Devemos repetir o óbvio? Sobre a “verdade” da esquerda

Por Victor Hugo Amaro

” Nossas falhas são nossa história. Abraçar elas é o perfeito caminho para constatar o nosso óbvio (que sim, devemos repetir, mas repetir melhor): se permitem uma pequena referência a um grande texto de Freud, devemos corajosamente repetir, sagazmente recordar, para assim podemos triunfalmente elaborar nossa verdade. Por sorte, nossa tradição não se apega à fixidez. Se apega à mudança, por uma verdadeira mudança. Essa tem que ser nossa verdade..”


Sem dúvida, uma das frases mais marcantes da história do pensamento de esquerda está nas linhas de Brecht, quando este, em pleno fascismo, pronunciou: “Que tempos são estes em que temos que defender o óbvio?”. A verdade nessa frase é urgente: que diante de todas as forças exteriores com o qual nós, de esquerda, lutamos, ainda há a necessidade, de que em meio à barbárie, termos que apelar para a obviedade dos fatos, que no tempo do autor, dizia respeito a ameaça incontestável do nazismo em solo alemão. Esta verdade ainda ecoa nos tempos contemporâneos, onde possuímos dúvidas dos motivos do fascínio de ideias totalitárias em nosso cotidiano.

Porém, essa frase simplesmente não existe. Quer dizer, ela “existe”, essas linhas conseguem ecoar em plena efetividade, tanto pela origem combativa do autor quanto pelo próprio sentido da frase, mas, em toda honestidade, não se consegue achar até hoje a origem de tal frase saindo dos dedos ou bocas de Brecht. Sim: uma frase que é constantemente atribuída para esse grande nome do pensamento de esquerda, não tem sua origem localizável em nenhuma de suas produções, pelo menos até onde este que vos escreve pode pesquisar, de antemão me declarando não ser nenhum especialista no autor. O que mais se aproxima dessa frase, entretanto, é um trecho encontrado em seu poema, conhecido por aqui como “Aos que vieram antes de nós”, datado de 1937-38:

Verdade, vivo em tempos sombrios!

A palavra inofensiva é tola. Uma testa lisa

Sinal de insensibilidade. Aquele que ri

Apenas não recebeu ainda

A notícia terrível.

Que tempos são estes, em que

Uma conversa sobre árvores é quase um crime.

Pois implica calar-se sobre tanta atrocidade!

Quem atravessa calmamente a rua

Não está mais disponível para seus amigos

Necessitados?

(Brecht, 2019, p.353)

Geralmente, alguns tradutores como Manuel Bandeira traduziram o trecho em questão sobre a “conversa com as árvores” como “coisas inocentes”. Faz sentido. Entretanto, acho interessante, que mesmo a tal frase da “repetição do óbvio” não constando de fonte bibliográfica em minhas pesquisas, os ecos da mesma perduram. Existe, querendo ou não, uma “verdade”, até mesmo nos maiores boatos, inverdades ou confusões do mundo político e intelectual. De alguma forma, me faz lembrar das citações estranhas atribuídas à Hitler sobre sua admiração ao comunismo, ou de hoaxes maiores, como o “Decálogo de Lenin”, das conspirações judaicas na Revolução Russa, ou até mesmo de mentiras mais locais, que dizem respeito a atitudes corruptas de ex-presidentes e ex-presidentas, ou dos líderes de esquerda sendo acunhados como “ditadores”, sem pleno trabalho e análise no emprego desses conceitos. Acredito que todos esses boatos “funcionam” porque, mesmo muitas das vezes a fonte real de tais citações e boatos não existindo, a “verdade” dessas frases persistem, de alguma forma: talvez, pois a efetividade delas não se encontrem em elas serem verdadeiramente proferidas pelas bocas de quem nós atribuímos, mas sim, porque elas revelam a “verdade” de crenças, visões e ideais políticos distintos. Se é óbvio que Lenin nunca criou uma lista de regras afirmando da importância da corrupção da juventude para a plenitude da “dominação comunista”, o que torna tais ideias “verdadeiras” é que de fato, alguém acredita nessas mentiras que foram espalhadas, e persiste no ciclo de seus compartilhamentos. Existe, querendo ou não, alguma dose de “verdade” nas maiores mentiras do mundo.

