Capital em geral e a estrutura de O Capital de Marx: novos insights a partir dos Manuscritos Econômicos de 1861-1863

Por Michael Heinrich, traduzido por Talles Lincoln Santos Lopes

Neste artigo, Michael Heinrich analisa os Manuscritos Econômicos de 1861-1863, de Karl Marx. A partir dessa análise, ele critica algumas das teses centrais de Rosdolsky acerca da utilização dos Grundisse para a interpretação da obra O Capital, especialmente no que se refere à utilização da categoria “capital em geral”. Heinrich oferece, ao final, novas interpretações da estrutura de O Capital, que prescindem de tal categoria.


RESUMO: Até o momento, os Grundisse, a Contribuição à crítica da economia política, e o “Urtext” da Contribuição, foram publicados nos “English-language Complete Works” [de Marx e Engels], nos volumes 28 e 20. Dos manuscritos de 1861-1863, os quais consistem em 1.472 cadernos no total, apenas o primeiro encontra-se traduzido [em língua inglesa] como as três partes das Teorias da mais-valia. Os cadernos restantes foram traduzidos [para a língua inglesa] e serão publicados em breve. O presente artigo analisa as dificuldades enfrentadas por Marx na exposição dialética da forma capitalista da reprodução social. Heinrich argumenta que os Manuscritos Econômicos de 1861-1863 explicam as mudanças no plano [da obra sobre a crítica da economia política] de Marx entre os Grundisse e O Capital.

 

A obra de Roman Rosdolsky, Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx (2001), originalmente publicada em 1968 [na Alemanha, sob o título original “Zur Entstehungsgeschichte des Marxschen Kapitals”], exerceu uma considerável e duradoura influência no debate sobre O Capital na Alemanha Ocidental, o qual teve início com a ascensão do movimento estudantil. Embora as interpretações baseadas na abordagem de Rosdolsky tenham o mérito de minar as leituras economicistas e positivistas de O Capital, tal ganho geralmente ocorreu ao custo de um ofuscamento filosófico do conteúdo social e econômico da crítica da economia política de Marx. O Capital parece, [na obra de Rosdolsky], ter de ser lido através de duas perspectivas[1]: a primeira consiste em certo entendimento da exposição dialética a partir da Lógica de Hegel, e a segunda consiste numa série de considerações metodológicas encontrada nos Grundisse, especialmente a elaboração, por Rodolsky, do conceito de “capital em geral”. Ironicamente, o arrefecimento do debate acerca de O Capital, decorrente da desarticulação da esquerda estudantil em meados dos anos 1970, coincidiu com a publicação inédita de muitos dos manuscritos que compõem os textos preparatórios de O Capital, assim como de edições superiores dos manuscritos já conhecidos, a partir da Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA)[2].

A MEGA se divide em quatro seções principais (obras, artigos e rascunhos (com exceção dos rascunhos de O Capital); O Capital e os seus textos preparatórios; cartas; excertos, resumos, notas, comentários marginais etc.). A seção II da MEGA é de particular interesse para a compreensão do desenvolvimento da teoria econômica de Marx. O primeiro volume contém os Grundisse (1857/1858). Estes são o primeiro manuscrito da teoria econômica do Marx “maduro”. O segundo volume abarca o texto “Zur Kritik der politischen ökonomie. Erstes Heft” (Contribuição à crítica da economia política), de 1859, o qual consiste apenas em dois capítulos: um sobre a mercadoria e outro sobre o dinheiro. Este segundo volume também contém um fragmento denominado de Urtext – o “texto original” – da Contribuição, o qual é de particular interesse considerando seu tratamento da lei de apropriação conforme a circulação simples de mercadorias e da transição do dinheiro para o capital, tendo em vista que nenhum dos dois temas aparece no texto finalizado. Embora estes textos já sejam ambos conhecidos através de edições anteriores (ao menos para os leitores em língua alemã), o terceiro volume (o qual consiste em seis sub-volumes) contém a primeira edição completa dos manuscritos de 1861-1863, intitulado “Zur Kritik der politischen öKonomie”. Antes da publicação integral pela MEGA, apenas as Teorias da mais-valia haviam sido publicadas a partir deste manuscrito, o qual comporta ao total cerca de 2.400 páginas impressas e é o mais longo dos manuscritos de Marx. Originalmente previsto como uma continuação da obra de 1859, o texto logo se tornou um típico manuscrito preparatório, no qual Marx se depara com problemas tanto na investigação quanto na exposição [3]. Este manuscrito é o segundo rascunho da teoria econômica de Marx. Ele representa a ligação vital entre os Grundisse e O Capital.

A edição completa do segundo rascunho da teoria econômica de Marx, escrito entre 1861 e 1863, já se constitui, certamente, como um dos resultados mais significativos do trabalho desenvolvido na MEGA. O manuscrito nos permite corrigir uma parte das teses centrais de Rosdolsky. Primeiramente, revela-se como a interpretação de O Capital feita por Rosdolsky, à luz do conceito de “capital em geral”, o qual perpassa os Grundisse, não se sustenta diante de uma série de problemas de conteúdo. E, em segundo lugar, permite-se responder à questão da mudança da estrutura de O Capital – que consiste na relação entre o conteúdo dos três volumes de O Capital e dos seis livros originalmente previstos no plano de Marx (livro sobre o capital, livro sobre a propriedade fundiária, livro sobre o trabalho assalariado, livro sobre o Estado, livro sobre o comércio exterior e livro sobre o mercado mundial).

 

“Capital em geral” nos Grundisse

 

Longe de ser uma simples subdivisão do material sob análise [Grundisse], a distinção entre “capital em geral” e “pluralidade de capitais” constituía uma abordagem metodológica que refletia uma visão específica da estrutura da sociedade burguesa. Sua originalidade pode ser vista quando a comparamos com as análises econômicas de Marx nos anos de 1840. Estas se direcionavam, principalmente, aos movimentos do mercado, e nelas Marx considerava a concorrência como o mecanismo crucial de explicação de um espectro muito diverso de fenômenos. Por isso, em Trabalho Assalariado e Capital, Marx atribuía à concorrência tanto o movimento dos salários quanto o desenvolvimento das forças produtivas (Marx, 1849). Os Cadernos sobre David Ricardo, de 1851, indicavam outra posição na qual Marx distinguia “o processo real” de sua “lei” (Marx, 1850, p. 362). Os Grundisse marcaram uma compreensão inteiramente nova sobre a concorrência. Marx escreve:

“Concorrência em geral, esta força locomotiva essencial da economia burguesa, não estabelece suas leis [da economia burguesa], mas é sua executora [executor]. Portanto, a concorrência desmedida não é um pressuposto para a validade das leis econômicas, mas sim uma consequência delas – a forma de manifestação na qual sua necessidade [das leis econômicas] é externalizada” (Marx, 1857, Vol. 28, p. 475).

