O corpo que resta à política

Por Rafael Oliveira

O presente texto busca contribuir para uma reflexão sobre as lutas sociais contemporâneas a partir de uma interpretação sobre algumas polêmicas envolvendo a tradição marxista e a esquerda anticapitalista pós-URSS.


INTRODUÇÃO

É possível dizer que para a sensibilidade política contemporânea, o desaparecimento do bloco socialista demonstrou como a planificação estatal da economia é inadequada à satisfação das necessidades cada vez mais complexas dos indivíduos, não importando se provenientes da imaginação ou do estômago. Mas é preciso dizer mais sobre o colapso do socialismo, pois é evidente que o ocaso da experiência soviética abrangeu limites muito maiores para os comunistas que os indicados por seus impasses políticos e econômicos. Sem dúvida que ainda hoje pesam sobre os comunistas os cadáveres que os liberais contabilizam para se referirem ao terror do stalinismo, mas isso também é pouco, uma vez que socialistas demonstraram interesse em sustentar um obsceno debate aberto por liberais ao final dos anos de 1990 acerca do número de mortos gerados pelo regime soviético[1]. Para dizer tudo numa palavra, o fracasso do comunismo do século XX foi a derrota de determinado discurso sobre o mundo, fazendo recair para sempre o fardo dos Gulags sobre toda iniciativa política anticapitalista pós-URSS para um novo modo de vida social. Talvez por isso que desde 25 de dezembro de 1991, quando Mikhail Gorbachev renunciou ao cargo de Secretário-Geral do Partido Comunista da URSS e a bandeira soviética deixou de tremular no Kremlin russo, em relação à sociedade em que vivemos, tem nos bastado mudar nós mesmos.

Para as pessoas da época soviética, àquelas que encarnaram em seus corpos as paixões revolucionárias do socialismo marxista, é compreensível que lhes tenha atingido um tipo muito duro de ressaca ideológica quando Nikita Kruschev tornou público os “crimes de Stálin” em 1956. Não quero sugerir que o bolchevismo e suas variantes nacionais do século XX tenham sonegado a qualquer ideologia anticapitalista uma chance de emergir, mas penso ser possível afirmar que algo na história de constituição dessas ideias foi simbolicamente barrado à vida de qualquer um desde então. Ainda que seja injusto atribuir à Francis Fukuyama a pecha de apologeta acrítico das democracias parlamentares e do capitalismo, não é errôneo considerar que as formas tradicionais de luta social e política contra o modo de vida burguês realmente perderam sentido. Suas razões podem e devem ser investigadas no plano das estruturas econômicas e suas formas políticas, mas é importante destacar que o marxismo foi certamente evadido da sua histórica autoridade simbólica tanto no enfrentamento das opressões correntes quanto na imagem de futuro que ensejava como alternativa à ordem social capitalista. Transcorrida quase duas décadas no século XXI, resta admitir que a agência política clássica da tradição marxista basicamente caducou.

É bem verdade que o período romântico do socialismo atingiu seu ápice antes mesmo dos anos de 1970 começarem. Analisando Maio de 68, Foucault já sugeria uma conexão entre a ascensão de “novos interesses políticos, culturais, concernentes à vida pessoal” (2015, p.42) e o declínio do marxismo. As circunstâncias daquele momento consentiram ao imaginário anticapitalista um horizonte insurrecional mais amplo, contribuindo para um esforço de reconstrução das formas de vida para além dos limites reconhecidos pela dogmática marxista. Numa palavra, às tarefas postuladas pelo marxismo para a emancipação dos indivíduos, orientadas pela identidade proletária e baseadas na centralidade do trabalho, outra gramática se impôs. Sem necessariamente abrir mão de uma crítica das relações de dominação propriamente burguesas, o repertório anticapitalista acumulou a temática das opressões. Governada por suas palavras de ordem, o pensamento e a práxis anticapitalistas progressivamente incorporaram a noção de que as relações de espoliação econômica ou de exploração do trabalho não deveriam mais permanecer configurando monoliticamente os esquemas de representação do sofrimento das pessoas. Assim que os ideias emancipatórios classicamente regulados pela centralidade do trabalho vieram a ser reconstituídos para uso das lutas sociais contemporâneas com base no universo temático das opressões, e sua relevância pode ser aferida de diversas maneiras até os dias atuais[2].

De fato, houve um período em que o monopólio discursivo exercido pelos temas do trabalho pareceu inibir certa subjetividade anticapitalista, ao passo que pareceu colaborar para a formação de um sindicalismo profundamente conservador. Apesar de percebido esse aspecto da lutas sociais trabalhistas ao modo do período aberto por 1968, o empenho para subtrair-se da centralidade do trabalho para organizar a luta social não fazia parte de uma estratégia política em que os processos de exploração econômica eram necessariamente relegados ao esquecimento, mas certamente expressava uma intenção política que não se permitia mais adstringir por um tipo de “determinismo econômico”. Pois, como é bem sabido, o fascismo do século passado esteve amplamente relacionado às organizações sindicais que se voltaram ao Estado para um projeto de sociedade baseado na ideia de comunidade-nacional. Claro que o sindicalismo não é unívoco e representa em cada época histórica ou contexto social tensões muito diversas, mas certamente estão entre elas àquelas de caráter claramente corporativista[3]. Acomodado ao modo de vida capitalista, acredito que se pode dizer que o corporativismo sindical à forma totalitária mantinha um procedimento de coordenação ideológica orientado pela colaboração econômica e política entre as classes, postulando o poder agregador da divisão social do trabalho para a coesão social da nação. Visto em retrospectiva, eu diria que o corpo social imaginado pela política do sindicalismo totalitário designava uma noção de unidade nacional formada pela resistência à sua intrusão[4].

