Ciência e Ideologia

Por Daniel Alves Teixeira

Publicamos nesse blog um artigo intitulado “Einstein contra o relativismo” na tentativa de demonstrar que as percepções de Einstein como um cientista “relativista” deixava de lado outra faceta importante de sua vida, a preocupação com a totalidade e com as questões políticas de seu tempo. E de fato, podemos encontrar em meio aos seus numerosos e complexos trabalhos na física aqueles em que Einstein avança em discussões de cunho inegavelmente filosófico, como a relação entre a ciência e a religião, a racionalidade e o progresso da humanidade, por vezes em meio a manifestações quase holísticas sobre seu “espanto frente ao Universo e ao sentimento cósmico”.


O ponto que gostaríamos de destacar neste texto é que Einstein deriva de seu entendimento e concepção do Universo e da realidade suas convicções teológicas e políticas que nós poderíamos chamar de sua visão propriamente ideológica do mundo. Tal afirmação não agrada de imediato aos ouvidos da racionalidade científica, que no mais das vezes não corrobora a ideia de que o cientista possa se “misturar” a ideologias, tratando-se assim de um desvio do próprio Einstein, que saiu dos limites próprios da ciência para “prosear” sobre o destino da humanidade e outras questões filosóficas que nada possuem de científicas.

Mas a análise de algumas das declarações de Einstein nos permite perceber que suas revolucionárias concepções da física influenciavam profundamente seu entendimento sobre as questões da política e da filosofia. Ou seja, longe de serem domínios disjuntos, a ciência e a ideologia possuíam intrincada relação em seu pensamento, determinante de suas análises sobre a humanidade como um todo.

Por exemplo, vejamos trecho de seu livro Como Vejo o Mundo, quando, procurando definir o campo próprio das ciências, afirma que “é totalmente impossível qualquer conflito entre a ciência natural e a religião, porquanto, a ciência só pode verificar aquilo que é, mas não aquilo que deve ser; o critério sobre o valor fica para além do seu alcance. A religião, por seu turno, trata somente do valor do humano pensar e agir; não está autorizada a falar de fatos objetivos e suas relações. A ciência sem religião é paralítica, a religião sem ciência e cega.”[1]. Assim, a ciência é o domínio da realidade fática e objetiva, desprovida de motivações intencionais e preocupada em aprofundar o conhecimento humano, enquanto que a religião e o domínio dos valores morais e éticos abstratos, porém fundamentais para a evolução da sociedade. Einstein não defende aqui a separação absoluta de ambos os domínios ou a ciência como dimensão da verdade e a religião da mentira, mas antes sua mutualidade, ainda que cada uma em seu campo específico.

Em outro momento, Einstein exalta como o sentimento religioso possui forte ligação com o entusiasmo científico, em sua busca pelo Todo e sua harmoniosa expressão racional:

“Entretanto, há um terceiro estado de experiência religiosa, que aparece em todas as classes, mas raras vezes se encontra em forma pura, tipo esse que eu apelido de experiência religiosa cósmica( …) Neste nível, o homem sente o nada de todos os seus desejos e escopos humanos, bem como a maravilhosa ordem e sublimidade que se manifestam tanto na natureza como no mundo do pensamento. Aqui o homem contempla a existência individual como uma espécie de prisão e anseia experimentar o Universo como um Todo único e significativo.”[2]

Encontramos ainda muitas outras passagens acerca destas relações entre religião e ciência, inclusive uma em que destaca que aquilo conferia a homens como Kepler e Newton sua capacidade para entender e descrever a racionalidade do Universo era seu “sentimento de religiosidade cósmica”. E dentro dessas coordenadas básicas de sua concepção de mundo, não é muito difícil de imaginar qual seria a direção política básica de Einstein. Um socialismo de cunho humanitário, ligeiramente marxista, tendo por base o homem universal da ciência, que se dispôs de seu eu em favor da humanidade, em uma sociedade onde cada uma das partes se relacionaria de forma equilibrada, proporcionando um todo harmonioso, em contraposição a disputa mercantil feroz e individualista do mundo capitalista.

“Considero este estropiamento dos indivíduos como o pior mal do capitalismo.

