De como não ler Marx ou o Marx de Sousa Santos

Por José Paulo Netto, via ODiário.info

Boaventura Sousa Santos, um sociólogo erudito e prolixo, cultiva uma imagem progressista fundamentalmente enganadora. A sua influência suporta-se em retórica em circuito fechado no seio acadêmico, e em suposta sabedoria transcendente na arena do circuito dos movimentos sociais. Neste ensaio, o comunista brasileiro José Paulo Netto arranca-lhe a máscara.


Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra é, atualmente, a personalidade mais internacional dentre os intelectuais portugueses vivos (mais conhecido do que ele, apenas o escritor comunista José Saramago).

O renome de Sousa Santos não é fruto do acaso: se tem a ver com a sua intervenção cívica no interior do campo democrático e progressista, seja no marco de movimentos sociais, seja noutros espaços políticos (comenta-se que, no seu segundo mandato presidencial, Mário Soares o tinha como conselheiro pessoal), é sobretudo resultado de um intenso e múltiplo exercício teórico e analítico. Figura central na institucionalização da Sociologia no Portugal pós-salazarista, pesquisador incansável e organizador científico, Sousa Santos vem contribuindo significativamente no debate contemporâneo das ciências sociais, percorrendo um leque temático extremamente amplo, que envolve da discussão epistemológica à abordagem renovada de complexos como os da cidadania e do Direito. Sua obra, ensaística e sistemática, divulgada em revistas especializadas de vários países (inclusive do Brasil, onde já fez investigações e tem estado com freqüência) e em livros (publicados em vários idiomas), é ponderável – cf., entre outros, Santos, 1988, 1989, 1990, 1991 e 1995a -, e carrega uma marca muito peculiar: a erudição de que se satura vincula-se a uma prosa clara, meridiana transparente, vinculação (diga-se de passagem incomum no universo contemporâneo das ciências sociais) que, para além dos seus méritos inerentes, garante-lhe uma comunicabilidade excepcional. Prova incontestável desta qualidade foi o êxito de Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade – livro que, absoluto sucesso de vendas em Portugal [1], viu-se em seguida editado no Brasil (Santos, 1995) [2].

Trata-se de um instigante conjunto de ensaios, reunindo, ademais de trabalhos inéditos, estudos publicados em periódicos (de vários países: Portugal, Brasil, Itália, Estados Unidos, Uruguai) entre 1985 e 1993 – porém, se cada texto pode ser tomado em sua singularidade, claramente demarcada pela imediata diversidade de objetos (da realidade portuguesa à crise mundial da instituição universitária, da relação Estado/sociedade civil às questões da cidadania, subjetividade e emancipação, da função utópica à pós-modernidade, da sociologia dos tribunais à globalização da economia), nenhum deles é escrito de ocasião: todos expressam momentos constitutivos da reflexão sistemática de Sousa Santos.

Esta reflexão sistemática incide sobre o que o autor considera a transição paradigmática própria do fim do século XX, envolvente de dois processos, naturalmente conectados: a transição epistemológica (vale dizer: do paradigma da “ciência moderna” ao da “ciência pós-moderna”) e a transição societal (vale dizer: entre diferentes modos básicos de organizar e viver a vida em sociedade). Se o primeiro de tais processos, que parece a Sousa Santos mais evidente e explícito, ocupou-o predominantemente até a entrada dos anos 90, em Pela mão de Alice … ele nos apresenta os resultados iniciais de suas pesquisas sobre o segundo. Tais resultados, diz-nos o autor, “apesar de fragmentários, têm alguma consistência global”, resumindo “a investigação e a reflexão que foram sendo feitas ao longo dos últimos anos” (Santos, 1995: 9).

Vê-se, pois, que este é um livro de importância particular na dinâmica intelectual do autor – e, nele, a discussão do legado de Marx tem uma relevância específica, ainda que o espaço a ela dedicado seja dos mais econômicos [3]; entretanto, e a despeito dessa economia, Sousa Santos julga haver procedido aí a um balanço geral da proposta de Marx” (idem: 243) e, já por isto,um “balanço” merece especial cuidado.

Uma leitura muito simplória do marxismo

Pela mão de Alice … compreende três partes: na primeira, intitulada Referências, Sousa Santos, em dois compactos capítulos, faz “uma reflexão sobre das referências teóricas que têm pautado a [sua] investigação” (idem:10). Na segunda, Condições de inteligibilidade, composta de quatro capítulos, o centro é a “análise de alguns dos aspectos da crise da modernidade enquanto paradigma societal” (idem, ibidem). Enfim, na terceira parte, Cidadania, emancipação e utopia, ordenada também em quatro capítulos, “a análise combina-se com a prospectiva” (idem: 11).

A riqueza temática do livro, já assinalada, distribui-se equilibradamente pela segunda e terceira partes e de modo tão orgânico que ao leitor mais atento pode mesmo escapar o fato de elas se constituírem de ensaios originalmente autônomos – o que, além do mais, testemunha a coerência intelectual de Santos, bem como atesta sua castigada artesania formal.

Mas é indubitável a importância da primeira parte, com seus dois densos e econômicos capítulos. Se o sugere o próprio título (Referências), comprova-o o sentido que Sousa Santos lhes confere: sobre o primeiro (“Cinco desafios à imaginação sociológica”), diz o autor que, nele, “formulo algumas das minhas perplexidades analíticas perante as transformações sociais neste final do século e enuncio as vias por que se podem traduzir em motivos de criatividade sociológica” (idem: 10); quanto ao segundo (”Tudo que é sólido se desfaz no ar: o marxismo também?”), Sousa Santos não é menos direto – afirma ele:

“No segundo capítulo, procedo a uma avaliação do marxismo enquanto tradição teórica da sociologia com o objetivo de distinguir as áreas ou dimensões em que continua atual, e eventualmente mais atual que nunca, daquelas em que está desatualizado e deve, por isto, ser profundamente revisto, senão mesmo abandonado” (idem, ibidem).

Parece inteiramente legítimo inferir, então, que a “avaliação” efetuada por Sousa Santos determina a sua posição relativamente a incorporar, e em que medida, ou não as referências marxistas ao seu instrumental heurístico e/ou, eventualmente, às suas prospecções sócio-interventivas (como veremos adiante, Sousa Santos sustenta a diferencialidade do estatuto dessas duas operações). Ora, a “avaliação” em tela, Sousa Santos realiza-a em dois movimentos diversos: o primeiro consiste em um excurso sobre a história do marxismo [4] e o segundo numa interlocução com o que se lhe afigura o núcleo central da obra marxiana. Comecemos pelo primeiro movimento.

