Gramsci sobre o totalitarismo

Por Antonio Gramsci, traduzido por Carlos Nelson Coutinho et al.

Nos excertos abaixo, apresentamos alguns dos juízos de Antonio Gramsci acerca do conceito de “totalitarismo” – um juízo muito distante das concepções liberais correntes, amplamente fundadas da pensadora Hannah Arendt.


Caderno 6, p. 253-254

§ 136. Organização das sociedades nacionais. Assinalei de outra feita que, numa determinada sociedade, ninguém é desorganizado e sem partido, desde que se entenda organização e partido num sentido amplo, e não formal. Nesta multiplicidade de sociedades particulares, de caráter duplo – natural e contratual ou voluntário –, uma ou mais prevalecem relativamente ou absolutamente, constituindo o aparelho hegemônico de um grupo social sobre o resto da população (ou sociedade civil), base do Estado compreendido estritamente como aparelho governamental-coercitivo.

Ocorre sempre que os indivíduos pertencem a mais de uma sociedade particular e muitas vezes a sociedades que estão essencialmente (objetivamente) em contraste entre si. Uma política totalitária tende precisamente: 1) a fazer com que os membros de um determinado partido encontrem neste único partido todas as satisfações que antes encontravam numa multiplicidade de organizações, isto é, a romper todos os fios que ligam estes membros a organismos culturais estranhos; 2) a destruir todas as outras organizações ou a incorporá-las num sistema cujo único regulador seja o partido. Isto ocorre: 1) quando um determinado partido é portador de uma nova cultura e se verifica uma fase progressista; 2) quando um determinado partido quer impedir que uma outra força, portadora de uma nova cultura, torne-se “totalitária”; verifica-se então uma fase objetivamente regressiva e reacionária, mesmo que a reação não se confesse como tal (como sempre sucede) e procure aparecer como portadora de uma nova cultura. […]”


Caderno 14, p. 315-318.

§ 70. Maquiavel. Quando se pode dizer que um partido está formado e não pode ser destruído por meios normais. A questão de saber quando um partido está formado, isto é, tem uma missão precisa e permanente, dá lugar a muitas discussões e com freqüência também gera, infelizmente, uma forma de vaidade que não é menos ridícula e perigosa do que a “vaidade das nações” de que fala Vico. Na verdade, pode-se dizer que um partido jamais se completa e se forma, no sentido de que cada desenvolvimento cria novos encargos e tarefas e no sentido de que, para certos partidos, é verdadeiro o paradoxo de que só se completam e se formam quando já não existem mais, isto é, quando sua existência se tornou historicamente inútil. Assim, como cada partido é apenas uma nomenclatura de classe, é evidente que, para o partido que se propõe anular a divisão em classes, sua perfeição e seu acabamento consistem em não existir mais, porque já não existem classes e, portanto, suas expressões. Mas aqui queremos nos referir a um momento particular deste processo de desenvolvimento, ao momento subseqüente àquele em que um fato pode existir e pode não existir, no sentido de que a necessidade de sua existência ainda não se tornou “peremptória”, mas depende em “grande parte” da existência de pessoas de extraordinário poder volitivo e de extraordinária vontade. Quando um partido se torna historicamente “necessário”? Quando as condições de seu “triunfo”, de seu inevitável tornar-se Estado estão pelo menos em vias de formação e deixam prever normalmente seus novos desenvolvimentos. Mas quando é possível dizer, em tais condições, que um partido não pode ser destruído por meios normais? Para responder a isto, é preciso desenvolver um raciocínio: para que um partido exista, é necessária a confluência de três elementos fundamentais (isto é, três grupos de elementos). 1) Um elemento difuso, de homens comuns, médios, cuja participação é dada pela disciplina e pela fidelidade, não pelo espírito criativo e altamente organizativo. Sem eles o partido não existiria, é verdade, mas também é verdade que o partido não existiria “somente” com eles. Eles constituem uma força na medida em que existe quem os centraliza, organiza e disciplina; mas, na ausência dessa força de coesão, eles se dispersariam e se anulariam numa poeira impotente. Não se nega que cada um desses elementos possa se transformar numa das forças de coesão, mas falamos deles exatamente no momento em que não o são nem estão em condições de sê-lo, e, se o são, apenas o são num círculo restrito, politicamente ineficiente e inconsequente. 2) O elemento de coesão principal, que centraliza no campo nacional, que torna eficiente e poderoso um conjunto de forças que, abandonadas a si mesmas, representariam zero ou pouco mais; este elemento é dotado de força altamente coesiva, centralizadora e disciplinadora e também (ou melhor, talvez por isto mesmo) inventiva, se se entende inventiva numa certa direção, segundo certas linhas de força, certas perspectivas, certas premissas. Também é verdade que, por si só, este elemento não formaria o partido, mas poderia servir para formálo mais do que o primeiro elemento considerado. Fala-se de capitães sem exército, mas, na realidade, é mais fácil formar um exército do que formar capitães. Tanto isto é verdade que um exército já existente é destruído se faltam os capitães, ao passo que a existência de um grupo de capitães, harmonizados, de acordo entre si, com objetivos comuns, não demora a formar um exército até mesmo onde ele não existe. 3) Um elemento médio, que articule o primeiro com o segundo elemento, que os ponha em contato não só “físico”, mas moral e intelectual. Na realidade, existem para cada partido “proporções definidas” entre estes três elementos e se alcança o máximo de eficiência quando tais “proporções definidas” são realizadas. [1]

