O proletariado judeu precisa de um “partido político independente”?

Por Vladímir Ilitch Lênin, via marxists.org, traduzido por Gabriel V. Lazzari

“Tendo uma vez demandado “federalismo” em vez de autonomia nos assuntos referentes ao proletariado judeu, vocês foram obrigados a proclamar o Bund como um “partido político independente” a fim de levar a cabo esse princípio federalista a qualquer custo. “Autonomia”, sob o Estatuto adotado em 1898, dá ao movimento operário judeu o que ele precisa: propaganda e agitação em iídiche, sua própria literatura e seus próprios congressos, o direito de propor demandas separadas para complementar um único programa geral social-democrata e satisfazer as necessidades e requisitos locais que advenham das características específicas da vida judaica. Em todo o resto, deve haver a mais completa fusão com o proletariado judeu, nos interesses da luta travada por todo o proletariado da Rússia.”


O nº 105 do Poslednie Izvéstia (15 [28] de janeiro de 1903), publicado pelo Comitê Estrangeiro da União Geral dos Operários Judeus da Lituânia, da Polônia e da Rússia, traz um breve artigo intitulado “A Respeito de um Certo Manifesto” (ou seja, o manifesto lançado pelo Comitê de Ekaterinoslav do Partido Operário Social-Democrata Russo) contendo a seguinte declaração, que é tão extraordinária quanto é significativa e de fato “repleta de consequências”: “O proletariado judeu formou a si mesmo (sic!) como um partido político independente (sic!), o Bund.” [“União Operária Judaica da Lituânia, Polônia e Rússia” – Algemeyner Yidisher Arbeter-Bund in Lite, Poyln un Rusland]

Nós não tínhamos ciência disso antes. Isso é algo totalmente novo.

Até agora, o Bund tem sido uma parte constituinte do Partido Operário Social-Democrata Russo e no nº 106 do Poslednie Izvéstia nós ainda por cima (ainda por cima!) encontramos uma declaração do Comitê Central do Bund, com o título “Partido Operário Social-Democrata Russo”. É verdade que em seu último congresso, o Quarto, o Bund decidiu mudar seu nome (sem estipular que gostaria de ouvir a opinião dos camaradas russos sobre o nome que deve ter uma seção do Partido Operário Social-Democrata Russo) e “introduzir” novas relações federalistas no Estatuto do Partido Russo. O Comitê Estrangeiro do Bund até mesmo “introduziu” essas relações, se essa palavra pode ser usada para descrever o fato de que ele se retirou da União dos Social-Democratas Russos no Exterior e concluiu um acordo federalista com ele.

Por outro lado, quando o Iskra polemizou com as decisões do Quarto Congresso do Bund, o próprio Bund defendeu resolutamente que só queria assegurar a aceitação de seus desejos e decisões pelo POSDR; em outras palavras, ele reconheceu categoricamente que até que o POSDR adote um novo Estatuto e estabeleça novas formas de sua relação com o Bund, o Bund permanecerá como seção do POSDR.

Mas agora, de repente, nos dizem que o proletariado judeu já formou a si mesmo como um partido político independente! Repetimos – isso é algo completamente novo.

Igualmente nova é a investida furiosa e tola do Comitê Estrangeiro do Bund contra o Comitê de Ekaterinoslav. Nós pelo menos (ainda que infelizmente depois de muito atraso) recebemos uma cópia do manifesto, e não hesitamos em dizer que ao atacar um manifesto como esse, o Bund deu sem dúvidas um sério passo político [1]. Esse passo está completamente de acordo com a declaração do Bund como um partido político independente e joga muita luz sobre a fisionomia e comportamento desse novo partido.

Nós lamentamos que a falta de espaço nos impeça de reimprimir o manifesto de Ekaterinoslav completo (ocuparia cerca de duas colunas no Iskra [2]), e nos restringimos a reafirmar que esse manifesto admirável explica de maneira excelente aos operários judeus da cidade de Ekaterinoslav (nós explicaremos presentemente o porquê de enfatizarmos essas palavras) a atitude social-democrata em relação ao sionismo e ao antissemitismo. Além disso, o manifesto trata os sentimentos, ânimos e desejos dos operários judeus com tanta consideração, com uma consideração tão camarada, que ele especialmente se refere à e enfatiza a necessidade de lutar sob a bandeira do POSDR “até para a preservação e posterior desenvolvimento de sua [o manifesto é endereçado aos operários judeus) cultura nacional”, “mesmo do ponto de vista dos interesses puramente nacionais” (sublinhado e em itálico no próprio manifesto).