Sousa Santos traça o que se poderia chamar, com excessiva boa-vontade, de uma sinopse crítica do desenvolvimento do marxismo, do final do século XIX à década de 80 do século XX, organizando-a em quatro períodos, aos quais oferece tratamento bem diferenciado.

O primeiro cobriria os anos de 1890 a 1920, configurando o que “pode ser considerado a idade de ouro do marxismo” (idem: 24) [5]; o autor crê, repetindo palmar constatação, que “a riqueza da reflexão marxista tem obviamente a ver com a pujança do movimento socialista neste período” (idem: 25). Ele destaca duas grandes cisões do período: a política, inaugurada com o debate acerca das proposições de Bernstein, e a epistemológica, sinalizada pelo neokantismo dos austro-marxistas (aliás, bastante valorizados por Sousa Santos), cuja “concepção cientista e sociologizante do marxismo foi fortemente contestada [depois de 1917] por teóricos tão diversos como Korsch, Lukács e Gramsci” (idem: 25-26) [6].

Os anos 30 e 40 constituem, na seqüência, “um período negro para o marxismo” (idem: 26). A combinação fascismo/stalinismo responderia, de um lado, pela difícil sobrevivência, na clandestinidade e no exílio, dos austro-marxistas e da Escola de Frankfurt e, de outro, pelo fim da reflexão teórica “com a liquidação de Plekhanov, Bukharin, Riazanov, Trotsky” (idem, ibidem) [7]. No imediato seguimento desta afirmação, Sousa Santos acrescenta, evidentemente referindo-se ao marxismo no Leste europeu, que aquela reflexão teórica nunca mais renasceu.

O terceiro período, conforme o sociólogo português, envolveria os anos 50-70 – ele entende que, “a partir dos anos 50, o pensamento marxista renasce com vigor, iniciando uma fase brilhante que se prolonga até o final da 70″ (idem, ibidem). Tangenciando os processos sociais que sustentam tal renascimento, Sousa Santos aponta seus frutos nos países periféricos [8],” lista seus desdobramentos nos países capitalistas avançados – com o desenvolvimento de “uma sociologia marxista de muitos matizes”? [9] e de “uma historiografia brilhante de inspiração marxista” (idem: 28) [10] e, na área continental da Europa Ocidental, destaca que esse movimento se expressa no “marxismo ocidental”, que se evidenciaria em “duas grandes orientações”: a “teoria crítica da Escola de Frankfurt” e o “marxismo estruturalista francês” (idem: 27) [11].

Finalmente, o quarto período, referido aos anos 80, marcaria “a década o pós-marxismo”: para Sousa Santos, “a solidez e a radicalidade do capitalismo ganhou [sic] ímpeto para desfazer o marxismo no ar” (idem: 29). Depois e arrolar os debates que lhe parecem os fundamentais do decênio [12], ele considera que ocorre nos países centrais “a dissolução do marxismo”, enquanto, na periferia, “a sociologia de inspiração marxista continuou a produzir reflexões e análises valiosas” (idem:31) [13]. Arrematando, o autor constata que “o perfil pós-marxista da década de 80 tem um traço fundamental: é anti-reducionista, antideterminista e antiprocessualista” (idem, ibidem) [14] perfil este que, destacando do “interior da teoria marxista” o debate sobre “a tensão ou equilíbrio entre estrutura e ação”, acabará por privilegiar, nestes anos, uma “leitura antiestrutural”, claramente oposta àquela predominante na década de 60 (privilégio visível, por exemplo, no marxismo analítico de um J. Elster) [15].

Aqui, Sousa Santos suspende o seu “breve excurso pela tradição teórica marxista” (idem: 32), para depois interpelando ao próprio Marx avançar no sentido de indagar se o legado de Marx tem algum futuro. Trata-se mesmo de um breve excurso e seria tolice, senão mesquinhez, reclamar do que “falta” numa sinopse que não se alonga por mais de dez páginas. Com efeito, não teria o menor cabimento exigir do autor o que ele não se propôs a oferecer Sousa Santos não prometeu uma síntese histórico-crítica do marxismo, absolutamente inviável, mesmo em suas linhas fundamentais, no espaço de que se valeu e na direção dos seus interesses.

Todavia, ainda que nos situemos no interior dos quadros dessa sinopse com seus limites explícitos, formais e temáticos, não há como ladear o seu caráter tosco e insuficiente para subsidiar mesmo a mais esquemática “avaliação do marxismo enquanto tradição teórica da sociologia” (idem: 10). Realmente, como entender que:

a) ao abordar a “idade de ouro” (1890-1920), Sousa Santos não diga uma só palavra sobre os impactos da Revolução Russa no movimento socialista, sem os quais a dinâmica da reflexão teórica nos anos 20 (e não só) é incompreensível?

b) nessa mesma abordagem, Sousa Santos não se atenha minimamente sobre o que representaram os trabalhos (que, aliás, cita) de Korsch, Lukács e Gramsci, largando de mão, precisamente, a base de grandes polêmicas dos anos 20 (e, também, não só deles), cujos núcleos problemáticos percorreriam boa parte do marxismo posterior? [16]

c) ao mencionar (nos anos 30-40) a razia efetuada pelo stalinismo, Sousa Santos afirme que a reflexão marxista no Leste europeu tenha sido ferida a ponto de “nunca mais renascer”, equalizando tudo sob “o pesadelo stalinista” (idem: 26) e descurando por completo certos desenvolvimentos particulares, como, por exemplo, na Hungria e na Polônia e, ainda, nas então Iugoslávia e Tchecoslováquia? [17]

d) com sua ênfase sociológica, Sousa Santos não se refira absolutamente, ao cuidar do terceiro período (anos 60-70), à contribuição essencial que, nesta etapa e nesta área, foi oferecida por Henri Lefebvre ou pelos marxistas italianos?

Observe-se que não estou, reitero, questionando omissões – exceto na indagação contida em d) [18] explicáveis e compreensíveis num “breve excurso”. O que coloco em causa é, em a), um viés analítico que não contempla absolutamente nenhuma dimensão do processo que, instaurando a fratura de maior magnitude no movimento socialista, condicionaria largamente os rumos posteriores da tradição marxista; em b), a incrível superficialidade no trato de autores e obras emblemáticos e paradigmáticos dos dilemas da tradição marxista a partir do primeiro pós-guerra; em c), uma afirmação factualmente insustentável acerca do evolver do pensamento marxista no interior dos países anteriormente ditos socialistas.

