Quem tem o direito de trazer as más notícias à público?

Por Slavoj Žižek, via RT, traduzido por Bernardo Neves

Há uma década, quando o WikiLeaks explodiu na cena mundial, ele fez parecer por um instante que a internet poderia criar uma verdadeira open society. Daí em diante, o Big Brother passou a reagir.


Todos os dias, nos deparamos com reclamações sobre o crescente controle das mídias digitais, não raro, vindas de pessoas que aparentam crer que a concepção original da internet sempre foi um tipo de espaço público de liberdade não-regulamentada.

Bem, vamos relembrar as origens da internet. Na década de 1960, o Exército dos EUA estava refletindo sobre formas de manter a comunicação entre unidades sobreviventes no caso de um ataque inimigo que destruísse o comando central. Daí surgiu a ideia de conectar lateralmente as unidades dispersas, contornando a centralidade (eventualmente destruída).

Assim, desde o início, a internet continha um potencial democrático, pois permitia múltiplas trocas diretas entre unidades individuais, contornando o controle central e sua coordenação – essa característica inerente representava certa ameaça aos que estavam no poder. Como resultado, a principal decisão foi controlar as nuvens digitais que mediam a comunicação entre os indivíduos.

As nuvens, em todas as suas formas, são apresentadas como facilitadoras certeiras de nossa liberdade. Afinal, elas possibilitam que eu me sente na frente do PC e navegue livremente em tudo o que está lá fora à nossa disposição – ou assim parece na superfície. No entanto, quem controla as nuvens também controla os limites de liberdade.

Ocultando o controle remoto

A forma mais imediata desse tipo de controle é, naturalmente, a exclusão: indivíduos e organizações de jornalismo (como TeleSUR, RT, Al Jazeera, etc.) podem desaparecer por inteiro da mídia (ou ter seu acesso limitado) sem que qualquer explicação razoável seja dada – experimente encontrar o Al Jazeera na TV de um hotel dos EUA – geralmente são citadas apenas questões técnicas.

Já em outros casos a censura é justificada (em casos de racismo, por exemplo), o que é perigoso quando a censura não é transparente. Isso porque a demanda minimamente democrática que deveria ser aplicada é que a censura seja transparente, ou seja, com justificativa pública. Mas é claro que essas justificativas também podem ser ambíguas e ocultarem suas verdadeiras razões.

Na Rússia, você pode ser mandado para a cadeia por postar na internet coisas que você mesmo reprova veementemente. O exemplo mais recente é o da professora de jardim de infância, Eugenia Chudnovets, sentenciada em Ekaterinburg a cumprir a cinco meses de prisão por compartilhar um vídeo em que uma criança é molestada em um acampamento de verão. No dia 06/03/2017, a condenação foi anulada. Chudnovets havia sido condenada por um artigo que proibia “divulgar, expor publicamente ou propagar dados ou itens que contenham imagens sexualmente explícitas de crianças ou menores de idade“. Ela foi condenada por ter compartilhado em uma rede social o vídeo em que se vê um menino nu sofrendo abuso em um acampamento infantil no município de Kataisk, na região de Kurgan. A própria professora explicou que não podia deixar que o incidente flagrante passasse despercebido – e ela estava certa. Porque o que fica claro é que a verdadeira razão de sua condenação não foi impedir a circulação de pornografia infantil, mas encobrir o abuso que ocorreu em instituições públicas com tolerância do Estado.

Memória histórica

No entanto, não podemos descartar este caso como algo que só pode acontecer na opressiva Rússia de Putin – encontramos exatamente o mesmo raciocínio no primeiro caso famoso de censura em mídias sociais, quando o Facebook, em setembro de 2016, decidiu remover a fotografia histórica de Kim Phuc, a garotinha de nove anos fugindo do ataque de napalm. Dias depois, após um clamor público, a imagem foi restabelecida.