I

Pode-se dizer que para o conceito de gênero, o corpo é um axioma. Muito embora sejam várias as formas que determinam seu sentido, a força analítica do conceito de gênero para a teoria social crítica funda-se numa ideia de corpo. Embora os estudos em torno do gênero na academia possam ser referidos aos anos de 1980, de acordo com Louro (1992), eles são tributários dos movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970. Apesar dos diversos significados atribuídos ao conceito de gênero, não restam dúvidas de que o feminismo foi o espaço no qual certa “imaginação sociológica”[5] emergiu e se desenvolveu. As lutas protagonizadas pelo feminismo certamente subsidiaram as iniciativas universitárias que procuraram retirar a mulher do lugar de objeto de pesquisa para realocá-la no papel de sujeito da investigação. Pressuposta sua ascendência nos movimentos feministas da segunda metade do século XX, é importante sinalizar que os estudos de gênero suscitaram também uma crítica epistemológica. Para muitos pesquisadores comprometidos com suas temáticas, as tarefas científicas em questão requeriam fortemente uma guinada metodológica, uma vez que os conceitos e categorias reconhecidos como válidos pela academia eram, afinal de contas, determinados pelas relações sociais que combatiam politicamente. Outrossim, a valorização da mulher como agente da ciência dependeria também de um protagonismo feminino que, por sua vez, só poderia ser obtido a partir da exposição crítica do androcentrismo científico, a saber, a colonização conceitual do humano e da realidade pela ideia de masculino.

Os estudos de gênero constituíram não apenas um campo de pesquisa cujo epicentro era as mulheres. O enfoque dos estudos de gênero, como foi construído desde as últimas décadas do século passado, empenhou-se em discriminar sexo de gênero para flagrar os processos de formação do masculino e do feminino nas sociedades. Basicamente, para esses estudos, enquanto sexo se referiria à identidade biológica dos sujeitos, gênero abordaria a construção histórico-social da masculinidade e da feminilidade. A diferença entre essas duas instâncias (sexo e gênero) seria particularmente importante porque, numa palavra, organizaria o campo de enfrentamento contra explicações biologistas das desigualdades entre homens e mulheres. Seguindo Louro, o escrutínio do caráter social do masculino ergueu-se como parte de uma estratégia tanto científica quanto política para o feminismo para desnaturalizar as hierarquias sociais entre os gêneros. Porém, de acordo com a autora, esse ângulo também revelou certos limites à compreensão crítica das articulações possíveis e existentes entre sexo e gênero, pois contribuiu para obscurecer que, afinal de contas, essa construção “implica corpos sexuados” (1992, p.11). Acredito que a autora tem em mente o fato de que o social se inscreve no biológico, ou seja, que o biológico não pode ser simplesmente anulado pelos processos antropomórficos que o social mantém em sua historicidade, muito embora possa ser transformado em larga e profunda medida ao longo do tempo histórico-social. Nesse particular, não ocasionalmente, Louro recorre às investigações de Pierre Bourdieu para tematizar os problemas que envolvem a opressão feminina.

Em A dominação masculina (BOURDIEU, 1999), o autor investiga o que poderia ser sinteticamente definido como “incorporação da dominação” (1999, p.32). Através de considerações epistemológicas críticas à tradição sociológica aberta pelo positivismo de Durkheim, o autor argumenta sobre a construção social dos corpos. Com base num estudo da sociedade cabila, ele descreve como as diferenças entre os sexos, sinalizadas pelos atos sexuais, organizam as práticas dos sujeitos como expressão das distinções anatômicas entre homens e mulheres, e conformam uma cosmologia que ordena as relações sociais e que determina os processos de socialização que constituem a individualidade das pessoas a partir da sexualidade. A significação social constituída pela sexualidade reconhecida pelo sistema classificatório que orienta essas práticas, não apenas polariza o masculino e o feminino como os naturaliza e hierarquiza. Essa cosmologia social baseada na sexualidade então normaliza a relação entre os gêneros, distribuindo o poder social conforme a taxionomia que a estrutura, cuja origem é uma concepção de natureza. Ancorada nas dotações corpóreas características de homens e mulheres, a dominação social de gênero progrediria por expressar a ordem natural. Em seu estudo sobre a sociedade cabila, Bourdieu sugere que certas propriedades físicas (seco/úmido, duro/mole, reto/curvo etc.) terminam por atribuir qualidades simbólicas que motivam a posição social que cada qual ocupa na vida da comunidade, ao passo que ela própria é imaginada como um organismo vivo, cujas necessidades funcionais conferem dependem de cada parte. Nas suas palavras:

“A divisão entre os sexos parece estar na “ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social, e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes.” (1999, p.17)

A abrangência e a profundidade do poder exercido pelos homens nesse sistema social decorreriam de uma estrutura de dominação que dispensaria argumentos de autoridade. Uma vez que expressar uma ordem natural em nível social, a cultura de opressão masculina prescindiria de um discurso, pois a divisão entre os gêneros e suas respectivas funções no emanaria certo logos sexual. Como resultado dessa cosmologia sexualizada que retroalimenta uma visão androcêntrica do mundo e, por conseqüência, elimina os vestígios sociais das relações que os indivíduos mantém entre si e consigo, suas configurações presentes de dominação são naturalizadas ao passado que dão a forma futura das relações sociais vindouras, pois essa estrutura de dominação social de gênero mantém a forma como seus objetos (as pessoas) serão distribuídos em relação a elas. E dado que os significados socialmente valorizados fazem remissão às propriedades atribuídas ao masculino, o feminino tende a representar seu inverso. Por isso que “uma sociologia política do ato sexual” (BOURDIEU, 1999, p.29), segundo o autor, seria sempre bastante instrutiva para esclarecer aspectos fundamentais da dominação masculina em geral.

“Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo – o desejo masculino como desejo de posse, e o desejo feminino como desejo da dominação masculina” (1999, p.31)

Enfatizando que apesar de toda banalização em torno da ideia da construção social do corpo, cujos responsáveis residiriam na tradição antropológica, Bourdieu reafirma sua pertinência para pensar os mecanismos de dominação que estuda. Destacando que as propriedades naturais dos corpos não constituem as relações sociais de dominação, mas que essas distinções físicas se fazem socialmente operantes apenas por meio da simbolização da qual são resultado, Bourdieu afiança que o poder de nomear, representar e interpretar o mundo não é puramente performativo. Como produto arbitrário de certo modo de construir e distribuir o poder social, a dominação de gênero se inscreve como natural para legitimar a si própria como prática entre os indivíduos. Para ele, o trabalho de construção simbólica que institui esse poder realiza transformações profundas, influindo decididamente na experiência do indivíduo consigo e com o mundo. Como condição da própria sociabilidade existente, fundada numa perspectiva androcêntrica da realidade, a hierarquia entre os gêneros autoriza a opressão do feminino pelo masculino, com base numa certa simbolização dos sexos. Consciente de que o caso da sociedade cabila poderia ser objetado como insuficiente para descrever o modo de vida nos Estudos Unidos da América ou na Europa, Bourdieu segue citando estudos sobre o sexismo dessas sociedades. Refletindo sobre uma forma de coação social que incide sobre os corpos, o autor passa a enumerar as conquistas obtidas pelas mulheres nessas sociedades para destacar seus contrapesos. O autor põe-se a identificar alguns traços no nível da cultura que certamente informam uma autonomização relativa da mulher nessas sociedades em termos comparativos para pensar a condição feminina. Seguindo Bourdieu nesse particular, embora o vestuário feminino em sociedades ocidentais certamente não seja regulado por códigos como a charia[6], comum à muitos países de cultura muçulmana, é mais que correto afirmar que seus corpos são coercitivamente regulados (essa situação paradoxal de liberdade e opressão no ocidente desenvolvido no que se refere às relações sociais entre os gêneros, a meu ver, pode ser criticamente imaginada através figura jurídica do usufruto, uma vez que as mulheres parecem ser pessoas a quem são cedidos o corpo que habitam, já que é relativamente flagrante o limite a que estão submetidas quanto aos modos para usá-lo).

De maneira geral, o argumento desenvolvido por Bourdieu sobre a opressão masculina serve para enfatizar o caráter simbólico da dominação que as mulheres estão submetidas em sociedades de cultura androcêntrica. O que não significa que as leituras tradicionais críticas sobre as formas de dominação social sejam descartadas pelo autor por supostamente serem comprometidas com uma noção mais restrita de violência. De muitos modos, análises como as de Bourdieu permitiram enriquecer a antiga as teses de que as relações sociais estão constituídas por formas de poder, acrescentando maior extensão ao argumento de que elas formam o fundo essencial de toda sociabilidade da qual emergem as pessoas e suas individualidades. A dominação masculina como uma estrutura social de poder, cujo núcleo central consiste uma visão androcêntrica do mundo, ancora uma divisão sexual que é o próprio meio através do qual é conformado o sentido de toda vida social. Dito de outra maneira, o recurso conceitual à ideia de violência simbólica no tocante à dominação masculina tem a pretensão de revestir de inteligibilidade os processos sociais de opressão em geral, que sonegam não apenas às mulheres o reconhecimento do sistema social de opressão no qual estão inseridas, mas também aos homens. E ainda permitiria vislumbrar suas formas de superação.

II

Acredito que não custa muito para se notar a extensão política da ideia de violência simbólica para uma interpretação crítica da sociedade moderna, assim como suas conexões ou afinidades com a tradição marxista. Decerto que o marxismo é consciente do fato de que as relações sociais na sua forma propriamente efetiva estão armadas por dimensões materiais e espirituais, por assim dizer. Entretanto, a ideia de que “o desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico etc. se funda no desenvolvimento econômico” (ENGELS, 2010, p.104-105) parece ter contribuído para que se conserve uma desconfiança acumulada contra o marxismo onde quer que haja uma audiência aberta à noção de uma forma dominação social construída pela simbolização do mundo. O que quero dizer é que para além de qualquer solidariedade ou aproximação, parece certo que a militância e o ativismo atual exibem sem constrangimento todo tipo de resistência ao discurso marxista. Para mim, um aspecto central envolvido nessa disjunção ou tensão sobre o modo como o marxismo imagina as relações sociais de poder e dominação decorre da sua resistência em rever não a apenas sua natureza ou forma, mas a noção de sujeito articulada pelo seu ponto de vista. Apesar de diversos esforços para reafirmar seu aporte às lutas sociais, acredito que a legitimidade contemporânea do marxismo tem coincidido com sua disposição em “ampliar” sua noção de sujeito. Já que o marxismo realmente existente, aquele que se reconstrói através dos escombros do chamado socialismo real, não tem podido mais declarar impunemente a classe trabalhadora como o ator dos processos políticos de emancipação social.