Ricardo simplesmente presume a concorrência desmedida para compreender as leis do capital: a concorrência servia tão-somente como uma hipótese teórica, “não como… desenvolvimento do capital, mas como um pressuposto imaginário do capital” (Marx, 1857, Vol. 28, p. 480). De modo contrário, Marx estabeleceu a concorrência como forma de manifestação das leis do capital. Ao realizar a crítica dessa pressuposição, Marx encontrou o cerne da filosofia moral liberal-burguesa e da economia política, formulado de modo clássico pela “Fábula das Abelhas” de Mandeville e pela “Mão Invisível” de Adam Smith: notadamente, que a irrestrita busca por interesses individuais privados produzirá, no final das contas, o interesse geral. Logo no início dos Grundisse, Marx escreve

“A questão é que o próprio interesse privado já é um interesse socialmente determinado… É o interesse de pessoas privadas; mas, seu conteúdo, assim como sua forma e meios de realização, são determinados por condições sociais independentes deles” (Marx, 1857, p. 94).

O interesse geral burguês não é o resultado da busca por interesses privados, mas está presente, na verdade, no próprio ato desta busca, na medida em que já determina tais interesses privados. Isto implica o seguinte para a concorrência:

“Conceitualmente, a concorrência não é nada mais que a natureza interna do capital, sua qualidade essencial, manifestada e percebida como a ação recíproca de diversos capitais sobre si; tendência imanente realizada como necessidade exterior” (Marx, 1857, Vol. 28, p. 341)

Para Marx, a percepção de que as leis da natureza interna do capital são tão-somente externalizadas no movimento real dos capitais individuais significou uma ruptura qualitativa em relação às suas análises anteriores baseadas nas atividades do mercado. Seu problema principal tornou-se, a partir de então, encontrar as categorias que o permitissem formular adequadamente, na estrutura da sociedade burguesa, este insight. A distinção entre “capital em geral” e “pluralidade de capitais” não resume esse novo entendimento, tão fundamental para a crítica da economia política; [essa distinção entre “capital em geral” e “pluralidade de capitais”] foi simplesmente uma primeira tentativa de abordar esse novo entendimento.

Embora esta distinção [entre “capital em geral” e “pluralidade de capitais”] tenha aparecido de forma ampla nas discussões travadas nas décadas de 1960 e 1970, nenhuma análise precisa desses conceitos jamais foi realizada. Rosdolsky, por exemplo, definiu o conteúdo do “capital em geral”, com base numa passagem dos Grundisse, como a totalidade das características comuns a todos os capitais individuais (Rosdolsky, 2001, p. 52). Para Rosdolsky, [essa característica comum] era a valorização. Explicar a produção do mais-valor requer, inicialmente, uma análise do imediato processo de produção, e, em seguida, do processo de circulação, como um complemento necessário do processo de produção. Contudo, a introdução do processo de circulação faz parecer que o mais-valor é determinado pelo tempo de circulação e não, exclusivamente, pelo mais-trabalho apropriado no imediato processo de produção. Quando medido em face do capital total adiantado, o mais-valor assume a forma transformada do lucro – com o qual Rosdolsky encerra a seção sobre “capital em geral”. Não foi possível apresentar o estabelecimento de uma taxa geral de lucro uma vez que esta pressupõe a concorrência, ponto de partida a partir do qual a abstração teve de ser realizada (Rosdolsky, 2001, p. 55). A compreensão de Rosdolsky do “capital em geral” como conceito genérico que abarca todas as características comuns dos diversos capitais não se sustenta. Isto porque a taxa média de lucro também é uma característica comum a todos os capitais, porém, de acordo com Rosdolsky, deve ser excluída da exposição [do “capital em geral”]. Ademais, a definição, realizada por Rosdolsky, do conteúdo do “capital em geral”, não está de acordo com a seção planejada por Marx. Como mostram os rascunhos dos inúmeros planos – planos, acrescente-se, publicados pelo próprio Rosdolsky -, Marx não pretendia encerrar o “capital em geral” com “lucro”, mas com “juros”[4].

Nos Grundisse, Marx inicialmente utiliza o conceito de “capital em geral” na análise do processo de produção. Após avaliar os conceitos de capital usados pelos economistas burgueses, ele [Marx] resume sua própria abordagem da seguinte maneira:

“Capital, na forma que o consideramos até aqui, como uma relação de valor e dinheiro, a qual deve ser distinguida, é capital em geral, isto é, a quintessência das características que distinguem o valor como capital do valor como simples valor ou como dinheiro” (Marx, 1857, Vol. 28, p. 236).

Isto é, “capital em geral” deveria abarcar aquelas características que devem ser acrescentadas ao valor a fim de que este se torne capital: são características que, como Marx escreveu, “transformam o valor em capital” e que, por essa razão, também se tornam características de cada capital individual. Contudo, a exposição do “capital em geral” não apenas abstrai a existência de uma pluralidade de capitais, mas também exclui o capital individual, considerado isoladamente:

“Entretanto, nós ainda não estamos preocupados nem com uma forma particular de capital, tampouco com um capital individual distinto de outros capitais individuais etc. Estamos diante do seu [do capital] processo de devir. Esse processo dialético de devir é apenas a expressão ideal do movimento real através do qual o capital vem a ser” (Marx, 1857, Vol. 28, p. 229).

“Capital em geral” não deve ser compreendido como o conceito de um objeto real, como um capital individual: não há correlação empírica direta. O “processo dialético do seu devir”, observado no [conceito de] “capital em geral”, é a reprodução no pensamento da natureza interna do capital: as características que transformam o valor em capital devem ser entendidas e compreendidas neste âmbito[5].

Marx não partiu do capital individual, como ele aparece (como lucro e juros) e como ele existe na concorrência. Ele pretendia começar através da elaboração das características do capital com base na lei do valor em geral. Portanto, ele precisava mostrar como era possível a produção de mais-valor com base na troca de equivalentes e como o mais-valor, ao final, transformava-se nas formas lucro e juros, conforme estas [formas] aparecem na superfície da sociedade burguesa. Como o capital não havia sido exposto nas formas em que aparece na concorrência, Marx foi levado a abstrair a concorrência durante este processo de desenvolvimento conceitual. É de crucial importância, aqui, [compreender] aquilo que Marx inclui sob [a noção de] “concorrência”: não apenas o movimento real dos capitais individuais, mas também qualquer relação que envolva capitais distintos, independentemente do nível de abstração. Numa passagem dos Grundisse (após Marx ter acabado de expor os problemas do processo de circulação), ele observa, com firmeza:

“Tendo em vista que nós estamos lidando aqui com capital como tal, capital no processo de formação – a pluralidade dos capitais não existe ainda para nós – tudo que temos fora do capital não é nada além do próprio capital…” (Marx, 1857, vol. 29, p. 115).

