Violência: Esboço de uma Crítica

Por Eitor Ramiro Sena de Macedo

“De toda forma, é problemático o uso esvaziado da palavra violência, pois essa arbitrariedade carrega a forma do senso comum, eivada de ideologia e aprisionada na aparência. Por exemplo, os comunistas são vistos como violentos4, pois as experiências revolucionárias foram destacadas historicamente por esse conceito. Entretanto, a colonização da África não é colocada na história do liberalismo, ou seja, há um uso indiscriminado desse conceito, em que a violência tornou-se algo típico de experiências de esquerda. Portanto, é preciso, sobretudo, qualificar o debate sobre a violência, desmistificando seu uso e compreendendo as suas mais variadas dimensões. Rompendo, assim, com a forma vulgar, que é amplamente utilizada.”

Durante nossa vida é mais que comum nos depararmos com momentos ou fatos violentos, afinal trata-se de algo cotidiano em nossa realidade. Apesar disso, seria equivocado falar que nós sabemos o que é a violência e que, além disso, conseguimos identificar perfeitamente situações que são violentas. É constante, ouvirmos que: a cidade está violenta, as pessoas estão violentas ou outros mil exemplos que poderíamos citar. No entanto, essas percepções não abarcam o que é a violência e nem como ela se expressa nas suas mais diversas determinações.

  O filósofo Slavoj Žižek1, trata de dois tipos de violência: a subjetiva e a objetiva. A primeira seria aquela citada no parágrafo anterior, ou seja, aquilo visível, aparente, mas ainda que seja aparente é, também, mistificadora, e apenas a percepção a olho nu não é suficiente para compreender nem essa forma. A segunda se dá a partir de fatos invisíveis ou invisibilizados, não que sejam secretos ou fruto de conspirações, mas sim que essa forma de violência é menos suscetível a ser percebida, pois age sob a carapuça de ideologia.

  A violência subjetiva é aquela vista no dia a dia, por exemplo, o assalto que ocorreu em uma casa de seu bairro ou uma explosão que matou centenas de pessoas. Já a violência objetiva, ocorre simbolicamente, na linguagem, ou seja, nos discursos que preponderam dentro de determinada sociedade, além da sua existência sistêmica, que decorre da estruturação do corpo social. Sendo mais simples perceber a primeira forma, subjetiva, pois esta é um objeto mais presente no dia a dia, nas discussões, nas novelas, nos filmes, nos jornais.

  Apesar disso, como já apontei inicialmente, essa forma ainda que mais visível, não é clara quanto a sua essência, sendo, portanto, imprescindível ampliar nosso campo de percepção desse modo de violência. O criminólogo Thiago Celli Araújo2 em seu curso, método na criminologia crítica, traz um causo que julgo relevante para compreender os limites da aparência na percepção da violência subjetiva. A narrativa é a seguinte: A mídia local começa a noticiar uma onda de assassinatos, através de vários veículos jornalísticos que atuam na região, com isso, entende-se que os assassinatos aumentaram e que aquele local está mais violento. No entanto, ao se observar as estatísticas, percebe-se que aquele mês, marcado pelas notícias, foi menos violento que o anterior. Como isso seria possível?

  O que aconteceu nessa narrativa não é apenas possível; é recorrente. No caso em questão, ocorre uma alta quantidade de notícias sobre os crimes, provavelmente por uma competição entre os veículos midiáticos, afinal notícias como essas geram mais “cliques” e com isso, cria a aparência de que a violência teria aumentado. Portanto, o que aumenta não é a violência, mas sim a divulgação dessa violência. Essa breve história serve para exemplificar como, mesmo a parte visível da violência, age de maneira mistificadora.

  Já a violência objetiva não seria visível, e inclusive teria íntima relação com a violência subjetiva, constituindo e ampliando-a. Como exemplo, podemos citar a alta quantidade de mortes por desnutrição no Brasil, sendo, em média, 15 pessoas por dia3. Ou seja, trata-se de uma violência sistêmica, produzida por relações de produção que ocorrem (ir)racionalmente. No entanto, essa forma e suas espécies não se esgotam em si e, como já dito, constituem e ampliam a violência subjetiva.

  Contudo, apesar da divisão das formas de violência, não é possível isolar a violência subjetiva e objetiva, elas se relacionam concomitantemente, produzem e são produzidas. Não são objetos estanques, estáticos e que se formam de maneira mecânica, pelo contrário. Podemos, portanto, relacionar um exemplo da forma subjetiva da violência: o assalto, a diversos aspectos da violência objetiva, ou seja, estão interligados e em constante reciprocidade.

  Após essa intervenção sobre as formas de violência e alguns de seus aspectos, outra perspectiva me chama atenção, que é acerca do próprio conceito de violência, e de como esse conceito se torna uma abstração no debate público. Afinal, em regra, todo mundo é contrário à violência, e acredita que esta não deveria ser utilizada. No entanto, essa posição não trata do que é violência nas suas mais diversas determinações, e acaba por se tornar um conceito vazio e que, quando utilizado publicamente, funciona como uma arma conservadora para manutenção do status quo.

  Como já vimos, existe uma violência objetiva, dentro dela, a sua espécie sistêmica, que se expressa cotidianamente, mas não seria algo visível, pois ocorre indiretamente e não é possível individualizar. Porém, e se houvesse uma reação a essa forma de violência? E se essa reação tivesse que ser violenta? Nesse caso, a violência do oprimido seria equivalente à violência do opressor?

  Essas questões, que norteiam o debate sobre a violência, são regularmente colocadas, e as respostas geralmente falham, muitas vezes, por ignorar a dimensão invisível da violência, e dessa forma, não compreendem a reação violenta a essa realidade. Outra parte, ainda que compreendendo os aspectos que permeiam a violência sistémica, prefere não abrir mão dos privilégios, ou acredita na reforma como uma saída possível.

  De toda forma, é problemático o uso esvaziado da palavra violência, pois essa arbitrariedade carrega a forma do senso comum, eivada de ideologia e aprisionada na aparência. Por exemplo, os comunistas são vistos como violentos4, pois as experiências revolucionárias foram destacadas historicamente por esse conceito. Entretanto, a colonização da África não é colocada na história do liberalismo, ou seja, há um uso indiscriminado desse conceito, em que a violência tornou-se algo típico de experiências de esquerda. Portanto, é preciso, sobretudo, qualificar o debate sobre a violência, desmistificando seu uso e compreendendo as suas mais variadas dimensões. Rompendo, assim, com a forma vulgar, que é amplamente utilizada.


Notas:

  1. ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. 1° ed. São Paulo: Boitempo, 2014.
  2. ARAÚJO, Thiago Celli. Método na criminologia crítica. Introcrim. 2020. Disponível em: <https://www.introcrim.com.br/metodo-curso>. Acesso em: 10 de set. de 2020.
  3. AMÂNCIO, Thiago. Em média, 15 pessoas morrem de desnutrição por dia no Brasil. Folha de S. Paulo, SP, 19 de jul. de 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/em-media-15-pessoas-morrem-de-desnutricao-por-dia-no-brasil.shtml>. Acesso em: 16 de set. de 2020.
  4. MANOEL, Jones. Os revolucionários e a questão da violência: quem defende a paz?. 2019. (18m10s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=d6kdHZqd0uc>. Acesso em: 16 de set. de 2020.

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