Essa necessidade é visível dentro do marxismo de vários jeitos. Em 1991, Mauro Iasi abordou essa questão. Assentindo ao entendimento de que nem Marx ou Engels formularam uma teoria sobre a opressão da mulher e que foi no limite do nulo a contribuição do socialismo histórico à dissolução da cultura de opressão machista, ele resgata o argumento implícito de todo marxismo de que a emancipação das mulheres envolve sua realização como trabalhadoras para anunciar o equívoco que precisaria ser deslindado. Inicialmente, Iasi considera que os estudos marxistas sobre a questão de gênero permitiram que o próprio marxismo reorganizasse sua teoria das relações sociais entre as classes no capitalismo. De acordo com ele, as feministas que buscaram o marxismo cooperaram para a revitalização da “totalidade” e da “dialética” perdidas pela tradição, restituindo sua atualidade política e teórica para as lutas sociais contemporâneas. Com elas, prossegue Iasi, pôde-se ampliar o conceito marxista de classe social, resgatando a essência do pensamento de Marx, livrando-o do chamado economicismo. Evidente que Iasi sublinha que o feminismo serve aos objetivos da emancipação social imaginada pelo marxismo tanto quanto for capaz de fazer a mediação entre o “particular” e o “universal”, i.e., reconhecer que a transformação da condição de vida das mulheres depende da transformação geral da sociedade. Ao mesmo tempo, o autor enfatiza a necessidade dos homens em reconhecer o caráter distintivo da opressão feminina no capitalismo, cobrando estes para que assumam “perspectiva feminista, por seus próprios interesses” (1991, p.8). No entanto, o que permanece subjacente à sai reelaboração acerca da maneira como a tradição marxista pensa a questão das opressões em geral, e em particular a questão da violência de gênero, é exatamente aquilo que tem motivado toda sorte de recusa da esquerda pós-URSS ao marxismo. Mas o que Iasi não pôde notar na operação de revisão do conceito de dominação de classe que postula, inelutavelmente matizado pelo reconhecimento de antagonismos de natureza econômica, é que a dominação de gênero apenas tem redimensionada e aprofundada sua subsunção ao marxismo. Não sobrando então nada mais para a teoria social e política comprometida com a temática do gênero que um novo patamar no interior de uma estrutura de invisibilidade[7]mantida pelo ponto de vista marxista e suas temáticas clássicas.

Acredito que as preocupações de Iasi podem ser postas às pesquisas de Saffioti, apesar da evidente distância entre os autores quanto ao tema. A obra da autora contribuiu para que os estudos de gênero conquistassem espaço na academia, mas também relevância política entre a esquerda identificada com o marxismo. Mais precisamente, as pesquisas de Saffioti consolidaram um importante campo de reflexão para quem identifica na articulação entre os discursos marxista e feminista um proveitoso ângulo à tematização da dominação social. Embora Saffioti indique que estudos marxistas possam ser incapazes de apanhar conceitualmente as formas de violência que se abatem sobre as mulheres nas sociedades capitalistas, a autora fornece um ponto de vista crítico aos estudos de gênero. Como marxista, Saffioti esforçou-se para marcar como o sistema de pensamento inaugurado por Marx poderia instruir às feministas aos seus fins. As críticas dirigidas pelo feminismo ao marxismo são desfeitas pela autora não por uma adesão ingênua ou dogmática à hipótese da “luta de classes”, mas para afirmar que “as classes sociais são, desde sua gênese, um fenômeno gendrado” (2004, p.115). Longe de qualquer reducionismo econômico, a autora identificou na sociabilidade capitalista as estruturas de dominação que respondem pela violência de gênero. Suas elaborações sobre o conceito de patriarcado evidenciam o enfoque que orienta seu modo de abordar a violência masculina contra a mulher no contexto histórico da sociedade moderna. Para Saffioti, decerto que a cultura patriarcal determina as relações sociais, conduzindo a um processo de dominação e exploração. Mas, a seu ver, “as bases material e social do patriarcado” (2004, p.123) escoram os mecanismos de submissão feminina à ordem masculina na sociedade moderna, de tal maneira que o sexismo machista não pode ser identificado como um puro preconceito cultural ou algo de antiquado: deve-se afirmar sua serventia aos interesses das classes sociais dominantes. O vetor dominação-exploração indicado por Saffioti pode ser pensado como um expediente para articular gênero e classe em sua teorização sobre a condição da mulher no capitalismo. O pensamento da autora compreende a determinação econômica, marcada por relações sociais de exploração da força de trabalho, mas não negligencia o caráter qualitativo do tipo de coerção que se impõe às mulheres. Através da chave dominação-exploração, em um sentido preciso, está sugerida uma crítica ao que seriam unilateralidades tanto marxistas quanto feministas.

Apesar de exemplos como esse, não é preciso muito para reconhecer que ainda sim o marxismo não tem fornecido o ponto de vista mais abrangente sobre o debate de gênero na atualidade, mesmo quando sujeitos envolvidos nessa discussão o absorvem e o depuram dos “desvios” e “vulgaridades” (que eles mesmos acusam). É bem verdade que uma fundamental tensão continua progredindo entre marxistas e feministas, ainda que haja inúmeras concordâncias consagradas sobre o entrecruzamento do universo de problemas que analisam e combatem. Sem me alongar nesse tópico, eu concluiria que toda resistência ao marxismo se relaciona ao seu gesto de identificar na exploração da força de trabalho o elemento que articula todas as formas de violência, inclusive àquelas que envolvem o gênero. Por isso que ao insistir na hipótese da luta de classes para pensar as formas de opressão que transitam na época burguesa, o marxismo pensa a questão de gênero nos marcos da emancipação dos trabalhadores, e suscita o mesmo tipo de crítica que imagina superar quando faz suas revisões (por vezes, meramente protocolares). Acredito que seja correto dizer que por persistir na centralidade do trabalho, convertendo-a como a causa imanente de todas as lutas sociais, é que a tradição marxista tem se tornado progressivamente menos relevante junto aos movimentos de dissenso contemporâneos, apesar das organizações ou discursos trabalhistas tradicionais ainda encontrarem uma forma eventual de importância.