O que me fez refletir sobre tal frase que é atribuída a Brecht, e pensar sobre qual o grau de “verdade” que ela possui para nossos tempos. Acredito que, por mais que considere justa a defesa do “óbvio”, que no caso, é a luta a favor da humanidade e contra a barbárie, acho que cada vez mais adentramos na fatídica posição de “repetição” desse óbvio, a cada dia do nosso cotidiano pretensamente militante. Ou seja, o nosso problema não mais é se devemos ou não defender o óbvio: nós já o defendemos, a grande questão agora parece ser se devemos repetir ele, mais uma vez, para aqueles que aparentemente “não escutaram”.

Tive tal reflexão após conferir um trecho de uma palestra do professor Alysson Leandro Mascaro, da Faculdade de Direito da USP, onde o mesmo comenta sobre o que significa ser “de esquerda”, tanto historicamente quanto em termos do conjunto de crenças, no momento em que o mesmo parafraseia uma citação do escritor e intelectual francês André Gide, sobre como a “verdade já foi dita”, em um contexto onde o professor diz:

Como na verdade ninguém lê, e se leu, não dá atenção, e ninguém presta atenção, a verdade todo mundo já sabe, faz milhares de anos, mas é preciso contar toda vez, porque ninguém leu. Tem um grande literato francês, o André Gide […] que dizia que ‘a verdade já foi falada, já foi descoberta’, mas o povo não lê, então toda geração tem que contar de novo. (Trecho da Palestra do Prof. Mascaro “Seminário de Formação Sindical de Base – Política, Poder Judiciário e a Crise Brasileira”, 2016)

 Certamente, a verdade que o professor aqui comenta (que foi enunciado em uma palestra de formação sindical) diz respeito à ‘verdade da esquerda’, que no caso, é a verdade de sua história, especialmente no contexto da revolução francesa, que nas palavras do professor, se define na posição de todos terem o “mínimo para o ser humano ser íntegro e coerente na vida”. Não estou aqui para discordar do professor, e muito menos criticar sua interpretação de uma possível “ideia de esquerda”, mas certamente estou aqui para tentar elaborar mais afundo sobre essas questões, pois toda a ideia que está sendo comentada nesse trecho da palestra é bem óbvia: o povo não sabe ou não reconhece que é oprimido em dado sentido, então, é necessário “repetir” o que já foi dito. Certamente, o que não fica implícito é quem vai repetir essa verdade. Mas, partindo de uma ideia já conhecida de Gramsci e também de Lukács (ambos com suas especificidades em tal ideia), se presume aqui que quem vai falar a “verdade”, são provavelmente, os intelectuais, visto que o povo “não sabe”, certamente aquele que tem acesso a “verdade’ é aquele que estuda e se dedica no seu tempo livre para a compreensão da mesma.

Não pretendo entrar nos debates a respeito do “intelectual orgânico” ou do “ser social”, mas sim, compreender em que ponto a noção de repetir a verdade deve ser pensada e praticada. E pretendo começar tal reflexão com a própria citação de André Gide, que na realidade é um pouco diferente da paráfrase do professor Mascaro, mas sua ideia geral permanece minimamente parecida: “Tudo já foi dito, mas já que ninguém estava ouvindo, nós temos que começar novamente”. Essa ideia de que não há “nada de novo sob o sol” (Eclesiastes 1:9) não é necessariamente inovadora, mas ao mesmo tempo, no contexto em que tal ideia foi enunciada pelo professor, se encontra em um sentido completamente diferente das demais formas de expressão de que “tudo já foi dito”: que ser de esquerda tem uma prerrogativa fundamental, e que tal prerrogativa não é conhecida porque o povo não tem acesso ao conhecimento.