Ainda assim, o Comitê Estrangeiro do Bund (nós quase dissemos o Comitê Central do novo partido) atacou o manifesto por não fazer menção ao Bund. Esse é o único crime do manifesto, mas é um crime terrível e imperdoável. É por causa disso que o Comitê de Ekaterinoslav é acusado de faltar com “senso político”. Os camaradas de Ekaterinoslav são punidos por não “terem ainda digerido a ideia da necessidade de uma organização separada [uma ideia profunda e significativa!] das forças [!!] do proletariado judeu”, por “ainda acolherem a esperança absurda de de alguma forma se livrar dele” (do Bund), por disseminarem a “fábula não menos perigosa” (não menos perigosa que a fábula sionista) de que o antissemitismo está ligado às camadas burguesas e a seus interesses, e não aos interesses da classe operária. É por isso que o Comitê de Ekaterinoslav é aconselhado a “abandonar o hábito nocivo de se manter em silêncio sobre o movimento operário judeu independente” e a “se reconciliar com o fato de que o Bund existe”.

Agora, consideremos se o Comitê de Ekaterinoslav é mesmo culpado de um crime, e se devia mesmo ter mencionado o Bund. Ambas questões podem ser respondidas apenas com uma negativa, pela simples razão de que o manifesto não é endereçado aos “operários judeus” em geral (como colocou erroneamente o Comitê Estrangeiro do Bund), mas aos “operários judeus da cidade de Ekaterinoslav” (o Comitê Estrangeiro do Bund se esqueceu de citar essas últimas palavras!). O Bund não possui organização em Ekaterinoslav (e, em geral, considerando o sul da Rússia, o Quarto Congresso do Bund aprovou uma resolução de não organizar comitês separados do Bund nas cidades em que as organizações judaicas estejam incluídas nos comitês do Partido e em que suas necessidades possam ser totalmente satisfeitas sem separação dos comitês). Uma vez que os operários judeus em Ekaterinoslav não estão organizados em um comitê separado, seu movimento (inseparável de todo o movimento operário nessa área) é totalmente liderado pelo Comitê de Ekaterinoslav, que se subordina diretamente ao POSDR, que deve chamá-lo a trabalhar por todo o Partido, e não apenas por suas seções individuais. Está claro que sob essas circunstâncias o Comitê de Ekaterinoslav não é obrigado a mencionar o Bund; ao contrário, se ele supostamente advogasse pela “necessidade de uma organização separada das forças [que seria mais provavelmente uma organização da fraqueza [3] ] do proletariado judeu” (que é o que querem os bundistas), teria cometido um erro grave e uma quebra direta não apenas do Estatuto do Partido, mas da unidade da luta de classe do proletariado.

Além disso, o Comitê de Ekaterinoslav é acusado de falta de “orientação” na questão do antissemitismo. O Comitê Estrangeiro do Bund trai suas visões verdadeiramente infantis sobre importantes movimentos sociais. O Comitê de Ekaterinoslav fala do movimento antissemita internacional das últimas décadas e reafirma que “a partir da Alemanha, o movimento se espalhou para outros países e em todo lugar encontrou adesões entre os burgueses e não as encontrou nos setores operários da população”. “Isso é uma fábula não menos perigosa” (que as fábulas sionistas), choraminga o completamente incomodado Comitê Estrangeiro do Bund. O antissemitismo “tem raízes fortes dentro da massa dos trabalhadores” e para provar isso, o “bem-orientado” Bund cita dois fatos: 1) a participação dos operários em um pogrom em Częstochowa e 2) o comportamento de doze (doze!) operários cristãos em Jitomir, que furaram uma greve e ameaçaram “matar toda a judeuzada” [4]. Provas muito substanciais de fato, especialmente a última! Os editores do Poslednie Izvéstia estão tão acostumados a lidar com grandes greves, envolvendo cinco ou dez operários, que o comportamento de doze operários ignorantes de Jitomir é colocado como uma evidência da ligação entre o antissemitismo internacional e um “setor” ou outro “da população”. Isso é magnífico, de fato! Se, em vez de avançar em uma fúria tola e cômica contra o Comitê de Ekaterinoslav, os bundistas tivessem ponderado um pouco sobre a questão e consultado, digamos, a brochura de Kautsky sobre a revolução social [5], que teve uma edição em iídiche publicada por eles mesmos recentemente, eles teriam compreendido a ligação que sem dúvida existe entre o antissemitismo e os interesses da burguesia, e não dos setores operários da população. Se tivessem pensado um pouco mais, eles poderiam ter percebido que o caráter social do antissemitismo hoje não foi alterado pelo fato de que dezenas ou mesmo centenas de operários desorganizados, nove décimos dos quais ainda são bastante ignorantes, participam em um pogrom.