Ocorre que parte significativa do esforço para constituir uma nova subjetividade anticapitalista, que inclusive reconheça o problema da espoliação econômica assinalada pelas teorias da exploração do trabalho, devém do que poderia ser indexado como centralidade do corpo[8]. Para não me perder na extensão de um inventário dos discursos e comportamentos políticos anticapitalistas contemporâneos essencialmente afinados à ideia de que o corpo é central, faço referência às palavras de Lohana Berkins[9], para quem o corpo “é o bem mais absoluto que temos” (2000, p.5). A meu ver, a verdade ecoada por assertivas dessa natureza são subjacentes a toda noção política identitária. Mais precisamente, me parece que em razão da centralidade do corpo é que os discursos identitários anticapitalistas são muitos sensíveis ao argumento da diferença. Para a esquerda pós-URSS, cronologicamente anterior ou posterior ao fracasso do socialismo histórico do século passado, é fundamental que uma alteridade deve ser reconhecida. Assim sendo, ao seu modo de ver, recusar o marxismo como uma teoria sobre a dominação social significa abandonar a ideia de que conceitos sobre classes sociais sejam capazes de nomear o modo como os indivíduos sofrem ou esperam viver com base em sua própria experiência social. Ao relativizar a capacidade da subjetivação política pela via das lutas no contexto dos conflitos capital-trabalho, a esquerda contemporânea pretende não apenas ver como as pessoas seriam realmente, mas estar aberta à noção de que os indivíduos possam representarem a si próprios, inclusive para resistir aos riscos totalitários de subsumir as pessoas às abstrações despóticas de uma ideia[10]. Mesmo que os processos de exploração sejam declarados como politicamente válidos para orientar a luta social, atualmente é comum que se parta do princípio que uma identidade de classe é sempre menos potente do que qualquer outra forma de representação política. Desde a politização da vida privada dos anos de 1960, que trouxe para a cena pública demandas estranhas ao universo de reivindicações trabalhistas, pelas quais a construção e reconhecimento da identidade de mulheres, negros e homossexuais consolidou-se como essenciais à sobrevivência da esquerda anticapitalista, o marxismo tem procurado acrescer à sua noção de sujeito o que aumente sua cotação política, ideológica e social para circular como discurso útil sobre o mundo. Os estudos de Helena Hirata sobre a interdependência das relações sociais entre raça, sexo e classe indicam a relevância das identidades sociais, e sinalizam algumas dessas condições contemporâneas à política emancipatória. Abordando essa articulação, reconhecidamente movente e produzida tantos pelos indivíduos quanto pela sociedade, Hirata lembra com base no “conceito de conhecimento situado ou de perspectiva parcial da epistemologia feminista” (2014, p.61) que:

“A interseccionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais.” (BILGE, 2009 apud HIRATA, 2014, p.62)

Claro está que a implícita resistência contemporânea da esquerda anticapitalista à ideia de política trabalhistas ou classistas não está baseada numa defesa da desigualdade social. Para ela, a desigualdade pode ser aferida como expressão de relações sociais hierarquizadas, geradas inclusive por processos econômicos de exploração, mas a busca da igualdade substantiva como uma alternativa para a vida social não pode direcionar para a supressão da diferença. Para esse ponto de vista, considera-se que uma experiência política emancipatória envolve o reconhecimento dos singulares, como se a capacidade de refletirem as individualidades que a compõem funcionasse como a causa do sentido que carregam. Numa palavra, os processos de transformação social radical se tornam funções para o reconhecimento do indivíduo porque, afinal de contas, se o mundo é resultado de suas práticas não existem razões para que a realidade os negue esse espelhamento. Assim, eu diria que comum nessa operação é a noção de protagonismo, para qual não há nenhuma política possível para além da representação. Vale destacar que essa noção é tão corrente que seções politicamente muito distintas das lutas sociais críticas à exploração econômica do trabalho podem basear-se igualmente nesse princípio sem qualquer prejuízo do antagonismo que mantém entre si. Para ficar em um exemplo e não estender-me mais nessa digressão, basta atinar que a importância da ideia de representação pode ser notada tanto numa iniciativa do Ministério da Cultura de um governo petista para promover a visibilidade da mulher negra[11]quanto na aproximação da CSP-Conlutas ao movimento LGBT[12].

III

Havendo algum sentido no que sugeri sobre a possível ou provável natureza das tensões entre a tradição marxista e as lutas sociais contemporâneas, restaria considerar em que medida a novidade discursiva e política conduzida pela esquerda pós-URSS abriu uma nova época às ideias e práticas emancipatórias. Nesse sentido, eu destacaria que o discurso marxista também consiste uma forma de reivindicação social erigida sob o princípio do reconhecimento. A meu ver, a própria noção de exploração da força de trabalho quando vista à luz da clássica ideia marxista de alienação tem esse princípio implícito ao seu argumento. Bom modo de entrever a correção do que estou buscando sinalizar é pensar na maneira como a noção de “direito ao produto integral do trabalho” defendida por Anton Menger como instrumento de luta socialista à classe trabalhadora foi criticada por Engels e Kautsky (2012): à medida que se concentra na sua forma jurídica para acusá-la como estratégia política errônea, a subscreve como discurso político correto sobre a autoridade social dos trabalhadores. Quer dizer, sem questionar que o trabalho é a fonte de toda riqueza social em geral, fica explícito o reconhecimento de que os trabalhadores constituem o grupo social antagônico ao capitalismo. O dispêndio (laborativo e intelectivo) empregado na produção econômica permite que a classe capitalista enriqueça através dos bens produzidos pela força de trabalho, mantida sob seu controle em razão do monopólio que a classe exerce sobre os meios de produção. Ao impedir que os trabalhadores tenham a propriedade daquilo que usam para produzir, os capitalistas erigem seu poder sobre eles, os submetendo à produtividade que lhes convém mediante uma remuneração (que pode ser estimada como a expressão monetária do que é sonegado ao trabalhador). Apesar de sumária, me parece que essa descrição guarda o essencial de todo o marxismo sobre o problema da exploração econômica, e reflete a chamada centralidade do trabalho.