Mas então, qual o problema nisso tudo? Se a “verdade” já foi inventada de fato, e devemos repetir ela para que o povo saiba, já que o mesmo não teve acesso ao conhecimento, qual o motivo de ainda termos que repetir ela, incessantemente? Será que os oprimidos são “estúpidos” por natureza, ou “alienados” por alguma instituição, e não reconhecem o que deve ser feito para combater a injustiça do que já foi ‘enunciado’? Não respondendo de imediato tais perguntas, podemos dizer que, mesmo soando inicialmente problemático, há uma dose de verdade na fala do professor. Certamente, Mascaro não quer ser propositalmente um adepto da tese da “ignorância das massas”, como Le Bon já fez um dia, ou seja, não quer dar a entender de que ninguém lê porque simplesmente “não quer” ou por uma “inibição intelectual” pertencente às classes mais pobres, e que se deve falar para os “ignorantes” a verdade. Certamente, Mascaro reconhece que o povo não se rende à ignorância por que “gosta” de ser ignorante. Existe um caráter histórico-social na apreensão do conhecimento, e se exige, segundo a própria teoria marxista, condições materiais para se adquirir informação, conhecimento e até mesmo compreensão da “verdade” (a crítica marxista ao idealismo se encontra também nesses termos, de certa forma), e o professor certamente está ciente disso.

Nesse sentido, proponho rapidamente pensarmos nossos tempos nos termos de uma ‘verdade da esquerda’, especialmente sobre o problema do “bolsonarismo” (ideia esta que acredito ainda estar se maturando em sua efetividade real, mas que resumidamente utilizo como o aglomerado prático-ideológico pertencente ao nosso atual governo), especificamente no que tange o problema do “diálogo” (ou não-diálogo) com um dito “bolsonarista”. Sugiro tal formulação de pensar o bolsonarismo nesses termos pelo problema do “pobre de direita”: apesar de reconhecermos que existem adeptos ao bolsonarismo que o são simplesmente para defender seus interesses de classe, existem também aqueles que defendem o presidente, suas ideias e práticas sendo esses mesmos, pertencentes a classes oprimidas, numa contradição que não é nada nova na história política brasileira, mas mesmo assim, ainda causa questionamentos pertinentes da existência de tal fenômeno.

Assim sendo, porque quem adere ao bolsonarismo acredita em tudo que é dito, feito e realizado pelo governo e seus atores, quase que “cegamente” (termo problemático, inclusive: ele propõe que quem segue o Bolsonaro não “sabe o que está fazendo”, e sejamos sinceros: será se há ausência de autonomia total em quem adere ao bolsonarismo?), similar a um “robô” do presidente? Nesse caso, não parece um problema de escutar de menos, mas de “escutar demais”. O bolsonarista escuta bem, porém demasiadamente, e somente certos sujeitos. Seria ele então mais uma “vítima” do sistema? Qual o papel de culpa individual e psicológica no que tange ao bolsonarista? Será que as questões relativas às “condições materiais” do acesso ao conhecimento de um povo respondem nossas perguntas por completo nesse quesito? Ou seja, será que o pobre de direita o é assim, devido apenas às condições materiais de nosso estado presente? Nesse caso, será que falta repetirmos a verdade para os bolsonaristas, principalmente para aqueles que são bolsonaristas e são “oprimidos” (o grande dilema do pequeno burguês, ou do “pobre de direita”)?