O Comitê de Ekaterinoslav se levantou (e com razão) contra a fábula sionista sobre o antissemitismo ser eterno; ao fazer seu comentário raivoso, o Bund só confundiu a questão e colocou nas mentes dos operários judeus ideias que tendem a cegar sua consciência de classe.

Do ponto de vista da luta pela liberdade política e pelo socialismo a ser travada por toda a classe operária da Rússia, o ataque do Bund ao Comitê de Ekaterinoslav é o cúmulo da loucura. Do ponto de vista do Bund como “um partido político independente”, esse ataque torna-se compreensível: não ousem em lugar algum organizar os operários “judeus” junto com os, e inseparavelmente dos, operários “cristãos”! Se forem se endereçar aos operários judeus em nome do Partido Operário Social-Democrata Russo ou de seus comitês, não ousem fazê-lo tão diretamente, a ponto de passar por cima de nós ou não nos mencionar!

E esse fato profundamente lamentável não é acidental. Tendo uma vez demandado “federalismo” em vez de autonomia nos assuntos referentes ao proletariado judeu, vocês foram obrigados a proclamar o Bund como um “partido político independente” a fim de levar a cabo esse princípio federalista a qualquer custo. No entanto, sua declaração de que o Bund é um partido político independente é apenas levar até o absurdo o seu erro fundamental sobre a questão nacional, que vai ser inescapável e inevitavelmente o começo de uma mudança nas visões do proletariado judeu e dos social-democratas judeus em geral. “Autonomia”, sob o Estatuto adotado em 1898, dá ao movimento operário judeu o que ele precisa: propaganda e agitação em iídiche, sua própria literatura e seus próprios congressos, o direito de propor demandas separadas para complementar um único programa geral social-democrata e satisfazer as necessidades e requisitos locais que advenham das características específicas da vida judaica. Em todo o resto, deve haver a mais completa fusão com o proletariado judeu, nos interesses da luta travada por todo o proletariado da Rússia. Quanto ao medo de serem “atropelados” se houver essa fusão, a própria natureza da questão faz dela sem nenhum fundamento, uma vez que a autonomia é a garantia contra todo “atropelamento” em matérias concernentes especificamente ao movimento judaico, enquanto em matérias concernentes à luta contra a autocracia, à luta contra a burguesia da Rússia como um todo, nós precisamos agir como uma única e centralizada organização militante, tendo atrás de nós o conjunto do proletariado, sem distinção de linguagem ou nacionalidade, um proletariado cuja unidade está consolidada pela contínua solução conjunta dos problemas da teoria e da prática, da tática e da organização; e não devemos estabelecer organizações que marchem separadamente, cada uma em seu próprio caminho; não podemos enfraquecer a força de nossa ofensiva ao nos dividir em numerosos partidos políticos independentes; não podemos introduzir estranhamento e isolamento e aí ter que curar uma doença artificialmente implantada com a ajuda desses notórios curativos “federalistas”.


[1] N.A. Isso, claro, se o Comitê Estrangeiro do Bund expressar a posição de todo o Bund sobre a questão.

[2] N.A. Temos a intenção de reimprimir todo o manifesto e o ataque do Comitê Estrangeiro do Bund em uma brochura que estamos preparando para a imprensa.

[3] N.A. É a essa tarefa de “fraqueza organizativa” que o Bund serve quando,por exemplo, usa frases como “nossos camaradas da ‘organização operária cristã’”. A frase é tão absurda quanto todo seu ataque ao Comitê de Ekaterinoslav. Nós não conhecemos nenhuma organização operária “cristã”. As organizações pertencentes ao POSDR nunca distinguiram seus membros por religião, nunca lhes perguntaram sobre sua religião e nunca o farão – mesmo quando o Bund na realidade “se formar como um partido político independente”.

[4] N.E. O termo utilizado, tirado da citação da declaração do Bund, é жидов, que poderia ser traduzido por “judeus”. No entanto, o termo, que tinha uma conotação de definição oficial no Império Russo aos judeus, foi cada vez mais sendo percebido com um caráter pejorativo. A opção do tradutor, aqui, tentou manter esse caráter pejorativo na tradução para “judeuzada”.

[5] N.E. A referência é à tradução para o iídiche da brochura de Karl Kautsky “A Revolução Social”.

* Publicado originalmente no Iskra, nº 34, 15 de fevereiro de 1903. Traduzido como parte do projeto de edição da obra O centralismo democrático de Lênin, e disponibilizado amplamente através deste blog.

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