Portanto, a superação da sociedade capitalista envolveria o reconhecimento de que o trabalho é a origem da riqueza social, de forma que os sujeitos dessa atividade, a saber, os trabalhadores, sejam tratados na prática social como tais, não mais tendo apropriado por um estranho aquilo que lhes é próprio. Em outras palavras: se a vida social resulta da atividade dos sujeitos, o modo de produção que os relaciona deve expressar suas necessidades; uma vez que se subtraia do sistema social a exploração da força de trabalho, que é arranjada política, econômica, ideológica, culturalmente etc. pelos capitalistas para dominar os trabalhadores, a sociedade progrediria em conformidade com os anseios, desejos, fantasias, enfim, dos trabalhadores. Exatamente o contrário do que ocorre no capitalismo, cuja produção não espelha os produtores, mas apenas a compulsão por acúmulo daqueles que dela usufruem monopolísticamente. O conflito entre os capitalistas, que perseguem seus objetivos particulares, e os trabalhadores, que vêem sua atividade criadora ser “aprisionada”, derivaria da contradição entre o modo de produção e as relações sociais de produção organizadas na época burguesa, que sonega aos trabalhadores o reconhecimento e autoridade social sobre sua propriedade.

Se a tradição de pensamento econômico e político marxista poderia ser assim descrita, à luz dos problemas abordados nesse texto, valeria mencionar argumentos defendidos por Moishe Postone, para quem o socialismo prefigura “uma sociedade em que o trabalho, desimpedido das relações capitalistas, estrutura abertamente a vida social, e a riqueza que cria é distribuída de forma mais justa” (2014, p.24). No entanto, para o autor, as diversas correntes políticas e tendências teóricas no interior do marxismo teriam interpretado de modo desajustado à Marx a natureza do trabalho no capitalismo, motivando profundas distorções. De acordo com ele, Marx não atribuiu ao trabalho o papel de fonte da riqueza social para além das circunstâncias históricas especificamente capitalistas. Na sua reinterpretação categorial do pensamento de Marx, o autor afirma que a noção de que o trabalho constitui a vida social deve ser restringida ao contexto histórico capitalista. Declarando que o marxismo tradicional[13] termina por deslocar a crítica marxiana do modo de produção capitalista para uma crítica da forma de distribuição, uma vez que estabelece o trabalho como o centro de toda vida social em qualquer época histórica e enfatiza a desigualdade social, Postone indica que essa abordagem trata a dominação social no capitalismo de maneira muito distinta de Marx. A seu ver, com base nos seus estudos sobre os Grundrisse (1857-1858), onde a teoria social marxiana seria mais acessível do que n’O capital (1867), o núcleo fundamental do capitalismo não reside na contradição entre as forças produtivas e as relações sociais postas pelo modo de produção capitalista (sob a forma da propriedade privada e do mercado), mas no contraste entre o valor e a riqueza material. Para qualificar a estrutura de dominação própria à moderna sociedade capitalista então seria necessário apanhar não como a riqueza circula, mas como ela é produzida: nas condições históricas e sociais propriamente capitalistas, a riqueza é constituída pelo trabalho e tem a forma do valor. Sinalizando com Marx que se as formas da riqueza são historicamente específicas, elas não podem ser as mesmas em todas as sociedades, o autor indica que a abolição do valor (forma social da riqueza no capitalismo) significaria que o tempo de trabalho humano deixaria de servir como medida para a criação da riqueza social. Nesse caso, a superação da alienação determinada pela exploração do trabalho na sociedade capitalista teria um sentido muito diverso, pois envolveria a própria suspensão do trabalho como fonte de valor. Nas suas palavras:

“A superação do capitalismo, como apresentada nos Grundrisse, envolve implicitamente a superação dos aspectos formais e materiais do modo de produção firmado no trabalhado assalariado. Ela deverá resultar na abolição de um sistema de distribuição baseado na troca de força de trabalho, como uma mercadoria, por um salário, com o qual se adquirem os meios de consumo […] Em outras palavras, a superação do capitalismo envolve também a superação do trabalho concreto executado pelo proletariado.” (2014, p.44)

Para os fins desse texto, é interessante notar que a reinterpretação categorial proposta por Postone indica que a teoria social de Marx promove uma crítica da forma como a produção se desenvolve no capitalismo e não do modo como ela é apropriada.  Ao contrário da tradição marxista, Marx não indica uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho, mas faz uma crítica do trabalho no capitalismo. O que permitiria então afirmar que a centralidade do trabalho devém da natureza das relações sociais capitalistas, ao invés de ser pervertida por elas. Com efeito, todo o projeto de crítica da economia política de Marx não envolve uma glorificação do trabalho, mas sinaliza o exato oposto. Numa palavra, porque o pensamento marxiano trata o valor como uma categoria social e historicamente própria do capitalismo, o trabalho analisado por Marx está no centro de sua teoria críticas obre a moderna sociedade capitalista. Por isso, a seu ver, o pensamento de Marx teria mostrado que não é possível caracterizar ou conceituar as relações sociais tipicamente capitalistas sob o enfoque dos antagonismos entre as classes. Para Postone, e isso seria particularmente fundamental ante ao fracasso do socialismo real, cujo arranjo social distinguiu-se exatamente pelo fim das classes e da propriedade privada, a dominação social no capitalismo não decorre dos conflitos entre pessoas, grupos sociais ou classes em relação aos produtos do trabalho, mas consiste na dominação dos indivíduos pelas estruturas sociais que constituem através da organização de toda vida social por meio do sistema social erigido pelo trabalho.