Esses problemas advêm de uma visão que permite um “diálogo” com um fascista, que nós poderíamos, através de um discurso racional, “fazê-lo mudar de ideia”, ou “virar seu voto”, ou mostrar o grande problema se obtêm ao não avaliarmos criticamente o presidente e suas ideias. Porém, essas estratégias raramente tem efeito pleno. Parece até que Adorno, em seu esboço “Contra os que têm resposta para tudo” falava de nossos tempos: que é estúpido ser inteligente. Não, os inteligentes não somos nós de esquerda, necessariamente (acredite, não queira ser o “inteligente” nesses termos): “inteligentes”, para Adorno, são aqueles que tentaram usar todos os meios racionais para tentar compreender, combater ou até mesmo mostrar a farsa do Fascismo. Grande engano: a razão (atenção para o uso crítico do termo: nesse momento em que é utilizada pelo autor, se trata da razão burguesa, um conceito de razão que advém do contexto iluminista europeu, e não uma mera “razão universal” acessível para todos) entra em contradição com ela mesma pelo fenômeno do Fascismo, pois esse último não trabalha nas mesma regras tradicionais do jogo da burguesia. O fascismo, na realidade faz brochar a própria farsa da burguesia.

A inteligência é superada tão logo o poder deixa de obedecer à regra do jogo e passa à apropriação imediata. O meio da inteligência tradicional burguesa, a discussão, se desfaz. Os indivíduos já não podem conversar e sabem disso: por isso fizeram do jogo uma instituição séria, responsável, e exigindo a utilização de todas as forças, de tal sorte que, por um lado, o diálogo não é mais possível, e por outro, nem por isso é preciso se calar. (Adorno, 2006, p.174)

A “apropriação imediata” que Adorno fala é a dominação que o Fascismo realiza em seu jogo: não existem mais “estratégias burocráticas”, tais como as leis ou o mercado (que funciona como a mediação para a obtenção de status social e poder), como no passado burguês, para dominar os oprimidos. A dominação instantânea é a chave do fascismo. Não existem etapas, apenas a execução pura do poder. Isso que nos impede de falar com um fascista: o jogo do diálogo, da troca de “opiniões”, no velho lema volteiriano, não existe com quem apenas pensa na lógica da dominação: a única “lógica” que pode ser empregada com tal sujeito é a razão do domínio. Por isso que “não é fácil falar com um fascista. Quando o outro toma a palavra, ele reage interrompendo-o com insolência. Ele é inacessível à razão porque só a enxerga na capitulação do outro.” (Adorno, 2006, p.174)

O que nos faz lembrar da própria análise de Adorno dos padrões de propaganda pertences ao Fascismo: Bolsonaro, enquanto personagem político, age como um palhaço debochado, sendo quase “antipolítico”: o sinal de “arminha”, em menção à força que um poderio bélico traz, sendo executado com um sorriso simples, enquanto se fala enormes atrocidades, como fuzilamentos de “esquerdistas”, atribuições negativas à indígenas, mulheres e negros, tudo em um mero tom de “piada” (lembrando tão fortemente o próprio “pobre de direita”, que no fim, não passa do cidadão comum) ecoa completamente nos ditames de Adorno sobre o agitador fascista:

Hitler foi aceito, não apesar de suas bizarrices baratas, mas precisamente por causa delas, de sua entonação falsa e suas palhaçadas. Tudo isso foi observado como tal e apreciado. […] A sentimentalidade das pessoas comuns não é de forma alguma uma emoção primitiva e irrefletida. Pelo contrário, constitui um fingimento, uma imitação fingida e barata de sentimentos reais, frequentemente, autoconsciente e com certa autocomplacência. Esse caráter fictício é o elemento vital das performances da propaganda fascista. (Adorno, 2015, p. 145-46)