A exposição das características do “capital em geral” abstraindo a concorrência implicava uma restrição considerável do conteúdo do “capital em geral”, dado o amplo conhecimento de Marx sobre concorrência. Por outro lado, como se tem normalmente negligenciado, há um conteúdo específico pré-determinado que deve ser exposto. O capital tem de ser conceituado, ao final, dentro da seção sobre “capital em geral”, incluindo todas as características que se manifestam na concorrência. Isto porque, 

“Na realidade, aquilo que é inerente à natureza do capital é externalizado, como uma necessidade exterior, tão-somente através da concorrência, a qual não passa da imposição, pelos distintos capitais, um sobre o outro e sobre si mesmos, das determinações imanentes ao capital” (Marx, 1857, Vol. 29, p. 39).

Portanto, Marx pretendia que a seção sobre “capital em geral” atingisse dois objetivos. De um lado, o conteúdo do “capital em geral” devia ser exposto em um nível específico de abstração – notadamente, abstração da concorrência (a qual incluía tanto o movimento real quanto todas as relações entre capitais distintos). Por outro lado, este conteúdo precisava também ter um alcance específico, notadamente aquelas características visíveis na concorrência. 

O atendimento simultâneo de ambos os objetivos evidenciou o problema fundamental de toda essa abordagem [distinção entre “capital em geral” e “pluralidade de capitais”].

 

A dissolução do “capital em geral” nos Manuscritos Econômicos de 1861-1863

 

Embora Marx tivesse planejado sua “Economia” por muito tempo, ele não tinha nenhum plano detalhado em mente quando começou a escrevê-la em 1857, como se evidencia da estrutura crua presente na “Introdução” aos Grundisse (Marx, 1857, Vol. 28, p. 45). Rascunhos de planos somente puderam surgir durante o curso de sua escrita, como resultado do desenvolvimento da sua compreensão da estrutura da sociedade burguesa. Ao terminar os Grundisse, Marx pretendia que sua obra econômica consistisse em seis livros: capital, propriedade fundiária, trabalho assalariado, Estado, comércio exterior e mercado mundial. Os três primeiros livros deveriam estabelecer “as condições econômicas de existência das três grandes classes nas quais está dividia a moderna sociedade burguesa” (Marx, 1859, p. 261). No que se refere ao livro sobre o capital, estavam previstas as seguintes seções: a) capital em geral, b) concorrência, c) sistema de crédito, d) capital dividido em ações (Letter, Marx to Engels, 2 April 1858, Selected Correspondence, p. 97). A seção sobre “capital em geral” deveria abranger: 1. valor, 2. dinheiro, 3. capital em geral (cf. Letter, 11 March 1857, MEW 29, p. 554). A Contribuição à crítica da economia política (1859), Primeiro Livro, a primeira e única edição da obra planejada, tratou dos dois primeiros pontos [valor e dinheiro]. Em 1861, Marx iniciou a escrita do terceiro ponto, o capítulo sobre “capital em geral” (tanto a primeira seção quanto seu terceiro capítulo têm o mesmo nome). Contudo, logo o texto transformou-se em um manuscrito preparatório, repleto de digressões e antecipações de temas posteriores. Foi durante o curso deste manuscrito que Marx desistiu de publicar uma continuação direta da Contribuição de 1859 e decidiu elaborar uma nova obra com o título de O Capital (Letter, 18 December 1862, MEW 30, p. 639). (Eu pretendo analisar a relação entre os três volumes de O Capital e o plano original [de seis livros] na seção final abaixo). Os Manuscritos de 1861-1863 revelam as dificuldades de Marx em expor [o conceito de] “capital em geral” e mostram como essa abordagem foi abandonada ao final.

As primeiras dificuldades já estavam evidentes nos Grundisse. Durante a exposição do processo de circulação do capital, Marx deparou-se com o problema de que tanto os elementos materiais do capital quanto os meios de subsistência precisavam ser reproduzidos, além [do problema de] que tal reprodução simultânea só poderia ser exposta ao se considerar a relação entre diferentes capitais. Ou seja, as características imanentes do processo de circulação necessitam da exposição de diferentes capitais. No entanto, [esta exposição] não seria possível em virtude do nível de abstração pretendido para o [conceito de] “capital em geral”. Nesse ponto, Marx não podia fazer nada além de oferecer a garantia [assurance]:

“Aqui, de qualquer modo, nós podemos tratar de um único capital em ação, uma vez que estamos considerando o capital como tal” (Marx, 1857, Vol. 29, p. 111).

Outro problema surge com a lei da queda tendencial da taxa de lucro. Se há uma lei geral, então esta deve ser exposta antes da concorrência: isto é, na seção sobre “capital em geral”. Por outro lado, para Marx estava nítido que a queda era da taxa média de lucro (Marx, 1857, Vol. 29, p. 132-3). Contudo, a taxa média de lucro não poderia ser tratada até a seção sobre concorrência, [isto é,] após a lei de sua queda. E, por fim, a incerteza de Marx [quanto à utilização do conceito de “capital em geral”] também se evidencia na observação de que “‘capital em geral’ não era simplesmente uma abstração, mas também tinha uma existência real”, a qual havia sido reconhecida pelos economistas burgueses em sua “doctrine of evening up” (Marx, 1857, Vol. 28, p. 378). Entretanto, Marx nunca especificou o que ele entendia por esta existência real; na verdade, ele usou essa expressão apenas uma vez [6]. 

Os Manuscritos de 1861-1863 revelam alterações na abordagem [metodológica de Marx], em relação aos Grundisse, as quais resultam de um estágio mais avançado de análise. Por exemplo, Marx trata, pela primeira vez de forma sistemática, do desenvolvimento das forças produtivas como um método de produção de mais-valor relativo. A seção sobre o processo de produção do capital também abarca temas que os Grundisse haviam destinado ao Livro sobre Trabalho Assalariado, como a duração da jornada de trabalho (Marx, 1861-63; p. 158ff) e o trabalho de mulheres e de crianças (ibid. p. 303ff). Esta incorporação de maneira alguma foi arbitrária, tendo decorrido do reconhecimento de que estes [temas] eram tendências imanentes ao capital. [Essa incorporação] remete, também, ao posterior abandono de tratar separadamente, em três volumes, as condições de existência das três classes principais [trabalhadores assalariados, capitalistas e proprietários fundiários]. De maneira interessante, Marx agora propõe-se a incorporar a acumulação na exposição do processo de produção. Esta [a acumulação] havia sido excluída dos Grundisse em virtude de requerer a consideração da pluralidade de capitais (Marx, 1857, vol. 28, 245f). Enquanto, nos Grundisse, Marx compreendia a acumulação, transformação de lucro em capital, como um processo de um capital individual, os Manuscritos de 1861-1863 incluíram a transformação de mais-valor em capital.