Dadas estas considerações, pode-se dizer que um partido não pode ser destruído por meios normais quando, existindo necessariamente o segundo elemento, cujo nascimento está ligado à existência das condições materiais objetivas (e, se este segundo elemento não existe, qualquer raciocínio é vazio), ainda que em estado disperso e errante, não podem deixar de se formar os outros dois, isto é, o primeiro que necessariamente forma o terceiro como sua continuação e seu meio de expressão. Para que isto ocorra, é preciso que se tenha criado a convicção férrea de que uma determinada solução dos problemas vitais seja necessária. Sem esta convicção não se formará.o segundo elemento, cuja destruição é mais fácil em virtude de seu número restrito, mas é necessário que este segundo elemento, se destruído, deixe como herança um fermento a partir do qual volte a se formar. E onde este fermento subsistirá melhor e poderá se formar melhor do que no primeiro e no terceiro elementos, que, evidentemente, são os mais homogêneos em relação ao segundo? Por isso, a atividade do segundo elemento para constituir este elemento é fundamental. O critério para julgar este segundo elemento deve ser procurado: 1) naquilo que realmente faz; 2) naquilo que prepara na hipótese de sua destruição. É difícil dizer qual dos dois fatos é o mais importante. Como na luta deve-se sempre prever a derrota, a preparação dos próprios sucessores é um elemento tão importante quanto tudo o que se faz para vencer. […]


Caderno 15, p. 328-329.

§ 6. Maquiavel. Concepções de mundo e atitudes práticas totalitárias e parciais. Um critério básico de julgamento tanto para as concepções do mundo, quanto, e especialmente, para as atitudes práticas é o seguinte: a concepção do mundo ou a atitude prática podem ser concebidas “isoladas, independentes”, assumindo toda a responsabilidade da vida coletiva, ou isto é impossível, e a concepção do mundo e a atitude prática somente podem ser concebidas como “complementação”, aperfeiçoamento, contrapeso, etc., de uma outra concepção do mundo e atitude prática? Quando se reflete, percebe-se que este critério é decisivo para uma apreciação ideal dos movimentos ideais e dos movimentos práticos; percebe-se também que seu alcance prático não é pequeno. Um dos preconceitos mais comuns consiste em acreditar que tudo o que existe é “natural” que exista, não pode deixar de existir, e que as próprias tentativas de reforma, por pior que andem, não interromperão a vida, porque as forças tradicionais continuarão a agir e darão assim continuidade à vida. É claro que neste mode de pensar há algo de justo, e seria uma desgraça se não fosse assim: entretanto, a partir de um determinado limite, este modo de pensar torna-se perigoso (certos casos da política do pior) e, de qualquer modo, como se disse, subsiste o critério do juízo filosófico, político e histórico. É certo que, se observados com mais profundidade, determinados movimentos concebem a si mesmos como marginais; pressupõe, portanto, um movimento principal no qual devem se inserir para reformar determinados males pretensos ou verdadeiros, isto é, são movimentos puramente reformistas. Este princípio tem importância política porque a verdade teórica de que cada classe possui apenas um partido é demonstrada, nos momentos decisivo, pelo fato de que agrupamentos políticos variados, cada um dos quais se apresentava como partido “independente”, se reúnem e unificam em bloco. A multiplicidade existente antes era apenas de caráter “reformista”, isto é, referia-se a questões parciais, em certo sentido era uma divisão do trabalho político (útil, em seus limites); mas cada parte pressupunha a outra, tanto que nos momentos decisivos, quando as questões principais foram postas em jogo, formou-se a unidade, criou-se o bloco. Daí a conclusão de que, na construção dos partidos, é preciso basear-se num caráter “monolíticos” e não em questões secundárias: portanto, atenta observação no sentido de que exista homogeneidade entre dirigentes e dirigidos, entre líderes e massa. Se, nos momentos decisivos, os líderes passam para seu “verdadeiro partido”, as massas ficam incompletas, inertes e sem eficácia.

Pode-se dizer que nenhum movimento real adquire consciência de seu caráter totalitário de um só golpe, mas apenas por experiências sucessivas, isto é, quando percebe através dos fatos que nada do que existe é natural, mas existe porque existem determinadas condições, cujo desaparecimento não fica sem conseqüências. Assim, o movimento se aperfeiçoa, perde os elementos de arbitrariedade, de “simbiose”, torna-se verdadeiramente independente, no sentido de que, para obter determinadas conseqüências, cria as premissas necessárias e, mais ainda, empenha todas suas forças na criação dessas premissas.


[1] Nota de Carlos Nelson Coutinho:

“Sobre este tema, Gramsci assim se manifesta numa reunião do comitê dirigente do PCI, em 2-3 de agosto de 1926: “em todo partido, mas especialmente nos democratas e social-democratas, nos quais o aparleho organizativo é muito frouxo, existem três estratos. O estrato sueprior, muito restrito, que geralmente é constituído de parlamentares e intelectuais ligados com frequências às classes dominantes. O estrato inferior constituído de operários e camponeses, de pequeno-burgueses urbanos, como massa de partido ou como massa de população influenciada pelo partido. Um estrato intermediário que, na situação atual, tem uma importância ainda maior do que nos períodos normais, na medida em que muitas vezes representa o único estrato ativo e politicamente vivo destes partidos. É este estrato intermediário que mantém o vínculo entre o grupo dirigente superior e as massas do partido e da população influenciada pelo partido”.”

Nota do Editor:

Na avaliação de Gramsci, a tática da Frente Única Proletária devia buscar arrancar à influência dos estratos superiores da social-democracia os estratos intermediários da militância operária e popular. Sobre o tema, vide Os Prismas de Gramsci, de Marcos del Roio.


In: GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. v. 3.

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