Ao olhar para tal personagem, o “pobre de direita” lembra de si mesmo. Há uma identificação potente em jogo, e como toda identificação, há uma dosagem de narcisismo envolvida: por isso há uma aderência forte desse grupo ao fascismo. Ser bolsonarista é poder esterilizar o ódio, reprimido ou não, que tal cidadão médio tem em si. Certamente, é um “show”, como Adorno argumenta, por isso pode-se falar em personagem, atuação e performance: por mais que Bolsonaro seja verdadeiramente, no seu próprio íntimo, alguém que acredita plenamente em tudo que fala e age, ou seja, um ser preconceituoso, ardiloso e maldoso, do que adiantaria saber de tal aspecto psicológico? Já vimos que Bolsonaro é capaz de “moderar” sua postura e seus posicionamentos quando bem entende, como sua conta nas redes sociais demonstra (independente de serem postagens de sua autoria ou de sua “ASCOM”). É justamente por isso, que o “Pobre de direita” não é necessariamente, um “fascista” em si, por apenas puro prazer: existe a possibilidade de catarse das emoções mais primitivas na adesão ao fascismo. Entendemos errado quando achamos que, ao falar com o cidadão médio, estamos apenas falando com um “fascista”: estamos falando com alguém tão psicologicamente abatido, que precisar encontrar sua liberação pulsional na adesão política mais radical e desumana possível. A importância real de tais questões não vem do fato de Bolsonaro ou de seus seguidores serem realmente crentes em seus discursos ou não, mas sim, que seus posicionamentos funcionam politicamente, que eles conseguem alcançar seus propósitos:

“Show” de fato é a palavra certa. A construção do líder autoestilizado é uma performance reminiscente do teatro, do esporte e do assim chamado renascimento religioso. É característico dos demagogos fascistas se vangloriar de terem sido heróis atléticos em sua juventude. É assim que se comportam. Eles gritam, choram, lutam com o demônio em pantomimas e tiram seus casacos ao atacarem “aqueles poderes sinistros”. (Adorno, 2015, p. 145-46)

 Eis o ponto que gostaria de chegar: esses “poderes sinistros” podem ser qualquer teoria da conspiração que retira todo o conteúdo de “verdade” que o inimigo do fascista realmente tem. Transformar a esquerda e seu movimento em um “demônio” é tarefa dos movimentos com tendência fascistas contemporâneos. Não é uma tarefa grandiosa, a esquerda também comete erros. A defesa do status quo capitalista certamente não deveria ser a nossa “verdade”. Mas existe um componente de demonização absoluta, de inverter as atitudes do movimento de esquerda, e eis o grande problema: há a necessidade quase que religiosa de criar a imagem desse “inimigo”, seja ele o judeu, o imigrante ou o “comunista”. O bolsonarismo ajuda a montar a imagem que retira a “verdade” da esquerda, pois constrói um imaginário sob ela, facilmente identificável para o cidadão médio brasileiro que se viu em maus lençóis depois da crise econômica e política pós-Dilma, que vai precisar de um “culpado”.

O que fazer diante de tal aprofundamento do despedaçamento da memória da “verdade” da esquerda? Brecht, em seu texto “Cinco dificuldades no Escrever a Verdade”, escrito em 1934, em pleno auge do Nacional Socialismo na Alemanha, dá algumas apostas. Trata-se de um texto de “trincheira”, assim como os grandes textos de Lenin, (como “Que fazer?”), altamente combativo e programático, onde Brecht elenca cinco dificuldades naqueles que pretendem escrever a verdade em uma época onde é “estúpido ser inteligente”:

Quem, nos dias de hoje, quiser lutar contra a mentira e a ignorância e escrever a verdade tem de superar ao menos cinco dificuldades. Deve ter a coragem de escrever a verdade, embora ela se encontre escamoteada em toda parte; deve ter a inteligência de reconhecê-la, embora ela se mostre permanentemente disfarçada; deve entender da arte de manejá-la como arma; deve ter a capacidade de escolher em que mãos será eficiente: deve ter a astúcia de divulgá-la entre os escolhidos. Estas dificuldades são grandes para os escritores que vivem sob o fascismo, mas existem também para aqueles que fugiram ou se asilaram. E mesmo para aqueles que escrevem em países de liberdade burguesa. (Brecht, 1934)