Embora tais alterações pudessem facilmente ser abarcadas no conceito de “capital em geral”, houve alterações que o superaram [o conceito de “capital em geral”], como a exposição da reprodução e da circulação do capital social total e da taxa média de lucro.

Marx foi impelido a analisar o capital social total em sua crítica do “Smith’s dogma”. Adam Smith havia sustentado que o valor total de uma mercadoria se resolve [resolves itself] em salários e lucro (incluindo a renda [rent]), assim como a parte do capital constante que participa do valor da mercadoria poderia também se resolver em salários e lucro [could also be resolved into wages and profit]. Isto levou à compreensão por Adam Smith de que o valor total anual das mercadorias se resolvia [resolved itself] em salários e lucro. Em contraste, Marx acreditava que a parte constante do capital não poderia ser tratada dessa maneira. Contudo, [esta crítica] o conduziu ao problema de 

“como é possível que os lucros e os salários anuais comprem o fornecimento anual de mercadorias, as quais, além do lucro e dos salários, também contêm capital constante (Marx, 1861-61, p. 398, translated in Theories of Surplus Value, Part 1, p. 107).

Marx, por fim, resolveu este problema através da distinção entre dois âmbitos [departments] do capital social total – um que produz os meios de produção e outro que produz os meios de consumo – e do intercâmbio [exchange] entre esses dois âmbitos. Uma série de passagens (Marx, 1861-63, p. 402, 436) mostra que Marx pretendia expor este ponto dentro do processo de circulação do capital – isto é, na seção sobre “capital em geral”. Contudo, isto marcaria um abandono do nível de abstração que ele indicara anteriormente: não apenas a categoria capital social total não se encaixava adequadamente à distinção entre “capital em geral” e concorrência, como também não fora sistematicamente desenvolvida nos Grundisse. Os vários âmbitos do capital social total também eram “formas particulares” de capital e, assim, estavam expressamente excluídos da exposição do “capital em geral” (cf. the quote above from Marx, 1857, vol. 28, p. 236).

Marx tratou do problema sobre se a renda [rent] absoluta é conciliável com a lei do valor, numa digressão sobre a taxa média de lucro, e observou:

“concorrência entre capitais procura, assim, tratar cada capital como uma parte do capital agregado e, por conseguinte, [procura] regular sua participação [de cada capital] no mais-valor e, consequentemente, no lucro (Marx, 1861-63, p. 685, translated in Theories of Surplus Value, Part 2, p. 29).

Posteriormente, Marx torna sua exposição mais precisa ao distinguir o duplo movimento da concorrência: na mesma esfera de produção, a concorrência conduz ao estabelecimento do valor de mercado unitário [unitary market-value], e entre esferas de produção, a concorrência nivela os valores [evens the values up] como “preços médios” (os quais Marx inicialmente denominou “preços de produção” em O Capital), o que viabilizava o estabelecimento de uma taxa média de lucro (Marx, 1861-63, p. 777, 851ff). Marx pôde, então, explicar a possibilidade da renda absoluta com base na lei do valor: se o valor dos produtos da terra está acima dos preços médios, ainda assim eles são comercializados no seu valor (tendo em vista que não participam no processo de compensação [equalisation] que estabelece a taxa média de lucro), produzindo um lucro excedente em relação à taxa média de lucro, o qual o proprietário fundiário apropria como renda (absoluta) (Marx, 1861-63, p. 692). Marx, então, decidiu incorporar tanto o processo de compensação [equalisation] que ocorre na taxa média de lucro quanto a renda absoluta (na verdade, como um exemplo deste processo) na seção sobre “capital em geral” (Marx, 1861-63, p. 907 and letter to Engels, 2 August 1862, Selected Correspondence, p. 120). Embora Marx não ofereça uma justificação explícita, há uma referência subsequente no excurso sobre “Rendimento [Revenue] e suas fontes”. Nele, Marx mantém sua posição de que juros, que deveria concluir a exposição sobre “capital em geral” conforme os Grundisse, pressupõem lucro e, na verdade, a taxa média de lucro (Marx, 1861-63, p. 1461).

A seção “Capital e Lucro”, uma das seções mais importantes dos Manuscritos de 1861-1863, demonstra as dificuldades que Marx teve para expor a taxa média de lucro (e, portanto, também parte da “concorrência”) dentro do “capital em geral”. Embora quisesse tratar da taxa média de lucro, Marx pretendia retomar a “relação da concorrência” tão-somente como um “exemplo” (Marx, 1861-63, p. 1605). E, pouco depois, lemos, com certa reserva:

“Uma investigação mais profunda deste ponto pertence ao capítulo sobre concorrência. Não obstante, as considerações gerais e decisivas devem ser acrescentadas aqui” (Marx, 1861-63, p. 1623).

Marx resume o que seriam essas “considerações gerais e decisivas” nos seguintes termos:

“Na verdade, a questão pode ser explicitada da seguinte maneira: lucro – como primeira transformação do mais-valor – e a taxa de lucro nessa primeira transformação, expressa mais-valor em proporção ao capital individual do qual é produto…

Lucro médio ou empírico [Empirical or average profit] expressa a mesma transformação, o mesmo processo, mas em relação ao montante total de mais-valor, e, por conseguinte, ao mais-valor apropriado por toda a classe capitalista… A segunda transformação é um resultado necessário da primeira, a qual decorre da natureza do próprio capital” (Marx, 1861-63, p. 1629)

Marx pretendia, aqui, expor a relação entre mais-valor e o capital total, tanto como processo de um capital individual quanto como processo do capital social total. Ele tenta manter a distinção entre “capital em geral” e “concorrência” enfatizando a concorrência como mero “agente” [“agency”] através do qual a taxa média de lucro é determinada (Marx, 1861-63, p. 1628).