Em suma, a minha crítica não incide sobre as escolhas, os cortes, enfim a seleção a que Sousa Santos obrigou-se pela natureza sinótica do seu “breve excurso”: o que é débil e frágil é o tratamento teórico-crítico que conferiu ao objeto desse excurso do qual resulta uma leitura vulgar e muito simplória da tradição marxista. Resultado não só injustificável, quando se conhece o talento do autor e se reconhece a riqueza do objeto, mas sobretudo inepto para fundar qualquer apreciação séria do legado marxiano no século XX.

Mas o traço de vulgaridade que recobre todo esse primeiro movimento da “avaliação” de Sousa Santos não pode ser posto na conta de um eventual deslize do autor ele me parece remeter a algo mais substantivo, a que retornarei adiante. Por agora, ocupo-me do segundo movimento de Sousa Santos, quando ele se dirige ao próprio Marx.

O Marx de Sousa Santos: receita nova, pudim velho

Sousa Santos interpela a obra de Marx num espaço em que, de novo, há que conceder excessivamente à capacidade de síntese do autor, uma vez que não gasta mais de treze páginas com objeto de tamanha magnitude a partir da “condição do presente” (idem: 33). Já assinalei que, para Sousa Santos, essa condição se caracteriza por uma dupla transição paradigmática, a epistemológica e a societal e é nessa dupla dimensão que ele apreciará a obra marxiana.

No campo dos que sustentam a exaustão do “paradigma da Modernidade”, Sousa Santos distingue (numa operação que, aliás, se encontra em outros analistas) duas concepções diferentes: de um lado, há aqueles para os quais o exaurimento da Modernidade significa o colapso final de suas promessas, de quaisquer objetivos transistóricos, com as práticas sociais das sociedades contemporâneas não tendo mais qualquer alternativa está aqui o “pós-modernismo reconfortante ou de celebração” (idem: 35), seguramente portador do neoconservadorismo outrora denunciado por Habermas; doutro, localizam-se os que arguem a Modernidade seja cultural, seja sociopoliticamente, verificando “que as promessas da Modernidade, depois que essa deixou reduzir suas possibilidades às do capitalismo, não foram nem podem ser cumpridas (idem, ibidem), porém demandando uma nova epistemologia e uma nova socialidade tem-se aí o “pós-modernismo inquietante ou de oposição” (idem, ibidem), no qual Sousa Santos se vê inscrito. É claro que, para o “pós-modernismo de celebração”, não se põe o problema de um projeto societário distinto ao do capital (nele, a história chegou, fukuyamamente, ao fim); assim, a dupla dimensão da transição paradigmática só se coloca para a vertente “inquietante”.

Curiosa, mas explicavelmente, a distinção entre as duas vertentes Sousa Santos assevera, expressamente, que são antagônicas (idem, ibidem), posição que está longe de ser inteiramente fundada [19] se esbate inteiramente no nível da teoria do conhecimento quando se trata de apreciar Marx. Segundo Sousa Santos, para o “pós-modernismo de celebração”, “o marxismo nada tem a contribuir” (idem, ibidem); mas, também para o próprio autor, “no plano epistemológico, o marxismo pouco pode contribuir para nos ajudar a trilhar a transição paradigmática” (idem, ibidem). Tem-se, aqui, um “antagonismo”… relativo! A explicação reside, a meu ver, não apenas num viés irracionalista que permeia ambas as posições, [20] mas na concepção, de fato esposada pelos dois “pós-modernismos”, do “paradigma da ciência moderna” com que operam [21].

O conceito de paradigma, se pode ter alguma valia quando se trata de abordar o desenvolvimento das ciências que têm por objeto a realidade do ser natural, enferma de inteira imprestabilidade quando é deslocado para a apreciação do evolver do conhecimento do ser social (recorde-se, aliás, que o responsável pela divulgação do conceito no conhecido A estrutura das revoluções científicas, Kuhn (1972), mostrou-se muito cético quanto à sua aplicabilidade nas ciências sociais, consideradas por ele como “pré-paradigmáticas”) [22]. Ora, Sousa Santos desenvolve urna elaborada versão do “paradigma da ciência moderna” que estende tranquilamente da análise das “ciências duras” às ciências sociais e, nessa translação, tal “paradigma” se converte num instrumento de redução indiferenciada que equaliza todo o século XIX, enfiando no mesmo saco da “ciência moderna” seja a lógica hegeliana, o sistema categorial de Marx ou as tipologias durkheimianas (Weber, naturalmente, tem aí um enquadramento difícil, até porque, na corrosiva ironia de Mészáros [1996: 198 e ss.], é um homem para todas as estações). Nesse reino de absoluta indiscriminação, praticamente toda construção teórica (insista-se nesta qualificação: teórica) do século XIX, e não só, é subsumida na razão puramente instrumental e, pois, repugna à “sensibilidade pós-moderna”, seja ela “reconfortante” ou não.

A determinação fundamental da qual parte Sousa Santos para interpelar Marx situa-se neste marco. Afirma o autor:

“Marx demonstrou uma fé incondicional na ciência moderna e no progresso e racionalidade que ela poderia gerar. Pensou mesmo que o governo e a evolução da sociedade podiam estar sujeitos a leis tão rigorosas quanto as que supostamente regem a natureza, numa antecipação do sonho, mais tarde articulado pelo positivismo, da ciência unificada” (idem, ibidem).

Este é o Marx de Sousa Santos — um positivista avant la lettre, um pré-Durkheim edulcorado por uma perspectiva “utópica” (e de um “utopismo” insuficientemente radical’) [23], este é o Marx que, com a facilidade viabilizada pelo desprezo à textualidade e à documentação, todos os pós-modernos consideram um personagem do Jurassic Park.

Para esse gênero de consideração reducionista e equalizadora, as reiteradas e enfáticas notações marxianas sobre o caráter tendencial e histórico das leis histórico-sociais (sistematicamente constitutivas do pensamento de Marx e explicitadas, pelo menos, a partir da Miséria da filosofia) são desimportantes. É desimportante que a determinação da “ciência única” a história apareça num contexto (a célebre passagem de A ideologia alemã) onde está subjacente a problemática da humanização da natureza [24]. Igualmente, a complexa noção marxiana de progresso é convenientemente vinculada às concepções positivistas de determinismo e evolução, como se nota no conjunto da “avaliação” de Sousa Santos aqui devemos nos deter minimamente.

O fulcro desta “avaliação” encontra-se numa passagem de Pela mão de Alice situada fora do capítulo que é objeto do meu rápido exame polêmico, mas que subsidia e complementa admiravelmente. Nela, Sousa Santos afirma, com a sua prosa sempre clara e inequívoca, que

“o erro de Marx foi pensar que o capitalismo, por via do desenvolvimento tecnológico das forças produtivas, possibilitaria ou mesmo tornaria necessária a transição para socialismo. Como se veio a verificar, entregue a si próprio, o capitalismo não transita para nada senão para mais capitalismo. A equação automática entre progresso tecnológico e o progresso social desradicaliza a proposta emancipadora de Marx e torna-a, de fato, perversamente gêmea da regulação capitalista” (idem: 243).