Todo o nosso sistema educativo sofre deste mal. Uma atitude exageradamente competitiva é incutida no aluno, que é educado para venerar o poder aquisitivo como preparação para a sua futura carreira.

Estou convencido que só há uma forma de eliminar estes sérios males,  nomeadamente através do estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educativo orientado para objectivos sociais. Nesta economia, os meios de produção são detidos pela própria sociedade e são utilizados de forma planificada. Uma economia planificada, que ajuste a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre aqueles que podem trabalhar e garantiria o sustento a todos os homens, mulheres e crianças. A educação do indivíduo, além de promover as suas próprias capacidades inatas, procuraria desenvolver nele um sentido de responsabilidade pelo seu semelhante em vez da glorificação do poder e do sucesso na nossa atual sociedade.”[3]

No mesmo texto, Einstein afirma ainda sua preocupação com a possibilidade de outra guerra mundial e o possível extermínio da humanidade, destacando que “só uma organização supra-nacional ofereceria proteção contra esse perigo”. Ou seja, o mesmo homem que lutou incessantemente para tentar equacionar fisicamente a Lei do Todo depositava suas esperanças políticas em um sábio legislador mundial que governasse em prol de toda a humanidade, nos melhores moldes dos clichês iluministas. Evidente, assim, que as concepções da ciência e da física de Einstein invariavelmente repercutiam em sua concepção da realidade política e social. E chamar tais concepções de ideológicas em nada diminui sua importância. A concepção de ideologia como algo “ruim” ou inerentemente “mentiroso” já é em si fruto de um trabalho conservador de anos para derrubar qualquer expectativa de possibilidades de alternativas políticas. Ao contrário, ideologia é verdadeiramente o “nível zero” da existência humana, todos são mais ou menos levados a formar uma concepção mínima do que “conta como realidade”, como forma de organizar e dar coerência ao mundo, e estas concepções pessoais estão por sua vez estritamente ligadas a determinadas práticas sociais, entre elas esta da ciência.

Podemos reconhecer o valor de Einstein em, ao contrário de outros cientistas que simplesmente ignoram outras áreas do conhecimento como não “legitimamente científicas”, ter a ousadia de, fundamentando também em seu prestígio na área da física, levar suas próprias ideias ao limite, adentrar questões políticas e defender pautas que certamente tinha cunho progressista. Mas podemos igualmente reconhecer suas intervenções tinham igualmente suas limitações, fundadas em suas próprias premissas conceituais e filosóficas. Talvez isto possa ser mais bem notado não pela posição de Einstein, que era verdadeiramente uma posição mais ou menos “radical” para sua época, mas talvez por aqueles que podem ser considerados seus legítimos sucessores em termos de  “cientificismo humanista”, os gênios do cyberespaço  contemporâneo, como Bill Gates e Steve Jobs,  alçados a ídolos de uma geração inteira por suas façanhas e desenvolvimentos tecnológicos, mas que possuem igualmente sua peculiar visão da sociedade e da política.

Estes também, tal como Einstein, possuem imensa preocupação humanitária e estão atentos ao malefícios sociais do capitalismo exacerbado. Entretanto, a ideia não é mais um órgão centralizador, burocrático e controlador da ordem mundial, tal como pensada por Einstein, como resposta para a desordem capitalista. Esta visão ainda está presa ao velho paradigma estatal, centralista do velho corporativismo “fordista”. Contra essa noção, temos agora o universo automatizado das redes, onde o importante é a liberdade individual e a espontaneidade criativa. Nada de patrões neuróticos, roupas formais e horários fixos, mas antes salas de jogos para descontração e relaxamento, com intervalos de yoga e comidas naturais. O importante aqui não é mais diretamente o lucro, subproduto natural do trabalho criativo, mas a realização pessoal no emprego e as oportunidades de troca social concreta.