Não obstante, “capital em geral” já está em questionamento, não apenas pelo fato de que os lucros médios – os quais Marx agora reconhece como pertencente à natureza do capital – pressupõem uma análise da concorrência; mas também porque não pode ser conciliado com a distinção entre capital individual e capital social total. A categoria “capital em geral” começa a se dissolver. Não é mais simplesmente a “quintessência das características que distinguem o valor como capital do valor e do dinheiro” (Marx, 1857, vol. 28, p. 236) e, portanto, também não é capital individual. Embora Marx não explicite este problema, aparentemente ele tinha consciência das deficiências de sua análise. Por isso, ele escreve, no ponto seguinte, tratando da lei da queda tendencial da taxa de lucro:

“Assim, portanto, mais uma vez estamos em terreno firme, onde, sem entrar na concorrência entre capitais, podemos derivar a lei geral diretamente da natureza geral do capital, tal como desenvolvida até agora” (Marx, 1861-63, p. 1632).

Mesmo após a decisão de Marx de não publicar seu manuscrito como uma continuação da Contribuição de 1859, mas sim como uma nova obra, O Capital, ele manteve a distinção entre “capital em geral” e “concorrência”, como demonstra sua carta a Kugelman, de 28 de dezembro de 1862. Em janeiro de 1863, Marx rascunhou novos planos para as seções sobre “O Processo de Produção” e sobre “Capital e Lucro”, nos quais estabeleceu as mudanças descritas [acima] e a exposição da taxa média de lucro (Marx, 1861-63, pp. 1816ff and 1861ff). Os editores da MEGA interpretaram esse ato da seguinte maneira:

“O trabalho intensivo de Marx na elaboração deste manuscrito culminou em um novo plano, estruturado em janeiro de 1863, no Caderno XVIII. Este novo plano marcou a definição da estrutura do que deveria ser O Capital. A inclusão da teoria do lucro médio na exposição assinalou o abandono da distinção, anteriormente pretendida, entre capital em geral e concorrência, e a expressão ‘capital em geral’ não foi mais usada, posteriormente, por Marx” (MEGA, Part II, Vol. 3.1, Introduction, p. 12).

No entanto, isto não está correto. Embora as alterações feitas no novo plano ponham em questionamento a antiga concepção de “capital em geral”, Marx não reconheceu isso e tentou manter sua abordagem anterior. Por exemplo, não apenas sua carta a Kugelmann, escrita poucos dias depois de concluir o novo plano, ainda se refere à distinção entre “capital em geral” e “concorrência”, como a alegação dos editores da MEGA, de que Marx não mais utilizou o termo “capital em geral”, também não está correta. O termo apareceu ao menos uma vez (Marx, 1861-63, p. 2099). Primeiramente e mais importante, Marx não poderia “abandonar” a distinção entre “capital em geral” e “concorrência”, como alegam os editores da MEGA. Essa distinção era constitutiva de sua inteira exposição. Para que pudesse abandoná-la (o que de fato ocorre posteriormente), ele precisaria de uma nova abordagem metodológica: e Marx não a desenvolve nos Manuscritos de 1861-1863. Apesar de ter encontrado o conteúdo essencial da futura obra O Capital, Marx ainda não havia encontrado sua estrutura (que é mais do que a simples ordenação do conteúdo).

As dificuldades com as quais Marx se deparou na exposição do “capital em geral” nos Manuscritos de 1861-1863 podem ser resumidas a seguir. “Capital em geral” precisava abarcar um conteúdo específico, notadamente todas as características que aparecem no movimento real dos capitais, na concorrência; por outro lado, este conteúdo devia ser apresentado em um nível específico de abstração. Marx também foi compelido a expor a reprodução do capital social total e a taxa média de lucro. Para fazê-lo, primeiramente Marx abandonou o nível anterior de abstração para dar conta da análise de um movimento particular da concorrência; em segundo lugar, ao contrapor capital individual e capital social total, Marx utilizou categorias que superam a distinção anterior entre “capital em geral” e “concorrência”. Embora não estivesse totalmente claro para Marx, dissolveu-se a sua concepção metodológica original: contudo, não havia ainda uma nova no horizonte.

 

Interpretação da mudança dos planos de Marx

 

Rosdolsky tratou em detalhe a relação entre os três volumes de O Capital e os seis livros originalmente planejados. Ele estabeleceu uma separação precisa entre os três primeiros livros (capital, renda da terra, trabalho assalariado) e os três finais (Estado, comércio exterior, mercado mundial) e, corretamente, apontou que O Capital não abrange os assuntos destinados aos três últimos livros, mas contém os elementos principais dos três primeiros. Em específico, O Capital não apenas abarca o conteúdo destinado à seção sobre “capital em geral”, como também os temas planejados originalmente para as seções seguintes (concorrência, sistema de crédito, capital dividido em ações). Embora o esquema de Rosdolsky acertadamente reproduza a alteração de local dos vários temas, sua tese, segundo a qual a mudança na estrutura consistiu tão-somente num simples rearranjo dos capítulos individuais, está errada. Rosdolsky via a mudança no plano de Marx como um

“progressivo estreitamento da estrutura original… a qual correspondeu, contudo, a uma expansão da parte remanescente. Embora ele [Marx] tivesse desistido de expor, separadamente, a concorrência e o capital dividido em ações… a primeira seção do primeiro livro, que trata sobre “capital em geral”, foi aos poucos expandida para abarcá-los” (Rosdolsky, 2001, p. 51-56)

Contudo, Rosdolsky falha ao não questionar se a expansão da seção sobre “capital em geral” poderia ocorrer sem uma ruptura com a abordagem subjacente.

“Assim como o plano estrutural original, os Volumes I e II de O Capital estão restritos ao… ‘capital em geral’ … A real diferença metodológica surge no Volume III de O Capital. Este supera o contexto do ‘capital em geral’” (Rosdolsky, 2001, pp. 69-70). “Assim, a prévia e fundamental distinção entre a análise do ‘capital em geral’ e aquela da ‘concorrência’ se encerra aqui” (Rosdolsky, 2001, p. 70).

Para Rosdolsky, portanto, Marx tratou a parte do “capital em geral” nos dois primeiros volumes de O Capital, e a parte restante, juntamente com a “concorrência”, no terceiro volume. Ao que parece, para Rosdolsky, a mudança de plano de Marx envolveu uma simples reordenação dos temas individuais. Não é de surpreender, portanto, que Rosdolsky seja incapaz de citar qualquer razão concreta que justifique a necessidade de mudança no plano, além da alegação de que a estrita distinção entre “capital em geral” e “concorrência” foi um pontapé essencial (Rosdolsky, 2001, p. 51), posteriormente abandonado como uma limitação supérflua e limitante (Rosdolsky, 2001, p. 52).

Rosdolsky compreendida a alteração de plano como uma mera reorganização dos conteúdos, deixando a abordagem subjacente intacta:

“Nós, portanto, consideramos que as categorias ‘capital em geral’ e ‘pluralidade de capitais’ fornecem a chave para a compreensão, não apenas da estrutura original, mas também da obra posterior, isto é, O Capital” (Rosdolsky, 2001, p. 50).

