Da metodologia jurídica na produção e na interpretação do direito: estudo de um caso

Por Luis Eduardo Gomes do Nascimento

Ao Pernambucano Lourival Vilanova, jusfilósofo e lógico universal e a Evo Morales, líder inconteste da liberação latino-americana.

A discussão acerca da especificidade da ciência jurídica envolve a necessidade de estabelecer um critério de demarcação entre a ciência jurídica e as demais ciências sociais: trata-se da busca de um critério rigoroso que, conferindo especificidade à ciência jurídica, permite a sua distinção em face das outras ciências sociais. A discussão não é ociosa e não se reduz aos aspectos epistemológicos que normalmente são enfatizados. Ao buscar estabelecer uma metodologia própria ao direito depara-se com o problema de demarcação do que entra e do que não entra para o âmbito do direito. Ou seja: da definição estrita e segura do código lícito-ilícito. O direito opera, consoante a lógica jurídica desenvolvida por Carlos Cossio, por meio do código lícito-ilícito (1).

A indistinção entre os polos do código em que funciona o direito permite a qualificação errônea de fatos, normatizando-os de forma apócrifa, ensejando insegurança jurídica e graves injustiças, amesquinhando, conforme disse Montesquieu em algum lugar, a paz necessária que envolve a certeza de que ninguém será objeto de ações arbitrárias.

Se, conforme afirma Norberto Bobbio, a segurança jurídica é a certeza dos efeitos que o ordenamento jurídico atribui a uma dada conduta, a busca pela especificidade da ciência jurídica traz intrínseca a busca pela demarcação entre o que é jurídico e o que não é.

Hans Kelsen, quando estabelece o critério da pureza metódica pelo qual se afasta da ciência jurídica qualquer consideração ou enunciado de ordem sócio-econômica, chega ao cerne do problema hermenêutico do direito. Ao contrário do que se diz, a questão epistemológica que Kelsen traceja já é em si a questão hermenêutica da qualificação jurídica dos fatos. Na medida em que o dado, inserido na ordem do vivido, não é suscetível apenas da interpretação jurídica, é crucial definir como se dá juridicamente a apreensão dos fatos e como são qualificados do ponto de vista interno ao direito.

A recepção jurídica dos fatos é o epicentro da questão metodológica mais importante, em cuja ausência se pode afirmar que o Estado de Direito se apresenta como uma realidade vaporosa e vazia ao sabor de interpretações esdrúxulas que, fora de qualquer balizamento jurídico prévio, criam novos textos, qualificando retroativamente fatos que, à luz de análise adequada, não estariam na seara do ilícito, punindo de forma desgarrada e injusta, prejudicando projetos humanos e, muitas vezes, alterando o curso da história política de uma nação, como vimos na recente história da América Latina e do Brasil.

Diante de tal problemática, urge perguntar qual a forma com que o legislador plasma as regras jurídicas e qual a forma com que o intérprete, na análise dos mais variegados fatos, qualifica-os, adjetivando-os de jurídico, demarcando o que integra ou não o mundo jurídico. O mundo jurídico, já dizia Pontes de Miranda, integra o mundo de forma que, somente por categorias jurídicas próprias, é possível definir a topografia jurídica, isto é, o que no mundo é qualificado como parte do mundo jurídico (2) Os conceitos fundamentais da metodologia são topológicos na medida em que delimitam a forma de classificação jurídica dos fatos.

 Já no ato de legislar se verifica essa atividade demarcatória porque, no analisar os fatos que assumem regularidade social e condensam axiologia adequada, criam-se tipos jurídicos. Mas em que consistem tipos? Invocando a teoria literária, pode-se afirmar que são resumos concentrados com características objetivas de uma situação social.  A criação de tipos não é apanágio do direito penal, mas constitui a forma pela qual o direito em geral é produzido e, especialmente, aplicado. O pensamento jurídico é tipológico (3).