Brecht revela o sentimento que acredito ser o do professor Mascaro: de que devemos divulgar a nossa verdade de forma estratégica, mesmo sendo dificultoso, pois requer coragem, inteligência e eficiência. Trata-se de um argumento aparentemente vago, mas poderoso: como todo texto de “trincheira”, o essencial não está em sua formalidade exegética, mas sim, na capacidade de compreender a situação prática efetiva em que se lê o texto, que em outras palavras, significa voltar-se para a situação prática do leitor, de seu cotidiano, de sua moradia, de seu bairro e sua cidade. Ou seja, o leitor precisa ter a astúcia de transformar os argumentos em uma atitude política, onde não é o bastante se atenuar apenas em como o texto é “escrito” ou como seu estilo é “elevado”. Não se procura meras abstrações, o objetivo desses textos é simples: deve-se tirar uma consequência prática do mesmo, uma práxis. Esta é a atemporalidade de textos como este de Brecht e de vários outros, como os de Lênin e Marx, de que não é o bastante “interpretar”: deve-se também agir.

Sendo assim, Brecht fala da importância de falar a verdade, de divulgar o pensamento, e não o deixar “parado”: trata-se na realidade de um ato de grande ganho político. Se é considerado “baixo” ter que pensar e formular uma divulgação do mesmo, Brecht nos faz lembrar da importância de divulgar a verdade:

A divulgação do pensamento, não importa em que terreno seja, é sempre útil à causa dos oprimidos. Uma divulgação assim é muito necessária. Em governos que servem à exploração, o pensamento tem cotação baixa, como baixo é considerado tudo o que é útil aos oprimidos. Baixa é a eterna preocupação pela comida, baixo é recusar as honras prometidas pelos “defensores” da pátria, duvidar do Führer, ter má vontade para com o trabalho que não sustenta o homem, revoltar-se contra a imposição de tomar atitudes sem sentido. Baixo é pensar. Os famintos são insultados como comilões; os que nada têm para defender são apontados como covardes; os que duvidam dos opressores são acusados de duvidar de suas próprias forças; os que reclamam salários por seu trabalho são chamados de vagabundos, etc. Sob tais governos, o ato de pensar, em geral, é considerado como baixo e suspeito. (Brecht, 1934)

Temos, entretanto, um grave entrave contemporâneo nessa questão: o que fazer quando tudo que se faz se mostra aparentemente inútil? Veja bem, o ganho político nunca é imediato, é sempre um processo. Quer dizer, é óbvio que não é uma tarefa fácil, Brecht claramente diz isso, mas o que fazer quando aparentemente não há forças (tanto objetivas quanto subjetivas) de repetir essa verdade? Isso nos leva ao título de nosso texto: realmente, vale a pena repetir o óbvio? Que é óbvio que existem pessoas sendo exploradas? Que estamos nos acostumando ao mundo capitalista? De que Bolsonaro tem estratégias também óbvias de controle, e que não possui compromisso com a classe oprimida, que muitas das vezes o defende? De que é difícil obter informação e acesso a “verdade”? Vale a pena, afinal de contas, escrever um texto como esse, que contém tantas “obviedades”, imerso em tantos outros textos, em tantos outros blogs e sites, que podem conter tantas outras verdades, mas no final, permanecerem imersos a nosso pequeno grupo de amigos e companheiros nas “trincheiras virtuais”? No fim, mais uma vez: devemos repetir o óbvio?

Concordando aqui com Mascaro e Brecht, e também Badiou, Benjamim, Lenin, Marx e muitos outros, acredito que a esquerda também tem uma verdade: e esta seria a da tradição de defesa dos povos vencidos:

Os dominantes do presente são os herdeiros de todos os que, algum dia, venceram. […] Todo aquele que, até hoje, obteve a vitória, marcha junto no cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje a marcharem por cima dos que, hoje, jazem por terra” (BENJAMIN, 2005, p.70)