Nesse sentido, a compreensão de Marx sobre a dominação social no capitalismo informa que a subordinação dos indivíduos a outros não está referida a vínculos de dependência pessoal (baseados em costumes, tradição ou cultura, como ocorria em épocas históricas passadas). Ao contrário, a conexão social entre os indivíduos na moderna sociedade capitalista arma sua forma social de dominação à custa de sua singularidade: como ninguém produz tudo o que precisa ou quer para si mesmo, a produção de cada qual está condicionada pela produção de cada um – por isso que muito embora a propriedade privada dos meios de produção e a distribuição desigual tanto do poder político quanto da riqueza socialmente produzida figure com destaque na teoria marxiana do modo de produção de capitalista, elas não seriam o seu cerne:

“A dependência recíproca e multilateral dos indivíduos mutuamente indiferentes forma sua conexão social. Essa conexão social é expressa no valor de troca, e somente nele a atividade própria ou o produto de cada indivíduo devêm de uma atividade ou produto para si” (2011, p.105)

Por essa razão, acompanhando Postone, se deveria atinar que a análise de Marx sobre a dominação social na modernidade capitalista representa o desenvolvimento de seus estudos sobre o tema da alienação. Postone acredita que apenas em sua fase madura, quando devidamente ambientado aos temas da economia política, é que Marx pôde notar que a propriedade privada não é causa, mas a conseqüência do trabalho alienado e, por conseguinte, que a superação do capitalismo não está condicionada à eliminação da propriedade privada, mas à dissolução das relações sociais que a tornam possível. Sua teoria sobre as estruturas sociais capitalistas e sua dinâmica histórica, pressupondo inclusive a existência das classes e do antagonismo de interesses entre elas face aos bens produzidos pela divisão social do trabalho, não pode ser entendida sob o enfoque da exploração da força de trabalho, ainda que sem dúvida possa esclarecê-la em larga medida. De acordo com Postone, seria então o caso de compreender que:

“Não apenas uma teoria da exploração, ou do funcionamento da economia restritivamente entendida, a teoria crítica do capital de Marx é uma teoria da natureza da história da sociedade moderna […] a teoria desenvolvida sobre alienação implica que Marx via a negação do núcleo estrutural do capitalismo como aquilo que permite a apropriação do povo dos poderes e conhecimentos historicamente constituídos de forma alienada.” (2014, p.48)

Se assim, seria possível admitir que a exploração é uma categoria subordinada à dominação na teoria social marxiana. De acordo com Duayer (2011), levando em consideração que as ideias fundamentais que orientaram as experiências socialistas (desenvolvimento econômico, igualdade, socialização dos meios de produção, distribuição de renda etc.) foram articuladas categorialmente pela exploração, e que elas ainda predominam entre os marxistas pós-URSS sem qualquer efeito teórico ou prático mais relevante às lutas sociais contemporâneas, convém restituir o tema da emancipação social em Marx. O autor afirma que embora o problema da emancipação humana tenha sido progressivamente posto de lado pela tradição marxista, talvez por considerá-lo “especulativo” ou “filosófico”, deve-se afirmá-lo como o núcleo da teoria marxiana porque, afinal de contas, assim está indicado por seus escritos. Ponderando que se trata de uma categoria que não pode ser omitida em qualquer abordagem de Marx, Duayer sugere que mesmo n’O capital esse é o tema fundamental, e que figura logo em seus primeiros capítulos. Partindo do modo como procede a própria análise de marxiana, ele indica, sumariamente, o seguinte: a troca mercantil pressupõe a conexão dos indivíduos como trabalhadores, proprietários que trocam o produto de seu trabalho; dado que trocam, tem-se que os trabalhadores não produzem tudo o que consomem, do contrário lhes bastaria consumir o que produziram; como os produtos de seus trabalhos individuais precisam ter um uso qualquer para um terceiro, o intercâmbio mercantil devém socialmente arranjado, aonde cada um deve participar para poder existir socialmente; uma vez que o sentido da produção é a troca, tudo o que os produtores produzem tem serventia para si na medida em que puder ser trocado; assim é que cada produtor busca com sua atividade acessar a riqueza criada socialmente, com base naquilo que produziu; tendo em vista que todos são proprietários de uma mercadoria e participam de um sistema social de troca, os produtores visam trocar seus produtos por outros equivalentes, ainda que distintos; como estão desvinculados entre si, apenas por meio da troca é que os indivíduos asseguram os meios para sua subsistência, mas também os meios para continuarem a produzir; portanto, os indivíduos visam produzir riqueza ao máximo que puderem para terem a possibilidade de terem para si o máximo da riqueza produzida por outros, de tal modo que a produção crescente decorre como o núcleo da própria produção; o que, por sua vez, reveste o sistema social capitalista de uma qualidade espontânea e impessoal de dominação[14].

Por isso, de acordo com Duayer, “a categoria da exploração, a despeito de sua relevância e objetividade, não é a categoria fundamental” do pensamento de Marx (2011, p.95). Compartilhando com Postone o essencial de seu argumento, i.e., que a superação da sociabilidade capitalista não pode ser identificada com a apropriação do valor, mas por sua substituição por outra forma de riqueza social, Duayer imagina que a emancipação social deixa de coincidir com a realização do trabalho. Assim interpretado, eu diria que seria possível dizer que a suspensão das estruturas sociais típicas do capitalismo não serve para o reconhecimento do trabalho como fonte de riqueza social. Segundo Duayer, com base numa interpretação particular da ontologia lukacsiana, Marx veria o trabalho como fundante, mas não central para o ser social. Exatamente porque o ser social cria as condições para sua reprodução, de acordo com Duayer, a esfera que o funda não pode ser considerada central no curso de seu desenvolvimento (2012, p.46).