Ignorar a forma com que, pela orientação tipológica, o intérprete qualifica os fatos apresentados e enfeixados no caso é renunciar ao próprio Estado de Direito. E, da carência de metodologia jurídica, a manutenção da estrutura normativa se transforma numa opção de confiança na axiologia individual do intérprete e, num estado que mereça o atributo de democrático, a confiança deve ser na aplicação objetiva do sistema jurídico e na qualidade que emana de sua axiologia intersubjetiva, desde a construção à interpretação. Aqui, a metodologia cumpre papel de ineliminável valor.

Não se investigará a produção legislativa de tipos, mas a questão hermenêutica da interpretação/aplicação do direito- que deve ser orientada pelos esquemas normativos preordenados à interpretação e à aplicação do direito. Se Kelsen afirma que a norma é um juízo hipotético, na parte em que procura as condições para garantir de autonomia da ciência jurídica, define a norma como esquema de interpretação por meio do qual um fato, inserido no tempo e no espaço, adquire a condição de fato juridicamente qualificado. Sendo todo fato apreensível sensorialmente no tempo e espaço e, sendo suscetível das mais variadas interpretações, a qualidade de ser fato jurídico é conferida pela incidência da norma jurídica que figura como esquema interpretativo.

Transcrevemos enunciado de palmar importância:

“A norma funciona como esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa. Mas também na visualização que o apresenta como um acontecer natural apenas se exprime uma determinada interpretação, diferente da interpretação normativa: a interpretação causal. A norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma outra norma.”(3)

Um fato, no tempo e espaço, e sensorialmente perceptível, pode ser visto como manifestação externa de conduta e, apenas pela incidência do esquema normativo, adquire significação própria ao direito. O fato, nu e cru, só é adjetivável de jurídico pela norma que projeta um esquema interpretativo. Kelsen não desenvolve de forma pormenorizada a concepção fecunda da norma como esquema de interpretação. Com base no jusfilósofo Lourival Vilanova, podemos definir o esquema normativo como conjunto tabular, isto é,  conjunto de notas e características objetivas que adensam uma determinada ação ou situação social e, a partir disso, produz a normatização sob a forma de hipótese jurídica (4). Na criação de um tipo, diante da inevitável complexidade de um fato social, selecionam-se os aspectos mais sobressalentes, erigidos como notas informadoras da hipótese normativa. Trata-se de processo de abstração que implica sempre em redução da complexidade, mas, porque emanado da concretude fática, comporta em si a referência à realidade fática. Um tipo se constitui na co-originariedade entre o concreto e o abstrato. Nunca constitui, pois, em criação cerebrina do legislador.

Ao erigir um tipo, o legislador configura de forma tabular uma situação, prefigura os elementos centrais – a estrutura profunda e superficial da norma- que devem- é de dever que se trata- servir de norte para a difícil mas necessária tarefa de qualificação dos fatos, reunidos em caso coexistente ao vir-a-ser-mundo do texto normativo. O texto, conforme uma intuição fundamental da hermenêutica jurídica analógica, é-um-vir-a-ser-mundo e é, com base nisso, que intérprete deve analisar o caso, articulado que está na intersecção entre a generalidade da norma e a particularidade da experiência (5).

Dessa forma, passamos analisar a hipótese acusatória a que foi submetido o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no processo de 5046512-94.2016.4.04.7000/PR. A hipótese acusatória aventa que, em razão do cargo, ao mandatário popular foi concedido um apartamento 164-A, Tríplex, no Condomínio Solaris, com endereço na Avenida General Monteiro de Barros, 656, no Guarujá/SP, e ainda a reforma do apartamento, como vantagem indevida.

De forma lacônica, no parágrafo 15 da sentença, esta talhada a hipótese, a qual transcrevo:

“O repasse do apartamento e as reformas, assim como o pagamento das despesas de armazenamento, representariam vantagem indevida em um acerto de corrupção e os estratagemas subreptícios utilizados para esse repasse e pagamento constituiriam crime de lavagem de dinheiro”

Seguindo a boa técnica, resulta até difícil, de acordo com o topos da concussão, fazer a divisão de uma hipótese de ação uniforme para atribuir-se os dois tipos penais, a saber:  corrupção e lavagem de dinheiro. Segundo o longevo topos da concussão, a uma suposta ação uniforme e concatenada no tempo e numa relação de meio e fim, para evitar excessos no direito penal, deve a ação ser enquadrada na hipótese que configura o ato-fim. Então, a atribuição dos 2 tipos resulta atécnica. O idôneo, do ponto de vista da dogmática, seria a imputação apenas alusiva à hipotética conduta-fim.