Olhando para trás, é interessante notar como o Facebook defendeu sua decisão de remover a imagem: “Embora reconheçamos que essa foto é icônica, é difícil criar uma distinção entre permitir uma fotografia de uma criança nua em uma circunstância e em outras não.” A estratégia é clara: o princípio moral genérico e neutro (sem crianças nuas) é evocado para censurar uma lembrança histórica dos horrores do bombardeio de napalm no Vietnã. Em uma situação limítrofe, esse mesmo raciocínio poderia ser usado para justificar a proibição dos filmes gravados após a libertação de Auschwitz ou outros campos nazistas.

E, incidentalmente, algo semelhante aconteceu comigo repetidamente dois anos atrás, quando, em minhas conferências, descrevi o estranho caso de Bradley Barton de Ontário, Canadá, que em março de 2015, foi considerado inocente do homicídio qualificado de Cindy Gladue, uma indígena trabalhadora do sexo que sangrou até a morte no Yellowhead Inn em Edmonton, após sofrer um ferimento de 11cm em sua parede vaginal. Os advogados argumentaram que Barton cometeu um homicídio culposo durante sexo violento mas consensual com Gladue, e o tribunal concordou.

Como se não bastasse, este caso não apenas contraria nossas intuições éticas mais básicas: um homem assassina brutalmente uma mulher durante atividade sexual, mas está à solta porque “não foi isso que ele quis fazer“. O aspecto mais perturbador deste caso é que, aceitando a demanda da defesa, o juiz permitiu que a pélvis preservada de Gladue fosse admitida como prova. Foi levada ao tribunal, para ser exibida aos jurados, a parte inferior de seu torso (aliás, esta é a primeira vez que a parte de um corpo foi apresentada em um julgamento no Canadá). Por que as fotografias da ferida não seriam o suficiente?

Melhor ficar calado

Mas o que quero dizer aqui é que fui repetidamente atacado por meu relato sobre esse caso: a crítica era que ao descrever o caso eu o reproduzia, e assim, o repetia simbolicamente. Embora o compartilhasse com forte desaprovação, supostamente eu permitia que meus ouvintes encontrassem um prazer perverso nisso.

E esses ataques contra mim exemplificam muito bem a necessidade “politicamente correta” de proteger as pessoas de notícias e imagens traumáticas ou perturbadoras. Meu contraponto é que, para combater tais crimes é preciso apresentá-los em todo o seu horror, é preciso se chocar com eles.

Em outra era, em seu prefácio de ‘Revolução dos Bichos’, George Orwell escreveu que, se liberdade significa alguma coisa, significa “o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir” – essa é a liberdade da qual somos privados quando a mídia é censurada e regulamentada.

Estamos presos na digitalização progressiva de nossas vidas: a maioria de nossas atividades (e passividades) agora está registrada em alguma nuvem digital que nos avalia permanentemente, rastreando não apenas nossos atos, mas também nossos estados emocionais. Quando nos sentimos no mais alto grau de liberdade (navegando na internet onde tudo está disponível), somos totalmente externalizados e sutilmente manipulados.

Assim, a rede digital dá um novo significado ao velho slogan, “o pessoal é político“. E não é apenas o controle de nossa vida íntima que está em jogo: tudo hoje é regulado por alguma rede digital, do transporte à saúde, da eletricidade à água.

E é por isso que hoje a web é o nosso bem comum mais importante, e a luta por seu controle é a luta do nosso tempo. E o inimigo é a combinação de entidades privatizadas e controladas pelo Estado, corporações (como Google e Facebook) e agências de segurança de Estado (como a NSA).

A network digital que sustenta o funcionamento das nossas sociedades, bem como seus mecanismos de controle, é a imagem derradeira da rede técnica que sustenta o poder, e é por isso que recuperar o controle sobre ela é nossa primeira tarefa.

O WikiLeaks foi apenas o começo, e nosso lema agora deveria ser um lema maoísta: que cem WikiLeaks desabrochem.

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