Nesta passagem, a única referência verdadeira é a que diz respeito a que, do movimento do capitalismo, entregue a si mesmo, só pode derivar mais capitalismo como, aliás, sobejamente o sabia Marx (não fosse por outra razão, ele considerava a organização da vontade política dos proletários absolutamente indispensável para a transição socialista e, conseqüente com esta convicção, foi um incansável organizador dos trabalhadores); todo o resto da passagem é falso:

1. não se pode sustentar seriamente, a partir de uma leitura rigorosa de Marx, a hipótese de um desenvolvimento “automático”, “natural” e/ou “espontâneo” da força produtiva engendrada pelo “desenvolvimento tecnológico”. De 1847 a 1867 (passando pelas longas disquisições dos Gründrisse…), Marx insistiu suficientemente em que o caráter revolucionário do capitalismo designação, aliás, pouco utilizada por ele no que toca ao desenvolvimento das forças produtivas vincula-se às lutas entre capital e trabalho: é esse antagonismo radical, cuja solução socialmente progressista depende do nível de consciência e intervenção sociopolítica dos trabalhadores, que leva o capital à inovação científico-tecnológica. Vê-se como o Marx real se distingue do Marx de Sousa Santos: nas mãos deste, o primeiro teórico socialista a pensar o condicionamento sociopolítico do desenvolvimento científico-tecnológico se converte num vulgar apologista do “determinismo tecnológico”;

2. leitura similar desautoriza liminarmente imputar a Marx uma pretensa “equação automática entre o progresso tecnológico e o progresso social”. Bem ao contrário, no conjunto da obra marxiana o que é enfaticamente destacado é que, nos quadros de uma sociedade dinamizada por contradições de caráter antagônico, o desenvolvimento social (que, isto me parece incontroverso, para Marx supõe desenvolvimento de forças sociais produtivas) implica sistematicamente componentes de barbarização [25]. A noção de progresso no Marx dos textos autógrafos, ao contrário do que nos propõe a visada de Sousa Santos, contempla sempre, numa ordem social como a capitalista, uma contraface que a divorcia de qualquer visão unidimensional.”

Por isto, seja a “fé incondicional na ciência moderna”, que Sousa Santos atribui a Marx, seja a “fraternidade” que vê entre sua proposta de emancipação e a regulação capitalista mostram-se, tal como as concebe o ilustrado sociólogo lusitano, completamente insustentáveis.

Sumario, antes de prosseguir. No marco da transição paradigmática, do ponto de vista epistemológico, Marx e, no fim das contas, segundo Sousa Santos, isto vale para qualquer pós-modernismo, seja o “reconfortante”, seja o “inquietante” se desfez no ar. Cabe avançar, então e, como vimos, esse avanço só tem cabimento para o pós-modernismo esposado por Sousa Santos, isto é, o “inquietante” para a consideração de Marx do ponto de vista da transição societal. No capítulo de Pela mão de Alice … de que me ocupo, Sousa Santos afirma que, ao contrário do que ocorre no interior do “pós-modernismo de celebração”, para a sua posição pós-moderna cabe interpelar a Marx, posto que ao “pós-modernismo de oposição” torna-se

“essencial a ideia de uma alternativa radical à sociedade atual, e Marx formulou, mais coerentemente que ninguém, uma tal alternativa. A questão está, pois, em saber em que medida a alternativa de Marx, que é tão radicalmente anticapitalista quanto é moderna, pode contribuir para a construção de uma alternativa assumidamente pós¬moderna” (idem: 36).

Um crítico inscrito ainda no “decadente” paradigma moderno poderia indagar se vale a pena, para Sousa Santos, debruçar-se sobre a prospecção societal de um analista cujos referenciais teórico-metodológicos o anacronizam face da transição epistemológica pois é este, justamente, o caso de Marx para o sociólogo de Coimbra. Mas o problema não se coloca para Sousa Santos: como antecipei rapidamente, ele também aqui se opõe às “ciências sociais da modernidade”, que, de acordo com ele, tenderam a situar num mesmo campo gnosiológico as operações de explicação/compreensão da sociedade e de detecção da direção da transformação social; conseqüentemente, o autor acredita que “a sociologia [sic] de Marx é, em geral, coerente com a utopia [sic] de Marx, mas não se confunde com ela” (idem, ibidem). Assim, Sousa Santos se põe a buscar a resposta sobre a eventual atualidade de Marx para uma alternativa societal.

E fá-lo questionando a contribuição de Marx em três “áreas temáticas: processos de determinação social e autonomia do político; ação coletiva e identidade; direção da transformação social” (idem, ibidem). Nas “três áreas”, que a reflexão de Sousa Santos procura explorar (idem: 33-45), a “avaliação” procedida pouco salva além de um Marx utópico (aliás, repita-se, insuficientemente utópico…):

1. no que tange aos processos de determinação social, para além de protocolares reverências ao tônus da análise marxiana, Sousa Santos considera (sem deixar aqui de mão o “determinismo” e o “evolucionismo”) que ela enferma de um insustentável “reducionismo econômico” (idem: 38). É claro que, tomando a teoria social de Marx como uma teoria fatorialista (o “econômico”, o “político”, o “cultural”) e, em resumidas contas, é assim que Sousa Santos a visualiza (idem, ibidem), fica relativamente fácil tergiversar e escamotear a concreta análise marxiana das determinações econômico-políticas que é simplificada em termos de “base/superestrutura”. Evidentemente, para argumentar em torno desse “reducionismo econômico”, Sousa Santos elude o rico arsenal heurístico que Marx apurou ao largo de seu itinerário de pesquisa (se, para um pós-moderno, compreende-se que totalidade cheire a “totalitarismo”, é menos compreensível a nenhuma alusão ao conceito, aliás operativo, de formação econômico-social);

2. quanto ao nó ação coletiva e identidade, a problematização de Sousa Santos (idem: 39-42) é pertinente e merece uma análise cuidadosa, que não cabe nos limites desta nota polêmica. Ainda que se discorde da sua interpretação sociopolítica acerca do protagonismo da classe operária no processo de transformação da ordem burguesa e da sua apreciação sobre a precisão das antecipações de Marx quanto ao destino das classes no evolver do capitalismo, as questões que coloca referentes tanto à ênfase marxiana nas classes como princípio “explicativo” e como princípio “transformador” são inegavelmente legítimas e instigantes [27], na medida em que assinalam dilemas ainda em aberto e para os quais o recurso a Marx freqüentemente se revela uma forma de ladear o impostergável exame de realidades novas [28];

3. no que se refere à direção da transformação social, Sousa Santos anota que a

“ideia de Marx de que a sociedade se transforma pelo desenvolvimento de contradições é essencial para compreender a sociedade contemporânea, e a análise que fez da contradição que assegura a exploração do trabalho nas sociedades capitalistas continua a ser genericamente válida. O que Marx não viu foi a articulação entre a exploração do trabalho e a destruição da natureza e, portanto, a articulação entre as contradições que produzem uma e outra” (idem: 44 – grifo não original; cf., supra, notas 24 e 25).