 Diante do que será explanado mais adiante, apesar de importante, essa questão torna-se até ancilar e secundária. Mas é importante destacar que a imputação de duas condutas típicas quando incidente o topos da concussão configura atecnia, pois, consoante a própria descrição da hipótese acusatória, os fatos, em tese, configuraria uma ação única e uniforme e, estando articulado na relação meio-fim, a acusação deve se adstringir à conduta-fim.

Remarcada essa questão ancilar, cumpre aferir se a sentença que consignou a condenação nos dois tipos atribuídos atende aos critérios de decidibilidade que a metodologia jurídica considera seguros e adequados em um Estado Democrático de Direito.

Para tornar verossímil a hipótese, operou-se um corte arbitrário entre o direito civil e direito penal. O corte se revela na própria linguagem adotada. O uso do verbo conceder, em matéria de transmissão de propriedade ou de posse, não se mostra correto. Mais parece um subterfúgio para evitar a discussão dos institutos de direito civil, cuja aferição são essenciais e necessárias, enfatize-se, essenciais e necessárias, para a configuração dos fatos puníveis, de corrupção e lavagem de dinheiro.

O termo mais adequado é o termo alienação que, desde o direito romano, constitui a transmissão para o patrimônio de outrem de uma coisa. É curial que, desde o debate entretecido entre os civilistas alemães Rudolf von Ihering e Friedrich Carl von Savigny, na relação entre um ser humano e uma coisa, incidem três institutos básicos: 1) propriedade; 2) posse; 3) detenção. A propriedade consiste no domínio consolidado mediante escritura do bem, desde o direito de dispor e de fruir dele; a posse, não configurando a disposição, adensa o direito de fruir, inclusive contra o titular e contra terceiros, cuja caracterização necessita da visibilidade do domínio, ou seja, a fruição habitual e constante do bem de forma que terceiros possam entender que o bem pertence àquele que, de forma visível, o detém; a detenção é a guarda do bem em nome de terceiros (6). Para corroborar as supostas vantagens sob a forma de reformas, a demonstração da propriedade ou da posse era essencial e necessária. Ocorre que, na sentença, opera-se o corte entre as matérias de forma a corroer a unidade sistêmica do direito como se o direito penal e o direito civil, no plano da linguagem prescritiva, fossem apartados e estanques, como se as prescrições de uma ordem não se estendessem e completassem à outra.

Diz a sentença:

‘’308. Não se está, enfim, discutindo questões de Direito Civil, ou seja, a titularidade formal, mas questão criminal, a caracterização ou não de corrupção e lavagem. Não se deve nunca esquecer que é de corrupção e lavagem de dinheiro.”

O enunciado, do ponto da ciência jurídica, é precário. No afã de corroborar a hipótese acusatória fez incursão em direito civil, aludindo aos documentos referentes a propostas de contrato. Se o direito civil não interessava ao deslinde do caso porque invocar esboços e propostas de contratos e documentos – que são matéria de direito civil- para corroborar a hipótese acusatória? Trata-se de arrematada contradição, incorrendo-se o julgador no que Karl-Otto Apel chama de contradição performática, a qual se dá quando o sujeito de enunciação contradiz aquilo que ele mesmo enunciou.

Mas o mais grave para a metodologia jurídica é a confusão entre o plano descritivo da ciência jurídica e do plano dêontico, da ordem jurídica mesma. Uma coisa é a cognição sobre as normas (linguagem descritiva da ciência jurídica), outra coisa é a ordem jurídica ela mesma (linguagem prescritiva, de ordem coativa).

