entre a imensidão das colônias da primeira e a insignificância das que a segunda possui.” (LENIN, 1986, p.646)
Portanto, Gramsci amplia o horizonte e visualiza novas formas de dominação via capital, ou seja, analisa a força do capitalismo nos Estados Unidos.
Essa análise sai da esfera economicista tão vinculada à tradição marxista e entra na dominação dos corpos, do modo de vida, do comportamento da classe operária no sentido de extrair desses sujeitos o melhor aproveitamento de suas capacidades. Esse movimento seria possível via dominação ideológica e subjetiva, mas também pela feliz coincidência de encontrar na população norte americana traços culturais favoráveis a essa assimilação.
“Nos Estados unidos […] é recente a tradição dos pioneiros, a forte individualidade, no qual o voto dos trabalhadores alcançou a maior intensidade e vigor, de homens que diretamente, e não por meio de um exército de escravos ou de servos, entravam em contato com as forças naturais, para dominá-las e explorá-las vitoriosamente. São estes resíduos passivos que na Europa resistem ao americanismo […] porque sentem instintivamente que as novas formas de produção os destruiriam implacavelmente.” (GRAMSCI, 2008, p.71)
A partir desse ponto é que ele colocou o fordismo como um dispositivo para o capital manter seu poder sobre a classe trabalhadora, através do surgimento de novas estratégias de dominação.
Se com o taylorismo o trabalhador era uma mera ferramenta para produção da mercadoria, ou seja, era coisificado, com o fordismo ele ganhou um novo status, e que permitiu um desmembramento da própria classe trabalhadora.
Como Gramsci analisou esse processo:
“A junção do sistema de Taylor com a mecanização do ritmo produtivo advindo da linha de montagem. Na verdade, isto se estende ao reconhecimento de traços culturais associados à difusão de uma visão social de mundo plasmada pela combinação de proibicionismo com a regulação puritana dos hábitos sexuais reforçada pela propagação do individualismo como antídoto para as características do associativismo de classe.” (BRAGA, 2008, p.15)
Portanto, o autor percebeu que a implantação do sistema fordista foi uma estratégia muito bem sucedida, que estratificou a classe trabalhadora através da criação de cargos de gerência, benefícios sociais, altos salários. Isso foi o que formou uma “elite operária”, que não conseguia mais visualizar os processos de dominação do capitalismo.
Sabemos que, de certa forma, um dos mecanismos de diluição de unidade é a distinção entre indivíduos. Essa maneira de controle encontrou êxito justamente por utilizar uma dominação sutil, revestida através da valorização de características individuais, ou seja, quando se qualifica um indivíduo pelo seu desempenho particular, o mesmo sente sua valorização por suas características, fazendo assim surgir o narcisismo das pequenas diferenças, eliminando qualquer traço de identificação com os companheiros que não receberam a mesma atenção por parte dos gerentes ou donos das empresas.
Mas a implantação desse novo modo de trabalho veio revestido por exigências antes inexistentes. O trabalhador que outrora executava suas atividades e mantinha, de certa forma, sua privacidade, seus hábitos particulares, teve que abrir mão dessa liberdade para entrar em um modo de vida associado ao mundo do trabalho, o que foi chamado posteriormente de modo de regulação ou modelo de desenvolvimento, que visualizava o trabalhador como um todo, partindo do seu desempenho dentro do trabalho, e também de sua conduta nas dimensões íntimas da sua vida.
Para Ruy Braga:
“Nesse sentido representou uma vitória obtida – por meio de uma peculiar combinação de força (a derrota do sindicalismo de ofício) e persuasão (os chamados altos salários, os benefícios sociais, a propaganda moral e a instrução) – pelo capitalismo estadunidense contra o poder dos antigos artesãos pelo controle sobre o processo de trabalho. Assim, o fordismo logrou criar um “novo tipo de trabalhador “a partir da conjunção de consenso e força.” (BRAGA,2008, P.16)
Obviamente que Henry Ford utilizou de forte campanha ideológica para convencer seus funcionários a aderirem ao seu programa. Gramsci foi, portanto, pioneiro em perceber que a hierarquia, a elevação dos salários, o Five dollars day eram formas de apaziguamento dos conflitos entre os operários, criando uma falsa consciência de pertencimento do trabalhador, crendo este que os ganhos obtidos pela empresa de certa forma eram devolvidos para eles, bastava o esforço individual para atingir as metas estipuladas.
Esse seja talvez o maior diferencial do sistema taylorista para o fordista. Taylor não deixou de colocar o trabalhador como uma extensão da máquina. A intenção era exatamente essa:
“Desenvolver no trabalhador em grau máximo as posturas maquinais e automáticas, despedaçar o velho nexo psicofísico do trabalho profissional qualificado que demandava uma certa participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa do trabalhador e reduzir as operações produtivas ao aspecto físico maquinal somente.” (GRAMSCI, 2008, p.66)
Segundo André Phillip: “Taylor considerava que um gorila amestrado poderia fazer o trabalho atualmente efetuado por um operário”.
Já Ford foi além em sua análise sobre as estruturas do mundo do trabalho e percebeu que o domínio psíquico atrelado a uma conduta moral voltada para o mundo laboral seria muito mais produtiva e rentável. Nesse aspecto percebemos que o capitalismo e o trabalho viram uma espécie de religião a ser seguida. Walter Benjamin, em seu trabalho O Capitalismo Como Religião, expõe como o pertencimento ao sistema é importante para a manutenção de uma forma de vida inserida no capital, ou seja, Henry Ford percebeu que seus trabalhadores necessitavam do sentimento de pertencimento social. Como se daria esse processo? Através do consumo dos bens produzidos pela própria classe trabalhadora.