Essa compreensão, errônea, exerceu uma ampla influência nas interpretações posteriores de O Capital[7]. Como já exposto, “capital em geral” implica que um específico conteúdo é apresentado num específico nível de abstração; tal conceito não poderia sobreviver a um simples reagrupamento de temas individuais. O Capital, portanto, contém uma nova abordagem estrutural.

Contribuições recentes da República Democrática Alemã e da URSS também sustentaram que O Capital superou o plano estrutural definido pela categoria “capital em geral”. Contudo, os autores envolvidos nestas contribuições não foram capazes de explicar por que, nem especificar a nova concepção estrutural. Jahn/Niez (1978) afirmam, por exemplo, que a “estrita versão do ‘capital em geral’ teria dificultado” a incorporação das descobertas realizadas entre 1861 e 1863 e que, portanto, teve de ser modificada.

No entanto, eles não explicam o porquê da modificação, nem como ela foi realizada. Por fim, eles contradizem a própria posição ao afirmar “que a noção de ‘capital em geral’ marca toda a exposição de O Capital” (Jahn/Niezold, 1978, p. 168). Ternovski/Tscherpurenko (1987) caracterizam “capital em geral simplesmente como um ‘universal abstrato’, mas não avançam [na análise] ao afirmar, meramente, que a ‘restrição metodológica’ [do conceito de “capital em geral”] contradizia as ‘tarefas teóricas’” (Ternovski/Tscherpurenko, 1987, p. 179)[8].

 

A estrutura de O Capital

 

O Capital, publicado em 1867, não faz menção aos livros planejados em 1859, tampouco os três volumes de O Capital são idênticos ao anteriormente previsto “Livro sobre Capital”. Os três volumes também abarcam importantes seções dos livros planejados sobre propriedade fundiária e trabalho assalariado. O “estudo específico sobre trabalho assalariado” (Marx, 1867, p. 683), ao qual Marx faz referência, e o tratamento independente da propriedade fundiária (Marx, 1894, p. 752), constituem estudos específicos em níveis muitos distintos de abstração. A exposição de Marx sobre as lutas pelo limite da jornada normal de trabalho, os efeitos da maquinaria nas condições de trabalho, a lei geral de acumulação capitalista e sobre salários e renda [rent] como modalidades de rendimento [revenue], abarcaram a análise das “condições econômicas de existência das três grandes classes” (Marx, 1859, p. 19), inicialmente prevista como objeto dos três primeiros livros. A ligação íntima entre essas condições de existência e as leis do capital tornou impossível tratá-las separadamente. Marx, então, escolheu como objeto de O Capital a análise do “modo capitalista de produção” (Marx, 1867, p. 90).

No que se refere às quatro seções originalmente planejadas para o Livro sobre Capital (capital em geral, concorrência, sistema de crédito, capital dividido em ações), O Capital contém os conteúdos essenciais de todas elas, embora não nesta ordem. Rosdolsky corretamente apontou a mudança na localização dos temas. Contudo, houve também uma alteração na abordagem metodológica que estruturou a exposição. O Capital não pode mais ser compreendido nos termos da distinção anterior entre “capital em geral” e “concorrência”: o conceito de “capital em geral” foi abandonado. O reconhecimento, por Marx, desse processo, repousa no fato de que “capital em geral” não é usado nem como título de capítulo, tampouco ao longo do texto de O Capital.

A dissolução da abordagem anterior não foi inspirada por considerações metodológicas genéricas, tampouco foi esquecida arbitrariamente, mas teve de ser abandonada porque não poderia mais se sustentar. “Capital em geral” foi abandonado porque não era mais possível elaborar todas as determinações da forma (Formbestimmungen) necessárias para a transição da “generalidade” para o “movimento real” abstraindo-se do movimento da pluralidade de capitais. Era necessário considerar a relação específica entre capital individual e capital social total, tanto no processo de reprodução, quanto no processo de compensação [equalisation] que produz a taxa média de lucro. Contudo, a exposição desta relação [entre capital individual e capital social total] parecia levar a uma tautologia. De um lado, os capitais individuais teriam que ser analisados independentemente e aprioristicamente em relação ao capital social total, o qual eles constituem. Por outro lado, o capital total impõe limites ao movimento dos capitais individuais, de modo que a exposição dos capitais individuais pressupõe a exposição do capital total. Marx lidou com esse problema em O Capital tratando o capital individual e a constituição do capital social total em diferentes níveis de abstração. Isto é, nem o capital individual nem o capital social total, o qual Marx inicialmente estabeleceu como seu objeto de estudo, são os fenômenos determinados em última instância que parecem ser [finally determined phenomena which they appear to be] do ponto de vista da observação empírica. Em vez da abordagem anterior baseada na distinção entre “capital em geral” e “concorrência”, O Capital trata dos capitais individuais e da constituição do capital social total em três níveis sucessivos: o imediato processo de produção, o processo de circulação e o processo global, que pressupõe a unidade da produção e da circulação.

O Volume I de O Capital analisa o capital individual no nível do imediato [9]processo de produção, abstraindo sua interação com outros capitais. A preocupação inicial de Marx é com a produção do mais-valor e com a acumulação de capital. O Capítulo 25 marca o início do tratamento do capital social total. Nesse ponto da exposição, capitais individuais são distintos entre si tão-somente pela grandeza e composição orgânica; razão pela qual apenas estes aspectos são considerados no tratamento inicial do capital social total. O capital total é exposto meramente como a soma aritmética dos capitais individuais. Contudo, mesmo neste nível de abstração, o efeito do movimento do capital total sobre os capitais indivisas torna-se visível e é ilustrado nas duas primeiras subseções do Capítulo 25. O nível de análise seguinte, o processo de circulação do capital [Volume II], inicia com o tratamento do circuit and turnover do capital individual [10]. Entretanto, aqui [na exposição do processo de circulação do capital], os capitais individuais não mais existem meramente justapostos, e o capital social total deixa de ser a mera soma dos capitais individuais. Marx afirma:

“Contudo, os circuitos [circuits] dos capitais individuais são interligados, eles pressupõem um ao outro e condicionam um ao outro, e é exatamente por serem interligados dessa forma que eles constituem o movimento do capital social total” (Marx, 1885, p. 429).