Lourival Vilanova há muito fazia a distinção entre a linguagem descritiva do saber jurídico (lógica do discurso) e da linguagem prescritiva da ordenação jurídica (lógica deôntica). Não se pode confundir uma enunciação descritiva com uma prescrição normativa. Um livro de direito constitucional (linguagem descritiva) não é uma constituição (linguagem prescritiva).

No plano descritivo, as disciplinas se diferenciam pelo objeto, mas, no plano deôntico, formam um sistema jurídico a ser estruturado pelo conhecimento. Direito penal e direito civil, enquanto saberes, são distintos, mas, no plano prescritivo, integram o mesmo sistema jurídico, que forma uma estrutura. É muito comum confundir o plano descritivo com o prescritivo como se a diferenciação didática de saberes implicasse a inexistência de conexão sistêmica dos institutos. Na sentença, ocorreu a confusão do plano descritivo com o deôntico para evitar a percepção de que os institutos de direito civil eram cruciais para a configuração típica. No plano deôntico, direito penal e direito civil imbricam-se, formando um sistema jurídico no qual a intercessão de preceitos é recorrente e até necessária ao entendimento dos tipos penais.

Por exemplo, não se compreende o tipo de furto – direito penal- sem a compreensão do que seja propriedade – direito civil. Qualquer processo que envolva a hipótese de furto tem por pressuposto a análise da propriedade – matéria de ordem civil. No plano deôntico, todo o direito está imbricado e entrelaçado pela confluência necessária de regras e institutos. Confundir uma distinção didática de disciplinas com os preceitos de ordem normativa resta incorreto do ponto de vista científico e, no caso sob exame, produziu decisão incorreta e fora da tipologia penal prévia.

No caso, sem a caracterização do domínio ou da posse, não há que falar em fato punível. Como, diante dos elementos de prova constantes dos autos, não há o mais pálido substrato probatório-seja documental no caso da propriedade, seja documental e ou testemunhal no caso da posse – recorreu-se a artifício para afastar a visada correta do caso com a corrosão da estrutura profunda da norma e da estrutura profunda do caso.

Inclusive, do ponto de vista técnico, as reformas constituem benfeitorias, isto é, são despesas e obras com escopo de conservar, melhorar ou aformosear uma coisa (7). Desde o longevo direito romano, existe o topos de que o acessório segue o principal (8). É curial que as benfeitorias, por serem acessórias, são  vinculadas ao principal –imóvel- de tal forma que, para que as reformas tivessem valor probatório no caso, fazia-se necessário provar a propriedade ou a posse. Ou seja, sem provar o principal, invocar o acessório é cair no vazio.

A invocação de ato indeterminado, também, se torna vazia ante a inexistência de propriedade e posse da coisa. Não obstante, conforme prescreve o art. 41 do Código de Processo Penal, a denúncia deve indicar o fato e suas qualificações e circunstâncias, exsurgindo a imperiosa necessidade de indicar um fato delimitado no tempo e espaço, com as configurações e notas ínsitas ao esquema normativo.

Se para instaurar um processo é necessário um fato determinado, muito mais para condenar. Causa pasmo que, em Estado Democrático, a alguém seja atribuído penalmente fato indeterminado que, de pronto, fere os mais comezinhos princípios e regras de um processo justo. Não é só o direito de defesa, que é ínsito ao processo, mas a necessária tipicidade enquanto técnica jurídica que emoldura todo o direito e mais ainda o direito penal. Sem tipicidade não há razão jurídica para a instauração da relação jurídico-processual como decorre da intelectual da metodologia jurídica e do art. 395, inc. III, do CPP.

O direito existe para estabilizar expectativas e, somente mediante a criação prévia de modelos normativos seguros e taxativos, o legislador cumpre sua missão e o intérprete, ainda que possa agir legitimamente dentro da moldura analógica, dela – a tipicidade- não pode se desgarrar, pois, do contrário, não há mais continuidade entre legislar e aplicar/interpretar o direito, arruinando-se a própria ideia de direito, concebida há muito para proteger o valor formal da segurança jurídica.