“Contribuiu para o conhecimento do capitalismo enquanto religião ter presente que o paganismo original certamente foi o primeiro a não conceber a religião como interesse “moral”, “mais elevado”, mas como interesse prático o mais imediato possível; em outras palavras, é preciso ter presente que ele, a exemplo do capitalismo atual, tampouco tinha clareza sobre sua natureza “ideal” ou “transcendente”, mas considerava o indivíduo irreligioso ou de outra crença de sua comunidade como um membro inquestionável, exatamente no mesmo sentido em que a burguesia atual encara seus integrantes economicamente inativos.” (BENJAMIN, 2013, p.25)
Cria-se uma nova forma de trabalho e com ela um estilo de vida, como Benjamin aponta: uma religião. Portanto, o fordismo abre as portas para um novo pensar, para novas formas de ver o capitalismo e, principalmente, para este repensar suas estratégias de permanência. É nesse sentido que vemos a importância dos estudos de Gramsci e sua análise apurada sobre como o americanismo abraçou esse estilo de vida.
Do fordismo à acumulação flexível
Sabemos que os modos de produção não são imóveis e sofrem alterações sócio-históricas. O fordismo não resistiu às crises econômicas e o fortalecimento de outras nações, como por exemplo o Japão. Por sua vez também não encontrou êxito nos países de terceiro mundo, visto que os trabalhadores não conseguiam consumir os bens produzidos por eles mesmos como ocorreu no Estados Unidos. Assim, também não foi possível a regulação total do modo de vida privado, ou seja, não houve uma aderência completa ao fordismo e sua rigidez como acorreu na América do Norte. Como já exposto anteriormente, não encontrou em outras culturas traços de identificação com esse modo de produção.
Segundo David Harvey (2008, p. 135) “De modo mais geral, o período de 1965 a 1973 tornou cada vez mais evidente a incapacidade do fordismo e keynesianismo de conter as contradições inerentes ao capitalismo”.
Com um mundo marcado por fortes crises econômicas pós Segunda Guerra Mundial, a economia norte americana já sinalizava sua decadência, fruto dos gastos com a corrida armamentista, desequilíbrios da balança comercial e a desvalorização da sua moeda frente às outras, como a moeda japonesa. A forte recessão de 1973 reconfigurou as instâncias econômicas e sociais: o fordismo não encontrou mais força para sobreviver nesse novo cenário mundial.
Assim, desponta um novo horizonte econômico e social, e o sistema capitalista é reformulado e repensado.
“Em consequência, as décadas de 70 e 80 foram um conturbado período de reestruturação econômica e de reajustamento social e político. No espaço social criado por todas as oscilações e incertezas, uma série de novas experiências nos domínios da organização industrial e da vida social e política começou a tomar forma. Essas experiências podem representar os primeiros ímpetos da passagem de um regime de acumulação inteiramente novo, associado com um sistema de regulamentação política e social bem distinta.” (HARVEY, 2008,p. 140)
É nesse cenário que surge a acumulação flexível. Ela é a resposta a toda rigidez criada pelo modo de produção fordista. Seu funcionamento é caracterizado pela flexibilização das jornadas de trabalho, a inserção da mulher no mercado, e consequentemente ganhos menores, salários mais modestos, um alto índice de desemprego, o que aumentou o exército de reserva, permitindo uma maior competitividade entre os indivíduos, enfraquecimento das ações sindicais e, consequentemente, o fortalecimento total do individualismo.
Esse modelo, juntamente com a terceirização, formam um cenário nebuloso no qual ficou difícil enxergar o domínio da infraestrutura. Com isso, torna-se difícil também notar as alterações nas superestruturas.
O capitalismo nessa forma é muito mais complexo do que imaginamos, pois diferentemente do que Marx e os teóricos de esquerda visualizaram no fim do século XIX e começo do XX, não existe uma única classe subordinada agora, mas sim extratos sociais que participam do processo como autores e atores, ou seja, não é possível uma coesão de classe, embora ainda exista uma minoria que detém a riqueza concentrada em suas mãos.
Combater as mazelas criadas pelo capitalismo nesse momento ficou abstrato. Os novos arranjos sociais precisam ser analisados por prismas diferenciados, não deixando de enxergar os processos sócio-históricos que permitiram tantas modificações dentro de um único sistema. Mais do que nunca, Gramsci se faz presente: “Ocorrerá inevitavelmente uma seleção forçada, uma parte da antiga classe trabalhadora será eliminada sem piedade do mundo do trabalho e talvez do mundo tout court”.
Bibliografia
BENJAMIN, Walter. O Capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013.
BRAGA, Ruy. “Hegemonia estadunidense” in: GRAMSCI, Antônio. Americanismo e fordismo. São Paulo: Hedra, 2008.
GRAMSCI, Antônio. Americanismo e fordismo. São Paulo: Hedra, 2008.
HARVEY, David. A Condição Pós moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
LENIN, Vladimir. Imperialismo, fase superior do capitalismo. Coletânea.
ROIO, Del Marcos. Os prismas de Gramsci – A fórmula política da frente única (1919-1926).São Paulo: Xamã Editora, 2005.
SECCO, Lincoln. Gramsci e a revolução. São Paulo: Alameda, 2006.
*Imagens: Detroit Industry Murals, por Diego Riviera, 1932-33
1 comentário em “Gramsci: Uma nova perspectiva do capital”
Excelente artigo.