O capital total é, portanto, considerado não apenas da perspectiva da acumulação, mas também da reprodução. E, na medida em que este processo requer certo grau de proporcionalidade, tanto no que se refere ao conteúdo material quanto ao valor, ele [o processo de circulação do capital] impõe limites ao movimento dos capitais individuais. No Volume III de O Capital, no qual é estabelecido o processo global de acumulação capitalista [process of capitalist accumulation as a whole] como unidade dos processos de produção e circulação, Marx expõe a transformação do mais-valor em lucro inicialmente como um processo envolvendo o capital individual. Neste ponto, os capitais individuais, que produzem lucro, constituem o capital social total ao estabelecer uma taxa geral de lucro. O processo através do qual isso acontece não é aquele que se dá meramente através da ligação de seus circuitos [circuits], mas através da “concorrência”, não no sentido da economia burguesa de uma concorrência perfeita, mas como a forma específica da reprodução social (Verqesellschaftunq Sweise), a qual transforma capitais individuais em componentes homogêneos do capital social total:

“Esta é a forma pela qual o capital toma consciência de si como poder social, pela qual cada capitalista participa conforme sua parte [in proportion to his share] no capital social total” (Marx, 1894, p. 297).

Embora a taxa geral de lucro seja estabelecida, primeiramente, na concorrência entre capitais individuais, ela aparece como um pressuposto finalizado em face do capital individual e, por conseguinte, determina seu movimento [do capital individual]. Em cada um dos três níveis [processo imediato de produção, processo de circulação e processo global], portanto, o que é exposto é, primeiramente, o capital individual, depois a constituição do capital social total a partir dos capitais individuais, juntamente com o efeito retroativo do capital social total sobre o movimento dos capitais individuais.

Nós demonstramos acima que a diferença fundamental entre os Grundisse e as análises econômicas de Marx dos anos 1840 consiste no reconhecimento da distinção entre as leis imanentes do capital e sua manifestação no movimento real dos vários capitais. Marx tentou dar conta dessa nova compreensão através da distinção entre “capital em geral” e “concorrência”. A ruptura com essa abordagem [distinção entre “capital em geral” e “concorrência”] em O Capital não significou que este insight [de que o movimento real é a manifestação, como necessidade exterior, da natureza interna do capital] se perdeu. A abordagem anterior incluiu a visão definitiva de como o “movimento real dos capitais”, a ser exposto na “concorrência”, devia ser compreendido: como todas as circunstâncias e relações que surgissem na consideração de vários capitais, independentemente do nível de abstração. A exposição das leis imanentes do capital, portanto, e somente por essa razão, tinha de ser realizada abstraindo-se de todas as relações que envolvessem vários capitais. Por outro lado, em O Capital, Marx reconhece que o “movimento real da concorrência”, o qual tão-somente manifesta, mas não cria as leis do capital, não é idêntico ao movimento da pluralidade de capitais, apenas constituindo uma parte deste. E essa parte também está excluída de O Capital:

“Na exposição da coisificação das relações de produção e da autonomia que elas adquirem para os agentes de produção, nós não entraremos na forma através da qual estas relações aparecem para ele [os agentes da produção] como leis sobrenaturais, dominando-os independentemente da vontade deles, na forma em que o mercado mundial e suas conjunturas, o movimento dos preços de mercado, os ciclos da indústria e do comércio e a alternância entre prosperidade e crise prevalecem sobre eles como uma necessidade cega. Isto porque o real movimento da concorrência encontra-se fora do nosso plano e nós pretendemos tão-somente expor a organização interna do modo de produção capitalista, em sua média ideal” (Marx, 1894, p. 969f. my emphasis).

No entanto, essa abordagem não é totalmente sustentada no Volume III de O Capital. As investigações de Marx na Parte V, em específico, não estão finalizadas e a exposição da “média ideal” ocorre através do estudo dos processos concretos de crises e do sistema contemporâneo inglês de crédito. Há também a questão fundamental de até que ponto crises e sistema de crédito podem ser expostos no nível previsto de abstração. Por fim, uma questão surge ainda sobre como o estudo do “movimento real” da concorrência deve ser conduzido: simplesmente pela “aplicação” das leis gerais a um período histórico concreto ou um entendimento de como estas leis gerais são realizadas no “movimento real” demandaria uma investigação da relação historicamente específica entre os âmbitos político e econômico e sua materialização  [da relação entre a política e a economia] nas formas institucionalizadas [institutitional forms].

 

NOTAS DE RODAPÉ

[1] Este artigo é uma versão revisada de um paper originalmente publicado em 1986 na PROKLA 65, sob o título “Hegel, die ‘Grundisse’ und das ‘Kapital’”. Tal publicação inclui uma seção sobre os problemas da “exposição dialética”. [A presente tradução, por sua vez, é do artigo “Capital in general and the structure of Marx’s Capital: New insights from Marx’s ‘Economic Manuscripts of 1861-63’”, traduzido do alemão para o inglês por Pete Burgess, e publicado na revista Capital & Class, em primeiro de julho de 1989. Apenas a obra de Rosdolsky foi referenciada em sua edição brasileira. As demais referências, inclusive as citações, estão conforme a edição original, em inglês ou alemão, conforme o caso. As adequações realizadas para o português brasileiro, bem como outras informações acrescentadas pelo tradutor, estão indicadas por colchetes. Infelizmente a versão do artigo em inglês não inclui a seção em que Heinrich debate certa consideração acrítica das categorias da Lógica de Hegel para a compreensão da exposição de Marx em O Capital].

[2] MEGA se difere das demais compilações das obras de Marx e Engels, publicadas em vários períodos, em dois aspectos. Primeiramente, pretende ser uma edição completa de toda a produção escrita de Marx e Engels; não apenas tal tarefa implica publicar todas as suas obras finalizadas, manuscritos e cartas, mas também todos os excertos, rascunhos, notas marginais etc. Em segundo lugar, MEGA é editada conforme princípios editoriais distintos daqueles de compilações anteriores. Os textos são publicados em completa correspondência com os originais, ou seja, na sua língua original, com a ortografia original e, particularmente no caso de trabalhos incompletos e textos fragmentados, sem nenhuma tentativa de ordenação do texto com base na obra finalizada a que se refere. Cada volume acompanha, normalmente, um volume tão grande quanto de anexos, situando a história do texto, descrevendo os manuscritos e expondo todas as variações do texto (tanto em virtude de diferentes edições, quanto em decorrência de revisões feitas à mão). Também são apresentadas explicações históricas e teóricas, uma bibliografia de fontes usadas por Marx e Engels, um índice onomástico e um índice geral. Por fim, cada um dos volumes apresenta uma introdução feita pelos editores, a qual fornece um comentário sobre o texto e seu status no desenvolvimento do marxismo. 

[3] Portanto, Teorias da mais-valia não pode ser considerado como o manuscrito do quarto volume de O Capital, o qual só foi planejado posteriormente. 