Eis por que, segundo Sousa Santos, entre outras razões, a “utopia” que atribui a Marx é insuficientemente radical e, pois, inadequada para subsidiar a transição paradigmática societal esta exige a “utopia ecológica e democrática” (idem: 43), com a qual se alinha o autor [29].

Ao fim de sua “avaliação”, Sousa Santos nos oferece um Marx que, referência das ciências sociais (aqui, não se esqueça, a impostação é sociológica) e objeto de evidente respeito e simpatia, não passa pelo crivo crítico do “pós-modernismo de oposição” também no território sociopolítico, enfermado que está seu pensamento de “determinismo”, “evolucionismo” e “reducionismo”. E, emblematicamente, não se concede ao infeliz Marx qualquer benefício de dúvida ou ambiguidade sequer a existência de tensões internas no seu pensamento, como as explorou, por exemplo, Alvin W. Goudner: Sousa Santos provavelmente considera como residuais possíveis ambiguidades ou tensões na obra marxiana [30].

Ora! o fato é que, à parte aqueles respeito e simpatia, a leitura de Marx por Sousa Santos, aparentemente sofisticada e reveladora de interesses analíticos renovados, apresenta resultados extremamente similares aos já centenariamente divulgados pela grossa maioria dos cientistas sociais que, entre outras coisas, notabilizam-se pela sua plena integração ao establishment. Correndo o risco de cometer uma indelicadeza formal, a leitura de Marx por Sousa Santos pode ser caracterizada como uma receita nova – com ingredientes como Modernidade, paradigma etc. que culmina na feitura de um pudim cujo gosto se conhece há muito determinismo, evolucionismo, reducionismo econômico. Os habituados aos velhos confeitos da Teoria Sociológica de terno e gravata sabem que as guloseimas oferecidas por N. Timasheff não tinham outro sabor.

Em síntese: uma análise incompetente

Não é necessária nenhuma argúcia especial para concluir, a partir dessa “avaliação do marxismo enquanto tradição teórica da sociologia”, ou deste “balanço geral da proposta de Marx, que a contribuição marxiana e/ou marxista para o enfrentamento da “transição paradigmática” contemporânea configura um aporte pouco mais que medíocre Sousa Santos não o diz expressamente, mas há passagens, em Pela mão de Alice…, das quais se pode inferir que o pobre Marx, para além da sua “utopia” (que, como vimos, nem suficientemente “radical” é)! Não tem serventia maior que Weber e Durkheim [31].

É preciso deixar muito claro que são secundárias, a esta altura, as opiniões e apreciações de Sousa Santos sobre Marx e a tradição marxista; que ele, como todos e qualquer um de nós, é livre para emitir quaisquer juízos de valor sobre ambos, seja enquanto cidadão, seja enquanto intelectual – papéis que, como sabemos, se entrecruzam sem se confundir. Mas parece não haver muita dúvida de que o papel do intelectual exige modos de argumentação mais rigorosos para validar tais juízos. E é exatamente aqui que se põe o problema da “avaliação” de Sousa Santos: a sua análise da teoria marxiana é de todo incompetente para fundar uma interpretação que dê conta, minimamente, da fecundidade ou não daquela teoria para enfrentar os grandes desafios contemporâneos. Com efeito, o Marx de Sousa Santos justifica a tese de que,

“se a modernidade se torna hoje mais do que nunca problemática, o marxismo será mais parte do problema que defrontamos do que da solução que pretendemos encontrar” (idem: 35).

Entretanto, já salientei quão distintos são o Marx de Sousa Santos e o Marx real, verificável nos textos autógrafos.

Com franqueza, repito: independentemente dos limites a que se impôs, a análise que, em Pela mão de Alice…, Sousa Santos nos oferece de Marx e sua tradição é uma análise incompetente: se apanha alguns elementos significativos e lacunas reais da teoria marxiana (como indiquei), repete lugares-comuns insustentáveis (dos quais o mais tolo é a acusação acerca do “reducionismo”).” faz afirmações completamente absurdas (como aquela sobre “a equação automática entre progresso tecnológico e progresso social”) e elude convenientemente importantes tematizações marxianas (como as referidas à relação sociedade/natureza). Presta, com isto, dois enormes desserviços à investigação: de um lado, reforça preconceitos ignorantes em face da teoria marxiana; de outro, não contribui para que a pesquisa identifique o que, nessa teoria, efetivamente perdeu atualidade e validez. No fim das contas, é quase inacreditável que um intelectual do nível e da qualidade de Sousa Santos que, por outra parte e como assinalei, revela-se capaz de análises finas e sugestivas possa nos apresentar um Marx tão deformado e empobrecido e um marxismo tão miserável.

Mas quando um autor competente como Sousa Santos tanto se expõe numa análise assim incompetente, há que buscar razões de fundo para isto.

Se se podem invocar causas e motivos de ordem episódica e pessoal (pressa em publicar textos? passageira ausência de autocrítica?), eles não parecem procedentes em referência a um acadêmico responsável como o pesquisador em tela. Aqui deve haver algo mais substantivo que meras idiossincrasias, mais relevante que um ou outro preconceito, mais importante que um controle maior ou menor sobre tal ou qual obra de Marx. E quer-me parecer que o busílis da questão (para retomar a expressão tão cara ao velho Florestan) reside no tratamento teórico-crítico que Sousa Santos dedica a Marx e à tradição marxista.

Nas páginas de Pela mão de Alice… o que é fundante na análise que Sousa Santos faz da teoria marxiana (e da tradição marxista) é uma concepção convencionalíssima da obra de Marx, que teria criado, “ainda que de modo não sistemático, uma nova teoria da história, o materialismo histórico” (idem: 36), a partir do qual se viabilizariam cortes científicos e ideais particulares donde Sousa Santos possa referir-se à “sociologia” e à “utopia” de Marx, como poderia referir-se a uma “filosofia”, a uma “economia” etc. Ou seja: a concepção de Sousa Santos projeta sobre a obra marxiana a divisão das “ciências sociais oitocentistas”, apanhando nela os recortes teórico-científicos que mais lhe convêm (no caso, a ênfase numa “sociologia”). Está claro que, com este procedimento, o que não se resgata da teoria social de Marx é justamente aquilo que lhe é mais visceral e medular: seu caráter unitário e totalizante/totalizador, embasado numa ontologia do ser social – a partir da crítica da economia política historicamente constituído no mundo do capital.