A tradição dos povos vencidos é um lema que qualquer autêntico adepto de uma ideia esquerda sempre segue e seguiu, pela própria “verdade” que Mascaro revela no trecho de sua palestra: desde a revolução francesa, casualmente, viramos “esquerda”, “vermelhos” e assim por diante, mas essa tradição data muito antes disso, como assinala Badiou:

[…] uma verdadeira revolução é sempre, também, a ressureição daquelas que a precederam: a Revolução Russa ressuscitou a Comuna de Paris, de 1971, e a Convenção robespierrista; e também a revolta dos escravos no Haiti com Toussaint Louverture; e também, recuando ao século XVI, a insurreição dos camponeses na Alemanha sob a liderança de Thomas Müntizer; e também, recuando ao Império Romano, a grande sublevação de gladiadores e de escravos sob a liderança de Espártaco. (Badiou, 2019, p.34-35)

Os heróis da emancipação popular, foram querendo ou não, sempre os vencidos, nunca os vencedores. Isso que une todos esses nomes, e essa que é a tradição dos oprimidos: por vezes e vezes já se repetiu essa história, porém, raramente obtivemos sucesso, salvo, no século XX, com a mudança global que a Revolução Russa causou, e a implosão de revoluções pelo mundo todo, que, nas palavras do próprio Badiou, foi o evento que mostrou a “possibilidade de vitória” aos povos oprimidos. Em resumo, a revolução russa foi o momento dos oprimidos: ela mostrou que é possível uma outra possibilidade de existência. Com o seu fim, entretanto, a esquerda radicalmente mudou seu modus operandis, gerando mais articulações “comodistas”. Com isso, se gera acúmulos poucos proveitosos, raramente efetivos no que diz respeito a superação da tradição dos oprimidos que efetivamente vivemos, pois adentramos no terreno da aceitação das coordenadas básicas da democracia liberal, que consequentemente chegarão na tal da “perda de forças” subjetivas e objetivas que falei anteriormente: pois parece que nada dá certo.

Portanto, a história da esquerda é uma história de falhas, tornando-a, nas palavras de Zizek, uma “causa perdida”. Acredito esse ser o principal motivo de termos que “repetir o óbvio”: nossas vitórias foram pouquíssimas, e nossas derrotas não cabem no gibi. Quantas vezes mais uma pessoa morrer de fome no mundo será o tanto de vezes que a esquerda perdeu um pouco mais.

Chega-se num ponto que a esquerda tem que se render sempre em um tipo temporalidade estranha: geralmente, é um apego forte ao passado, com os ditos “comunistas” de hoje em dia: um grande clamor e valor pelo que “já foi feito”, uma nostalgia do que não foi vivido, pela “década dourada” soviética. Chega-se a trocar, em algumas correntes mais radicais, a própria construção do presente em prol de uma “estética” ou “força” presente no passado comunista.

Certamente, também já houve maior popularidade entre os idolatras do futuro, de um futuro que nunca vem: os fieis de uma utopia que não chega, de uma “implosão” do sistema que não chega. Os “futuristas” certamente lembram algumas teses de Engels, mas também, lembram o passado assombroso de quem deseja ser utopista sem a conquista do nosso presente.

Mas, talvez, a situação é mais avassaladora com aqueles fincados no “presente”, e me refiro aos “comodistas”: são os sujeitos que, nunca satisfeitos com os “totalitários” comunistas ou os “sonhadores” utópicos, percebe tudo com indiferença e dão de ombros para os problemas presentes, propondo apenas “pequenos passos” de uma só vez. Claro, a mudança social é um processo lento, mas trabalhar com o que há de meramente presente, sem se ater a importância do futuro e sem o apoio da tradição que é nossa é uma aceitação da derrota, gerando um sentimento de que, talvez, nunca tenhamos os passos para progredir nos dias de hoje.