 

[4] Outras interpretações elaboradas em estudos mais recentes sobre a alteração que Marx realizou no plano da estrutura de O Capital são igualmente insuficientes (Heinrich, 1982). Um exemplo extremo é o texto de Wolfgang Müller, um dos principais pesquisadores da República Democrática Alemã. Ele inicialmente defende que “capital em geral” equivale à essência e “concorrência” equivale às formas de manifestação (Müller, 1978, p. 21), e, posteriormente, identifica “capital em geral” com a emergência histórica do capital e “concorrência” com seu desenvolvimento completo (Müller, 1978, p. 35). A consequência dessa concepção é de que essência e forma de manifestação existiriam em uma relação de sucessão no tempo. 

 

[5] O “movimento real através do qual capital vem a ser”, expresso no “processo dialético do seu devir”, não é a emergência histórica do capital, mas sim o processo real, cotidiano, através do qual valor é transformado em capital.

 

[6] Este fato não impediu o “Projektgruppe Entwicklung des Marxschens Systems” CPEM, um grupo teórico que exerceu uma considerável influência no debate sobre O Capital na Alemanha Ocidental nos anos 1970, de basear sua inteira interpretação nesse conceito (PEM, 1975,; PEM, 1978, Otto/Bischoff et. Al., 1984).

 

[7] É a intepretação adotada por Mandel em sua introdução à edição da Penguin de O Capital, na qual ele enquadra os dois primeiros volumes como “capital em geral” e o terceiro como “concorrência” (Mandel, 1976, p. 29).

 

[8] Os editores da MEGA também são bastante imprecisos, em sua Introdução ao primeiro volume de O Capital, sobre o fato de Marx ter percebido a “limitação de conteúdo” do “capital em geral” (MEGA, II Abt., Band 5, Introduction, p. 36) e, portanto, não tê-lo mais utilizado como “perspectiva estrutural principal” (ibid. p. 41).

 

[9] Marx sintetiza o Volume I de O Capital nos seguintes termos: “Estávamos tratando, até então, do processo imediato de produção, o qual foi exposto a cada etapa como o processo de um capital individual” (Marx, 1885, p. 470).

[10] E, no Volume II: “Tratamos, tanto na Parte 1 como na Parte 2, tão-somente do capital individual, o movimento de uma parte autônoma do capital social” (Marx, 1885, p. 429).

 

REFERÊNCIAS

 

Heinrich, Michael (1982). ‘Das “Kapital im Allgemeinen” and “Konkurrenz der vielen Kapitalien” in der geplanten “Kritik der politischen okonomie” and im “Kapital” von Karl Marx’. Unpublished M.A. thesis (Diplomarbeit), Free University of Berlin (West).

 

Jahn, Wolfgang and Nietzold, Roland (1978). ‘Probleme der Entwicklung der Marxschen politischen okonomie im Zeitraum von 1850 bis 1863’ in Marx Engels Jahrbuch 1, Berlin (GDR).

 

Mandel, Ernest (1976). ‘Introduction’ in Karl Marx, Capital, Vol. 1. Penguin Books, Harmondsworth.

 

Marx, Karl (1849). ‘Wage Labour and Capital’ in Selected Works in One Volume. Lawrence and Wishart, London, pp. 71-93.

 

Marx, Karl (1850). ‘Londoner Hefte 1850-53’ in MEGA IV Abteilung, Vol. 8, Berlin (DDR).

 

Marx, Karl (1857). Outlines of the Critique of Political Economy [the Grundrisse] in Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, Vols. 28 and 29. Lawrence and Wishart, London (1986).

 

Marx, Karl (1858). ‘The Original Text of the Second and the Beginning of the Third Chapter of “A Contribution to the Critique of Political Economy” (the Urtext) in Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works. Vol. 29. Lawrence and Wishart, London (1968) pp. 430-507.

 

Marx, Karl (1859). ‘A Contribution to the Critique of Political Economy. Part One’ in Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works. Vol. 29. Lawrence and Wishart, London (1986), pp. 257-389.

 

Marx, Karl (1861-63). ‘Zur Kritik der politischen okonomie (Manuscript 1861-63)’ in MEGA II. Abteilung, Vol 3. Berlin (GDR). Marx, Karl Theories of Surplus-Value, Parts I, II and III, London, Lawrence and Wishart (1969).

 

Marx, Karl (1867). Capital Vol. I. Penguin Books, London (1976).

 

Marx, Karl (1867a). Das Kapital, Band 1. First edition in MEGA II, Abteilung, Vol. 5. Berlin (GDR).

 

Marx, Karl (1885). Capital, Vol. II. Penguin Books, Harmondsworth (1978).

 

Marx, Karl (1894). Capital, Vol. III. Penguin Books, Harmondsworth (1981).

 

Mller, Manfred (1978). Auf dent Weg zum ‘Kapital’. Zur Entuicklung des Kapitalbegriffs von Marx in den Jahren 1857-1863. Berlin (GDR).

 

Otto, Axel and Bischoff, Joachim (1984). Grundsatze der Politischen ökonomie. Der zseite Entuurf des ‘Kapitals’. (MEGA). Hamburg.

 

PEM (1975): Der 4.te Band des ‘Kapitals’? Konnuentar zu den ‘Theorien über den

Mehruert’. West Berlin.

 

PEM (1987): Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie (Rohentwurf). Kommentar, Hamburg.

 

Rosdolsky, Roman (2001). Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx. EDUERJ; Contraponto, Rio de Janeiro.

 

Ternowski, Michail and Tscherpurenko, Alexander (1987). ‘”Grundrisse”: Probleme des zweiren and dritten Bandes des “Kapital”, and das Schicksal des Begriffs des “Kapital im Allgemeinen”‘ in Marxistische Studien, Jahrbuch des IMSF, 12.

 

 

Talles Lopes é Bacharel em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Contato: talleslincoln@gmail.com

 

 

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1 comentário em “Capital em geral e a estrutura de O Capital de Marx: novos insights a partir dos Manuscritos Econômicos de 1861-1863”

  1. Uma das teses centrais do Heinrich, em polêmica cintra a leitura clássica de Roman Rosdolsky em seu livro ‘Genese e estrutura do Capital de Karl Marx, é q o conceitp de ‘capital em geral’ (kapital im allgemein, no original alemão) vai perdendo espaço durante a decada de 1860 ate desaparecer no ‘Capital’. Ou seja, essa categoria, q tinha sido central nos ‘Grundrisse’ deixa de ser utilizada no ‘Capital’. Compartilho artigo q escrevi rebatendo a posição de Heinrich e eme defesa da posição de Rosdolsky…

    https://quilombospartacus.wordpress.com/2019/09/01/o-capital-em-geral-e-os-multiplos-capitais-debate-com-michael-heinrich-a-partir-de-roman-rosdolsky-2/

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