Na verdade, aplicando-se metodologia jurídica rigorosa, a hipótese acusatória não se revestia de tipicidade de forma que o processo nem sequer poderia existir pela carência de tipicidade penal (art. art. 395, inc. III, do CPP). Se a hipótese aventa que as vantagens foram recebidas sob a forma sub-reptícia de reformas – benfeitorias- portanto haveria que provar o domínio real ou a visibilidade do domínio com habitualidade. Esvaindo-se qualquer prova disso, a hipótese, para usar uma metáfora de um filósofo, desvanece-se como um castelo de areia na orla do mar. Enfim, trata-se de situação notória e evidente de atipicidade penal, ou seja, de conduta que não se insere no âmbito do ilícito penal, não havendo pressuposto sequer para a existência do processo. Em outras palavras: as condutas atribuídas aconteceram no mundo jurídico coberto pelo código lícito.

Sendo a interpretação um procedimento analógico em que a reformulação do texto normativo deve ser estruturada numa relação de equivalência, e, no caso, tendo em vista que a estrutura dos tipos se concentra nos verbos aceitar ou receber e no objeto direto vantagem indevida e no verbo ocultar e no objeto direto a origem ilícita de bens, verifica-se que a decisão arrimada na ausência de demonstração da propriedade e da posse a partir da qual as reformas- vantagens- estariam atreladas, transbordou-se da moldura analógica (8).

Como salientava o saudoso Assis Toledo (9), somente mediante a criação de tipos penais é que o Estado está autorizado a invadir a esfera de liberdade do cidadão. Há muito a dogmática jurídica assinala que, sob a legalidade estrita, agasalha-se o direito geral de liberdade a exigir que, somente por meio de atos normativos do poder legislativo ou dele decorrente, é possível criar proibições e obrigações limitadoras da ação do indivíduo (10). Diante disso, no processo de interpretação/aplicação, o juízo de tipicidade, enquanto atividade de qualificação jurídica dos fatos, não pode corroer a moldura analógica do tipo sob pena de se esgarçar a legalidade e a segurança jurídica, instaurando um verdadeiro estado de terror.

Como não há coincidência natural entre o tipo e o caso constitutivo, o juízo de tipicidade é atividade fundamental, deve, pela gravidade das consequências na esfera jurídica de outro que deve ser entendido como legítimo outro, obedecer à rigorosa metodologia. Juízos de tipicidade errôneos no direito penal consistem em verdadeiros juízos de exceção em que, sem a prévia existência de esquemas normativos orientadores da interpretação, pune-se um fato depois da sua configuração, marcando como ilícitas ações desenvolvidas no campo da licitude: criam-se de fatos regularmente lícitos fatos puníveis de forma retroativa. Absurdidade que deve ser, cientificamente, revelada para o bem de todos os concidadãos. Defender, como princípio, a legalidade para, mediante as lutas democráticas, efetivar o horizonte de expectativa na constituição é imperativo ético axial (11). A flecha do tempo aponta para o futuro.

1. O jusfilósofo argentino Carlos Cossio, ao assinalar que a norma jurídica é um juízo disjuntivo, abarcando tanto a ação nos lindes da licitude (endonorma) e da ilicitude (perinorma), remarcou que o direito funciona a partir do código lícito-ilícito enquanto Kelsen enfatizou o aspecto do ilícito como característico do jurídico. Sobre os avanços lógicos de Cossio ver, com especial aproveitamento, a obra magistral de jurista baiano: MACHADO NETO, A.L. Teoria geral do direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966, das páginas 31 a 69. No caso, as propostas de contrato- que não se consolidaram- ocorreram nos marcos da licitude (endonorma), como veio a ser reconhecido pela 8ª Turma do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos de nº 1076258-69.2016.8.26.0100.

Cossio, com base no existencialismo, afirmava que o pressuposto de todo ordenamento é a liberdade e, repetiu sempre o axioma, o que não é proibido é permitido, iniciando as primícias da lógica deôntica.

2. MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado: Parte Geral, Tomo I, Introdução:  pessoas jurídicas e jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1970, especialmente o capítulo A regra jurídica e o suporte fático. A teoria matemática do cálculo dos predicados pode ser de aproveitamento fabuloso para a articulação ainda mais desenvolvida do que denominamos, usando a metáfora de Kelsen, de moldura analógica.

3. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 4.

4. Sobre a natureza tipológica do direito ver a obra: VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 21. Com base na lógica matemática, afirma que há duas formas de fazer um conjunto, seja enumerando os elementos (forma de construção), seja pelo estabelecimento prévio das notas, predicados e características relevantes do conjunto (forma tabular). No caso da tipologia jurídica, em regra, desenvolve-se na forma tabular. A decisão que não obedece aos predicados da forma tabular erigida em tipo enquadra-se fora da normatividade, constituindo juízo de exceção e grave violência que deve ser rechaçada. Onde termina a lógica jurídica, começa a exceção.

Trata-se de obra magistral, cuja grandeza transpassa da lógica jurídica e traz compreensão da lógica formal e da lógica transcendental nos moldes da fenomenologia de Edmund Husserl.

5. NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018. A partir dessas categorias, estou desenvolvendo uma Arquitetônica Jurídica Analógica.

6. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. IV. Rio de Janeiro, Forense, 1999, em que consta a genealogia brilhante dos conceitos essenciais da propriedade, da posse e da detenção com base na mais abundante literatura sobre o tema, sobretudo, o debate entre os juristas alemães referidos, em que as categoriais assinaladas desde o séc. XIX já estavam demonstradas.

7. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1993, Ver o capítulo Bens Principais e Acessórios, da pgs. 239 a 245. O conceito legal de benfeitorias está inserto no art. 1219 do Código Civil vigente. O topos do ‘’acessório segue o principal” ancora-se no art. 92 do Código Civil vigente e emana da própria realidade fática: um reforma não existe sem o imóvel a qual está vinculado. Não se muda a realidade da física. Sobre a incidência do direito romano na atualidade ver: JUNIOR, José Cretela. Curso de direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

8. A tópica é uma técnica de pensar os problemas jurídicos a partir de sintagmas retóricos consolidados. Topos, desde o Organon aristótelico, configuram lugares comuns retóricos que servem de guia para solução dos problemas concretos que o direito enseja. Sobre o tema ver a importante obra do jurista alemão: VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Porto Alegre: SAFE, 2008. Remarque-se que a transplantação de topos oriundos de outros países precisam ser filtrados a partir do nosso sistema jurídico e da nossa realidade. Veja-se a importação do topos da cláusula da reserva do possível que, vindo de realidades em que impera a social-democracia, e usado para condicionar a efetividade dos direitos sob argumentos falaciosos de ausência de recursos, não encontra agasalho na nossa constituição, referta em direitos sociais, cuja efetivação além de possível em país tão rico como o Brasil é para corrigir e para superar as contradições sociais oriundas da colonialidade do poder. Não é o PIB que não cabe na constituição. É a forma com que se faz o orçamento e as subvenções públicas que restringe a efetivação dos direitos sociais consagrados na constituição. O Brasil é um país rico, mas de gritantes desigualdades. Sobre a inaplicabilidade do aludido topos no direito brasileiro e necessidade de cumprir as promessas constitucionais ver as decisões magistrais do Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, especialmente na ADPF 45.

9. Sobre a categoria de moldura analógica consultar a obra indicada na nota 5.

9. TOLEDO, Assis. Princípio Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1991, introdução.

10. Sobre a existência de um direito geral de liberdade com fundamento na análise dos functores dêonticos obrigação, proibição e permissão, ver: ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de estudos constitucionales, 1993, capítulo 7, pgs. 331 a 373. Obra colossal que traz uma abordagem nova do papel dos princípios sem dar margem a arbítrio.

11. Sobre a necessidade de convolar a prática jurídica e a prática política para a realização performática da constituição nosso texto: https://18.118.106.12/2018/07/27/constituicao-e-o-nome-de-que/. Nesse texto, salientamos que a constituição é poesia no sentido aristotélico, isto é, algo não da ordem do dado, mas inserido no campo projetável do possível. A constituição constitui um horizonte de expectativa que cabe à ação política dos povos realizar.

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