O procedimento é tão velho quanto a própria sociologia (como disciplina científica institucionalizada). E vem sendo histórica e sistematicamente reiterado (inclusive por marxistas) mas nada disto o torna legítimo, ainda que coberto de créditos acadêmicos. Que os sociólogos (bem como outros cientistas sociais especializados) dos mais diversos matizes tenham se inspirado em Marx e/ou nele recolhido indicações teóricas e analíticas e que, no interior mesmo da tradição marxista, se tenham gerado correntes sociológicas não afeta a substância da questão que, como Lukács indicou já em 1923, consiste na relação de excludência entre a teoria marxiana da sociedade burguesa e o discurso de uma ciência social especializada qualquer. Numa formulação mais precisa, o mesmo Lukács (1968, cap. VI) esclareceu o fulcro da questão: o estatuto original da sociologia repousa no corte entre relações sociais/relações econômicas, com a explicação sociológica das primeiras prescindindo da análise das segundas (que, então, se remetem a outra ciência especializada, a economia) [33]. Ainda que os praticantes do que Florestan chamou de “sociologia crítica” (ou “radical”) tenham e venham procurando romper com este corte e esta procura é sensível em Sousa Santos [34], o quadro estrutural-categorial próprio da reflexão sociológica (como de qualquer ciência social especializada) os compele a encontrar na crítica da economia política e na crítica das relações econômicas empiricamente dadas quando muito as famosas (e engelsianas) “determinações em última instância”.

Sousa Santos, indiscutivelmente, é um sociólogo “crítico” (ou “radical”) e, como todos os sociólogos “críticos”, procede sobre a estrutura categorial própria à sociologia donde a inapreensão do caráter unitário da teoria social marxiana com a (pres)suposição dos seus níveis “sociológicos”, “econômicos”, “utópicos” etc., posto que a pense à moda das “ciências sociais oitocentistas” (idem: 38). É por esta razão que ele pode fazer um “balanço” do marxismo como tradição sociológica sem discutir minimamente o estado da crítica da economia política marxista (que, obviamente, é matéria da “economia”, não da “sociologia”) [35]. É esta a razão que faz este “olhar sociológico” converter a teoria social de Marx numa enciclopédica teoria fatorialista do “econômico”, do “social”, do “político” etc.. E é evidente que, sob tal luz, as determinações complexas, bem como os seus igualmente complexos sistemas de mediações, que articulam a totalidade concreta que é a sociedade burguesa passam a oferecer o espaço ideal seja para a construção reflexiva de determinismos simplistas, seja para a postulação, também puramente reflexiva, de autonomias relativas (”regionais”?) que terminam por se hipostasiar [36], Assim, é óbvia a dificuldade para recuperar, no plano do pensamento, as concretas interdeterminações e mediações entre os vários níveis, instâncias e esferas constitutivos da sociedade – dificuldade que, às vezes, se converte mesmo em impossibilidade [37].

É este trato sociológico da teoria marxiana que responde substantivamente (ainda que não exclusivamente) pela flagrante debilidade do “balanço geral” com suas conseqüências na decorrente “avaliação” que, em Pela mão de Alice, Sousa Santos exercita pobre e esquematicamente. Trato que está longe de comprometer a Marx e à tradição (teórico-prática) a ela afeta. Antes, pela enésima (mas não última) vez, comprova que o “olhar sociológico”, ao vestir a obra de Marx com a mesma sobrecasaca de Durkheim e Weber, comporta-se diante dela como o verme drummondiano que, partilhando da “alegria de zombar dos mortos”,

só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas
(Andrade, 1977: 105).


Notas:

[1] Publicado pela Afrontamento (Porto) em 1994, 0 livro esgotou a primeira edição em Maio e a segunda em Setembro, fazendo com que a editora colocasse no mercado a terceira em Novembro.

[2] Todas as citações que farei de Pela mão de Alice… serão extraídas dessa edição.

[3] Embora as referencias a Marx e a tradição marxista estejam presentes em varias passagens, esta discussão, como se verá, ocupa somente um capítulo do livro, 0 segundo (Santos, 1995: 23-49).

[4] A alusão ao marxismo não implica a existência de “um cânon marxista. Não há uma versão ou interpretação autorizada do que Marx verdadeiramente disse ou quis dizer. Não há uma ortodoxia a que se tenha de prestar lealdade incondicional, nem inversamente fazem muito sentido protestos de renegação ou abjuração […]. Numa pincelada de sociologia do marxismo pode dizer-se que canonização e ortodoxia são próprios de universos de conhecimento que se pretendem diretamente conformadores da prática social como é o caso, por exemplo, da teologia ou da psicanálise” (idem: 33). Parece claro que, aqui, a noção de ortodoxia nada tem a ver com o sentido que Lukacs, no primeiro ensaio de História e consciência de classe (que Sousa Santos conhece), Ihe atribuiu.

[5] Sousa Santos reproduz aqui, literalmente, a apreciação de Kolakowski, para quem “o periodo da Segunda Internacional (1889-1914) pode ser denominado, sem exagero, a idade de ouro do marxismo” (Kolakowski, 1982: 9).

[6] Aqui, Sousa Santos simplesmente remete às obras desses três autores (em referencias bibliográficas que suprimimos nesta citação), com um comentário esquemático, ao qual retornaremos adiante, de exatas seis linhas (idem: 26).

[7] E inteiramente falsa essa menção a Plekhanov: o “pai do marxismo russo” não foi liquidado, mas faleceu num hospital finlandês em 30 de Maio de 1918.

[8] Rememorando, a esta altura, o impacto do maoismo, a argúcia de Fannon e a “teoria da dependência”, de Fernando Henrique Cardoso et alii.

[9] Sousa Santos arrola, aqui, inúmeros analistas, entre os quais Mills, Poulantzas, Miliband, Touraine, E. O. Wright, G., Theborn, Marcuse, R. Williams, Habermas e Bourdieu.

[10] Neste passo, Sousa Santos evoca Braudel, Hobsbawm e Thompson. Entre a “sociologia” e a “historiografia”, menciona ainda uma “investigação sociológica histórica de grande criatividade”, lembrando os trabalhos de B. Moore Jr. e I. Wallenstein.