Slavoj Zizek cunhou a curiosa expressão de “comunista liberal” para esses novos ideólogos da internet e seus propagandistas empresariais e individuais. Em sua descrição:

“Os comunistas liberais são pragmáticos. Odeiam as abordagens doutrinárias. Para eles, não há hoje em dia uma classe trabalhadora una e explorada. Há simplesmente problemas concretos que devem ser resolvidos: a fome na África, a sujeição das mulheres muçulmanas, a violência do fundamentalismo religioso. Quando há uma crise humanitária na África – e os comunistas liberais simplesmente amam as crises humanitárias, que trazem a tona o melhor de si mesmo! -, é despropositado recorrer à retórica imperialista à maneira antiga. Em vez disso, todos devemos nos concentrar naquilo que de fato funciona em vista da solução do problema: empenhar as pessoas, os governos e o mundo dos negócios numa iniciativa comum; começar a fazer com que as coisas avancem, em vez de confiar no auxílio de um Estado centralizado; abordar a crise em termos criativos e não convencionais, sem dar importância aos rótulos.”[4]

O que temos de reter em mente é que essa atitude política e social possui como pano de fundo filosófico/teológico toda uma concepção de “realidade”, uma visão própria lastreada em seu entendimento básico do que é o mundo, nos mesmos moldes das especulações de Einstein. Não mais um ordem hierárquica rígida entre as partes e seu sábio senhor legislador, mas a múltipla e horizontal interação entre as partes, em processo permanente de transformação e adaptação. Nesse contexto, já se tornou parte do imaginário popular a tal da “nuvem”, um Outro quase onisciente, onde se encontram todas as informações para que as subjetividades livres possam acessar e assim se expandir autonomamente. As muitas repercussões quase que teológicas disso são abundantes na cultura popular, desde a superMente que pode a qualquer momento ganhar autonomia e governar sozinha o mundo e que “sabe” o tempo inteiro onde estou, até uma possível virtualização total da personalidade humana. A chamada ficção científica possui menos de uma suposta ficção do que uma articulação absolutamente funcional e bastante propositada dos horizontes de possibilidade (e angústia) da humanidade, fazendo eco à afirmação de Lacan de que “a verdade tem a estrutura de uma ficção.”

Entretanto, os precursores deste tipo de pensamento enxergam a si mesmos como “pós-ideológicos”, realistas, preocupados com questões práticas e urgentes que exigem a superação do dualismo na política. Assim, são defensores intransigentes da democracia como única forma de garantir as sagradas liberdades individuais, e qualquer um que a critique ou pense de forma diferente certamente já é um “terrorista” ou “totalitário” em potencial.

Que se diga que Einstein sucumbiu ao seu coração mole humanitário, fugindo da estrita forma científica para adentrar o imperfeito campo das humanidades (algo que ele próprio afirma), ou ainda que os ideólogos da “revolução cyberespacial” são em verdade sujeitos para quem as questões filosóficas “abstratas” e “irreais” simplesmente não importam, a verdade é que o entendimentos daquilo que é a “realidade” possui grande implicação nas posições político-ideológicas dos sujeitos, por mais que se tente sustentar a neutralidade e objetividade de seu pontos de vista. E, segundo Zizek[5], um passo adiante pode ser encontrado nesta problemática através do desafio filosófico que a física quântica nos impõe em função de suas paradoxais conclusões, o de pensar a impossibilidade não só de uma visão puramente “objetiva” da realidade, como também de seu correlato necessário, o “subjetivismo” relativista.

Não existe uma visão puramente “objetiva” da realidade, a produção discursiva daquilo que se entende por realidade possui grandes e inevitáveis repercussões sociais, políticas e ideológicas. Aqui devemos afirmar a importância da dimensão propriamente reflexiva da filosofia como forma de compreensão do mundo, na tentativa de revelar a necessária posição subjetiva oculta em todo enunciado dito puramente objetivo.


[1] Texto disponível em Rohden, Huberto. Einstein: o enigma do Universo, Editora Martin Claret, 2008, pg. 151

[2] [2] Texto disponível em Rohden, Huberto. Einstein: o enigma do Universo, Editora Martin Claret, 2008, pg. 154

[3] Texto disponível na íntegra em http://www.hist-socialismo.com/docs/AEinsteinsobreoSocialismo.pdf, acessado em 13.09.2015 às 18:08 hrs.

[4] Zizek, Slavoj Violência. São Paulo, Ed. Boitempo, 2014, pg. 29

[5] Em Menos que Nada, capítulo 8 – A Ontologia da física quântica, São Paulo, Ed. Boitempo, 2013.

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