Considerando o que busquei sugerir nesse texto, o problema do reconhecimento é parte estruturante dos discursos políticos marxistas tradicionais tanto quanto dos críticos anticapitalistas pós-soviéticos. Ocorre que para além de haver uma afinidade em comum entre os modos como cada um desses pontos de vista imagina a dominação e opressão social, à luz dos comentários que tentei articular com base na análise postoneana, a tarefa real das lutas emancipatórias consistiria em pensar para além do princípio do reconhecimento. Apesar de certamente ter sido apressado na evolução do argumento, o que quero dizer é que a forma abstrata da dominação social na modernidade tem como pressuposto o reconhecimento de que as pessoas são distintas e singulares entre si. Sendo assim, não se tratando mais de postular um indivíduo cujas qualidades devem ser valorizadas, seja seu corpo ou sua força de trabalho (aliás, qual a diferença?), acredito que a real questão não envolve a satisfação das necessidades de reconhecimento emergidas do contexto em que elas virão a ser e são frustradas, mas na constituição de um mundo em que tais necessidades simplesmente percam seu atual sentido, e desejos outros então ganhem forma.

Vale conferir a posição de autores como Agamben, Badiou, Rancière e Zizek, para quem comunismo é o nome de uma ideia. Assumindo que impera uma completa desorientação sobre o que queremos ao negarmos o capitalismo hoje, ao mesmo tempo em que somos governados pelo fantasma imobilizar do totalitarismo, o pensamento que enunciam corresponde a um sentido de urgência peculiar. Ainda que possa soar inadequadamente enigmática, eu diria que se toda política esquerdista realmente existente se adstringe nas muitas formas sociais possíveis ao indivíduo, talvez haja um comunismo do impossível em que a operação emancipatória real não sente como totalitário aquilo que é estranho à sua individualidade.


[1] Em 1997, pesquisadores e professores franceses e anticomunistas escrevem O livro negro do comunismo. Em 1998, pesquisadores e professores franceses lançam O livro negro do capitalismo.

[2] Atílio Boron dá eco a essa verdade quando sugere sexismo em Marx e Engels (2001, p.67). De maneira distinta ao argumento por ele, que é importante referência teórica para o pensamento social crítico latino-americano, o Richard Rorty pôs o feminismo da virada do milênio no mesmo lugar ocupado pelo movimento de ideias representado pelo comunismo do século XIX (2010, p.228).

[3] As considerações de Gramsci sobre o que chamou de “catarse” são um modo de tematizar esse problema à luz do marxismo. Para ele, a constituição do bloco histórico revolucionário derivaria em parte da passagem do momento “egoístico-corporativo” para o “ético-político”. Esse movimento subjetivo da classe trabalhadora envolve o deslocamento de reivindicações próprias à ordem para outras que a transcendem. O exemplo histórico de Gramsci para qualificar seu conceito é o próprio sindicalismo operário italiano.

[4] Um modo clássico para pensar a relação entre o movimento de massas e o totalitarismo no século XX está consagrado nos estudos de Hanna Arendt. Seguindo a autora, o totalitarismo poderia ser encarado como o gesto político de dissolução dos particulares (as classes), cujo universal (para o fascismo, a Natureza; para o bolchevismo, a História) suprime o singular (o indivíduo).

[5]Termo usado por Charles Wright-Mills para designar a atitude sociológica correta para distinguir o olhar comum do crítico em relação aos fenômenos da vida social.  Apesar da ingenuidade positivista subjacente à sociologia do autor, a expressão pode ilustrar a ideia de que a compreensão da realidade cotidiana exigiria algo mais do que uma leitura cotidiana.

[6] Código social extraído do Direito Islâmico para o modo de vida muçulmano, cuja fonte é o Corão.

[7] Vale notar que apesar da diferença temporal, o discurso de Alexandra Kollontai para trabalhadores na Moscou em 1918 é contemporâneo de Iasi. A líder revolucionária bolchevique cobrava que o proletariado soviético, finalmente reconhecido em seus direitos pela abolição da propriedade privada e o fim da exploração capitalista da força de trabalho, reconhecesse que as mulheres permaneciam “subjugadas ao trabalho doméstico, como escravas dentro da própria família” no socialismo.

[9] Militante social transgênero argentina e militante do Partido Comunista local, fundou em 1994 Associação de Luta Pela Identidade Travesti e Transexual (ALITT).

[10] No argumento de Badiou, a hipótese comunista, que é uma operação intelectual, envolve a reconstrução da significância política da ideia de verdade para a emancipação coletiva –ainda que, e exatamente por isso, prepondere entre a opinião pública que o “despotismo da Ideocracia” tenha sido o motor conceitual dos regimes totalitários do século XX (2012, p.131-132).

[11] Ver em: http://goo.gl/oXu6Vd.

[12] Ver em: http://goo.gl/dhUpbm.

[13] Como Perry Anderson (2004), Göran Therborn (2012) etc., Postone reconhece as diversas escolas que compõem historicamente o marxismo. Sem prejuízo de suas diferenças internas ou particularidades, o autor argumenta que toda tradição marxista, não importando se “clássica” ou “ocidental”, analisa o capitalismo do ponto de vista do trabalho e compreende as relações de classe, sinalizadas pela propriedade privada dos meios de produção, como essenciais à moderna sociedade capitalista.

[14] Sem discorrer sobre as inúmeras elaborações de Marx sobre a subordinação do capitalista ao automovimento do valor (2013, p.229-230), sem a qual ele não pode realizar seus interesses de acúmulo, me parece conveniente interpretar que ao dizer que não tratou com “cores róseas” sua pessoa, Marx estaria se “justificando” ao trabalhador por não ter atribuído ao capitalista a opressão que é exercida sobre o trabalho.


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