[11] Esta passagem do texto de Sousa Santos é particularmente equivoca; de um lado, referir o “marxismo ocidental” como próprio deste período (anos 50-70) é, para dizer o mínimo, uma tolice historiográfica. De outro, situar, como ele a faz, Lucien Goldmann no marco do “marxismo estruturalista francês”, “devedor da reflexão filosófica de Althusser e da antropologia de Levi-Strauss” (idem: 27), é ignorar completamente a concepção goldmanniana de estruturalismo genético.

[12] Curiosamente, a autor anuncia a relevância de quatro dentre os debates importantes da década, mas, ao discrimina-los, menciona cinco (idem: 30) incidentes sobre: 1) processos de regulação social nas sociedades capitalistas avançadas (Aglietta, Brender, Boyer); 2) processos de formação e de estruturação das classes nas sociedades capitalistas, considerando as novas classes e seus lugares contraditórios (E. O. Wright); 3) primazia ou não da economia, das relações de produção ou das classes na explicação dos processos de transformação social (Offe, M. Mann, N. Mouzelis, 1. Sckopol, p. Evans); 4) natureza das transformações culturais do capitalismo (F. Jameson); 5) avaliação do desempenho politico dos partidos socialistas e comunistas e, em geral, do movimento operário europeu (W.Korpi, A. Przeworski).

[13] Sousa Santos ilustra: “A título de exemplo, refiram-se os estudos sobre os novos movimentos sociais e sobre os processos de transição democrática na América Latina e os estudos de sociologia histórica sobre o contexto colonial e pós-colonial da Índia […]” (idem: 31).

[14] É interessante observar que Sousa Santos identifica dois “pós-marxismos”: o da década de 80, aí referido, e o da década anterior, “pós-estruturalista […], fortemente tributário de Foucault e da reflexão teórica na lingüística, na semiótica, na teoria literária e mesmo na psicanálise” (idem: 31).

[15] A propósito da “articulação ação/estrutura tal como ela foi se constituindo e transformando na tradição marxista”, Sousa Santos (idem: 32) realça a crítica a “mais aguda e mais inovadora”, oriunda da “sociologia feminista” e a recusa “dessa dualidade no seu todo”, expressa na obra de E. Laclau e C. de Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy. Toward a Radical Oemocratic Politics (London, Verso, 1985); num passo posterior, Sousa Santos sugere sua discrepância com esses dois autores (idem: 37).

[16] Mencionamos atrás (nota 6) que, com eles, Sousa Santos gasta seis linhas; vale a pena transcrever sua notação: “Convergiam estes pensadores na ideia de que a conversão do marxismo numa ciência positiva desarmava o seu potencial revolucionário. As raízes do marxismo eram hegelianas e faziam dele uma filosofia crítica, uma filosofia da práxis, mais virada para a construção de uma visão libertadora e emancipadora do mundo do que para uma análise sistemática e objetiva da sociedade capitalista” (idem: 26). Deixando de lado as substantivas diferenças entre os três autores, o que Sousa Santos não assinala concretamente é o conteúdo antipositivista e anti-reducionista que especialmente Lukács, batendo forte contra o marxismo vulgar da Segunda Internacional, introduz no debate; a ausência dessa sinalização contribui para explicar por que Sousa Santos parece ignorar que o combate aos vários reducionismos (de natureza econômica, notadamente) surge precisamente nos anos 20, bem antes de qualquer “pós-marxismo”; sua chave, formulou-a Lukács na frase de abertura do ensaio sobre Rosa Luxemburgo (1921): “É o ponto de vista da totalidade e não a predominância das causas econômicas na explicação da história o que distingue de forma decisiva o marxismo da ciência burguesa” (Lukács, 1965: 47).

[17] É assombroso, para quem se preocupa com o desenvolvimento da sociologia, a ausência, aqui, da menor referência aos autores da Escola de Budapeste, reunidos em torno de Lukács (quando se sabe, ademais, que Sousa Santos conhece os trabalhos de Agnes Heller, Ferenc Féher e G. Markus), aos empenhos de um S. Ossowsky – sem falar de nenhuma alusão ao grupo Práxis e a Kosik.

[18] Mas, nesse caso específico, as duas omissões são verdadeiramente graves – se um sociólogo culto não pode deixar de considerar a obra multifacética de Lefebvre, nenhum balanço, por mais sumário que seja, do marxismo nos anos 50-70 pode ser levado a sério se não consigna a produção peninsular da época (quanto aos italianos, Sousa Santos limita-se a protocolares citações de Labriola e Gramsci).

[19] Para um pensador marxista contemporâneo, essa distinção já convencional (”pós-modernismo de celebração/pós-modernismo de oposição”l no interior do “campo pós-moderno” é inteiramente desprovida de fundamentação (Mészáros, 1996: 27-70).

[20] Muito mais evidente no caso do “pós-modernismo reconfortante”. Parece-me que Sousa Santos recusaria de plano esta observação, que não posso desenvolver aqui; contudo, uma análise mais cuidadosa de seu pensamento ao qual, como ele mesmo reconhece, não é alheia a influência de Heidegger (idem: 76) apontaria este viés, presente inclusive em não poucas passagens de Pela mão de Alice… (cf. esp. as notações sobre “Conhecimento e subjetividade”, pp. 328 e ss.).

[21] Sousa Santos debateu amplamente a questão em Santos (1989).

[22] O próprio Habermas, cuidadoso como sempre, já advertira que este é um “conceito que só se pode aplicar com certas reservas às ciências sociais” (Habermas, 1988, I: 157, nota).

[23] Numa passagem de Pela mão de Alice…, discutindo o “pilar da emancipação” do projeto da Modernidade, no “período do capitalismo liberal” (século XIX), Sousa Santos considera que “o socialismo dito utópico é, nos seus objetivos, mais radical que o socialismo dito científico” (p. 83).

[24] Sousa Santos, justamente preocupado com os desastres provocados pelo estatuto (com as suas incidências prático-sociais) meramente objetual de que a natureza desfruta no “paradigma da ciência moderna”, atribui a Marx concepção idêntica à desta última, passando inteiramente por alto as páginas que, nos Manuscritos econômico-filosóficos de Paris, ele dedicou à relação sociedade/natureza.

[25] Apenas duas passagens, para atestar a notação: “A um certo estágio da evolução das forças produtivas, vê-se o surgimento de forças de produção e meios de comércio que, nas condições existentes, apenas causam malefícios. Não são mais forças de produção, mas de destruição […]”; “[…] As coisas chegaram hoje ao ponto em que os indivíduos se vêem obrigados a se apropriarem da totalidade existente das forças produtivas não só para se afirmarem, mas, sobretudo, para resguardar a sua existência” (trechos de A ideologia alemã, in Marx, 1982, /11: 1120, 1122).