E, certamente, não é necessário ser um gênio para perceber que essas três posições temporais na esquerda são, ao mesmo tempo, abstrações não-reais, e ainda assim, pontos de referência do que devemos temer na nossa prática cotidiana. Não devemos nos apegar demais ao passado, mas devemos sempre lembrar daqueles que “vieram antes de nós”; não podemos ser sonhadores demais com um futuro utópico, porém, temos que ter os olhos nele para não esquecer a importância dos sonhos para a luta cotidiana; e não podemos nos ater ao conformismo do presente, porém, é somente a partir dele que podemos sequer começar a compreender o que é nossa tradição dos oprimidos.

Com todos os problemas políticos que os protestos de maio de 68 na França tiveram na história política da esquerda, uma frase famosa desse período deveria ser, no mínimo, ressignificada para nosso presente: “Sejamos realistas: exijamos o impossível!”. Isso sumariza o ponto que quero chegar: temos que recorrer ao passado não para repeti-lo, mas para aprender com ele, que ele seja nossa referência, nosso ponto de partida para ir além dele, em todas as suas falhas e acertos, pois somente recorrendo a esse período tão conturbado da nossa história política poderíamos lembrar dessa frase; também devemos ser realistas: essa palavra não está na frase de forma ingênua, para só ser “negada” com a afirmação do impossível, ela quer dizer, literalmente, que nosso presente tem que ser “impossível”, ir além das meras frugalidades da realidade, e assim, não simplesmente aceitar sermos sempre os “vencidos”: podemos ir além dessa realidade, se baseando nela!; e por fim, o nosso impossível, o nosso “futuro utópico” tem que se basear no presente: nossa realidade tem que ser inventada, mas inventada por nós mesmos, trabalhando em cima da mesma, indo muito além do mero querer.

Essa que é (ou deveria ser, ao menos) a diferença entre nós para certas teorias da direita: não somos conformistas do status quo (como certos liberais mais tradicionais), nem mantenedores de um passado ou uma “tradição necessária” específica (tais como conservadores) e muito menos utopistas formalistas (como alguns libertários austríacos). Se de fato, chegarmos perto demais nesses pontos e não mantermos o que verdadeiramente pode ser revolucionário, perdemos já parte da batalha. Porém, como já afirmamos aqui, não devemos ter medo de errar: querendo ou não, essa é nossa bandeira. O nosso grande lema ainda deve ser o becketniano, e não devemos em hipótese nenhuma tornar ele um lema “empreendedor” (a não ser que seja um empreendimento para a vitória dos vencidos): “Falhe de novo. Falhe melhor”. Nossas falhas são nossa história. Abraçar elas é o perfeito caminho para constatar o nosso óbvio (que sim, devemos repetir, mas repetir melhor): se permitem uma pequena referência a um grande texto de Freud, devemos corajosamente repetir, sagazmente recordar, para assim podemos triunfalmente elaborar nossa verdade. Por sorte, nossa tradição não se apega à fixidez. Se apega à mudança, por uma verdadeira mudança. Essa tem que ser nossa verdade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

ADORNO, Theodor W. Antissemitismo e Propaganda Fascista. In: Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

_____. Padrão de Propaganda Fascista. In: Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

BADIOU, A. Petrogrado, Xangai: AS DUAS REVOLUÇÕES DO SÉCULO XX. São Pualo: Ubu Editora, 2019.

BENJAMIM, Walter. Teses sobre o conceito da história. In: LÖWY, M. Alarme de incêndio: uma leitura das teses sobre o conceito de história. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

BRECHT, Berltod. Cinco dificuldade no Escrever a Verdade. 1934. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/brecht/1934/mes/verdade.htm

_____. Bertold Brecht: Poesia. São Paulo: Perspectiva, 2019.

MASCARO, Alysson Leandro, Seminário de Formação Sindical de Base – Política, Poder Judiciário e a Crise Brasileira, 2016. Disponível em: https://youtu.be/woGWGyUr4is?t=8109

Imagem em Destaque: Se os Tubarões Fossem Homens, Bertolt Brecht. Ilustração de Nelson Cruz

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