[26] Não cabe aqui mostrar como, nesse aspecto, Marx é um herdeiro direto de Hegel, cuja noção de progresso é diversa das “ilusões heroicas” da Ilustração do século XVIII.

[27] Noutro passo de Pela mão de Alice… tematizando a “transformação não capitalista” da sociedade atual, Sousa Santos faz uma observação que certamente o distingue de boa parcela dos sociólogos contemporâneos: assevera que “se tal transformação não pode ser feita só com o operariado, tão pouco pode ser feita sem ele ou contra ele” (idem: 272).

[28] No exame dessas novas realidades, fundamentalmente as que são postas pela crescente complexidade concreta da ordem tardo-burguesa, algumas contribuições de Sousa Santos merecem particular atenção – e muitas delas comparecem em Pela mão de Alice…

[29] A esta “utopia” – que, noutro desenvolvimento, Sousa Santos chamará de heterotopia corresponderia o “Paradigma Eco-Socialista” (idem: 336 e ss.). Quanto à noção de socialismo de Sousa Santos, ela aparece lapidarmente quando discute as “mini-racionalidades pós-modernas” (idem: 111).

[30] É fato que assinala umas poucas delas (cf., por exemplo, idem: 37-38, 241), mas não as explora minimamente.

[31] “Marx deve ser posto no mesmo pé que os demais fundadores da sociologia moderna, nomeadamente Max Weber e Durkheim. […] Apesar de se guardarem de uma tradução organizada das suas idéias em processos de transformação social, Max Weber e Durkheim não se coibiram de fazer previsões e de apontar direções desejáveis ou indesejáveis de transformação social. O que os distingue de Marx é, neste domínio, o íato de suas previsões se manterem dentro do quadro do capitalismo […]. Porque se limitaram a prever variações do presente, Max Weber e Durkheim falharam menos estrondosamente que Marx em suas previsões. Mas, por outro lado, ao tentar prever mais longe e mais radicalmente, Marx apresentou, talvez contra sua vontade, uma das últimas grandes utopias da modernidade: é hoje claro que todo socialismo é utópico ou não é socialismo” (idem: 33-34).

[32] O “reducionismo economicista” que Sousa Santos atribui a Marx – expressa e obliquamente (idem: 36 e 120) – é uma inteira ficção, como Mészáros, entre muitos, já demonstrou sobejamente (Mészáros, 1993, parte 111).

[33] Recorde-se que Marcuse, no seu estudo de 1941 – Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social (Marcuse, 1969) -, pensa no mesmo compasso (desistoricização e deseconomicização) a constituição da sociologia.

[34] Cf. esp. os dois últimos capítulos de Pela mão de Alice… É de notar, porém, que, nessas páginas, o trato dos processos econômicos é muito mais de natureza constatativa que analítica.

[35] Certamente que, no seu “balanço”, ele menciona Hilferding e um que outro “economista”; mas a contribuição e/ou as polêmicas derivadas dos trabalhos, apenas para citar alguns exemplos notáveis, de Varga, Crossmann, Sweezy, Baran, Dobb, Boccara e Mandei seguramente lhe parecem pertencer a outro continente teórico.

[36] Prova-o, por exemplo, a própria concepção que o sociólogo português vem apresentando da Modernidade. Sousa Santos tem sabido evitar, ao longo de sua obra, a visão simplória, chapada e apologética da Modernidade que comparece na maior parte dos ideólogos pós-modernos. Muito especialmente, ele tem procurado, no plano histórico-sistemático, discernir o Projeto da Modernidade do capitalismo (idem: 76), inclusive investigando os rebatimentos do evolver deste último sobre aquele projeto (idem: 80-93). É interessante, assinale-se, na sua análise da Modernidade, a conexão que estabelece entre o “pilar da regulação” e o “pilar da emancipação”, com seus respectivos “princípios” e “lógicas de racionalidade” e com a expressa admissão de que o projeto sociocultural moderno é “muito rico, capaz de infinitas possibilidades e […] sujeito a desenvolvimentos contraditórios” (idem: 77). Todavia, e como se verifica em praticamente toda a literatura que tematiza a Modernidade de um ponto de vista pós-moderno, Sousa Santos tem as maiores dificuldades para explicitar concretamente tais “desenvolvimentos contraditórios”: no plano crítico-analítico, acaba por caucionar um “paradigma da Modernidade” inteiramente enquadrado pela lógica do capital – assim é que, considerando os contemporâneos “problemas com que nos defrontamos” (conversão dos problemas ético-políticos em problemas técnicos, legitimidade da propriedade privada independentemente do seu uso, obrigação política vertical do cidadão frente ao Estado, crença produtivista no progresso), Sousa Santos não vai à caça das mediações que propiciem articulá-los à dinâmica e à lógica atuais do capital, mas vê na “base” de tais problemas … “quatro axiomas fundamentais da modernidade”! (idem: 321). A tensão irresoluta nessa concepção de Modernidade é indescartável: de uma parte, teoricamente, Sousa Santos substancializa o Projeto da Modernidade, autonomizando-o das concretas conexões que mantém com a ordem do capital e, de outra, analiticamente, termina por estabelecer entre Modernidade e capitalismo uma relação unívoco-funcional.

[37] Quanto a isso, são ilustrativas as páginas que Sousa Santos dedica à análise da relação Estado/sociedade civil, que ele pensa como “dualismo” (idem: 115 e ss.).

* José Paulo Netto é ensaísta, escritor e Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro

** Apêndice do livro Marxismo impenitente – contribuição à história das ideias marxistas, Cortez Editora

Compartilhe:

Posts recentes

Mais lidos

4 comentários em “De como não ler Marx ou o Marx de Sousa Santos”

  1. Muito bom texto. Esse debate é mesmo muito necessário. B. S. Santos está para a sociologia brasileira assim como o PT está para a nossa política. Ambos são progressistas, mas ambos são antimarxistas e terminam sendo empecilhos às lutas pela superação do capital. Uma pena que o texto tenha sido publicado com tantos erros alguns dos quais criam enormes problemas para a leitura.

    Responder
  2. Vamos salvar as aparências. Será que o materialismo dialético se preocupa com alguma questão moral? Boaventura acusado de importunar as meninas que precisam da orientação dele. Tudo normal no Brasil das universidades que fazem de tudo para não sair do buraco onde estão. O sábio já dizia, pelos frutos conhecereis. A universidade só não é nada porque existem bilhões injetados nela, senão seria menos que nada, o que talvez não seja possível.

    Responder

Deixe um comentário