Sobre a Carnificina – Notas sobre o documentário American Dharma

Por Julio Tude d´Avila

Steve Bannon chama de Dharma “uma combinação de dever, fé e destino”. Descobrir o Dharma de seu povo seria uma de suas virtudes como pensador político. Por pouco menos de duas horas, ele se senta com Errol Morris, discorre sobre sua visão de mundo e fornece uma das experiências mais vívidas e estimulantes para quem deseja compreender o cenário político contemporâneo.


Homem-chave na eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA, Bannon está envolvido com movimentos da extrema-direita, ou nova direita populista, em todo mundo. Inclusive em nosso país, onde escolheu como seu representante uma figura nefasta que herda males notórios: Eduardo Bolsonaro. A visão política do estrategista americano é gestada de uma forma curiosa, que mistura um moralismo trivial e uma simultânea disposição para ignora-lo quando as circunstâncias políticas o exigem. Já diria Carl Schmitt que a verdade aparece no momento da exceção, mas a relação tosca de Bannon com seus valores se insere na típica contradição do discurso conservador, e não merece muito comentário[1]. Vale apontar, no entanto, como ele se manifesta de uma forma apocalíptica nos dias de hoje. Os fins justificam os meios porque a alternativa é o Fim absoluto, a destruição do país e do mundo. Bruno Latour vem apontando que a maior parte dos movimentos radicais da atualidade, e esses vão desde o retorno a uma ideia de Estado-Nação vigoroso até o pueril identitarismo de esquerda, fundam-se na constatação de que o futuro ambiental do planeta é, em termos diretos, de salve-se quem puder. A certeza de que não haverá espaço nem recursos para todo mundo[2] faz com que pessoas se juntem a grupos que necessariamente excluem outros indivíduos, que requerem uma característica que não pode ser universal. Nascer em uma terra específica, ter uma cor de pele x, uma posição sexual y. Bannon parece ter um ponto de vista similar. Se os EUA não assegurarem sua posição de domínio internacional e de hegemonia cultural, serão destruídos. Serão incapazes de articularem-se, num futuro próximo, como uma unidade sólida. A globalização é deletéria para o país não apenas pela perda de empregos, mas porque permite uma infiltração cultural temível[3], absolutamente avessa ao costume estadunidense de exportar sua cultura para outros países.

Nesse sentido, compreendemos melhor porque sua posição se conjuga em termos populistas: o que é bom para as elites do país leva à destruição de tudo que pode sustentar uma forma política unificada. Quando Morris aponta a contradição entre essa posição e as políticas econômicas de Trump, resta a Bannon ficar em silêncio e boquiaberto. Seu suposto pragmatismo deve encontrar um modo de conciliar esses fatos – afirmar que Trump é o maior criador de empregos, por exemplo. Da mesma forma como justificou o recente pacto de estímulo econômico que favorece enormemente as corporações e as elites[4]. Em prol de seus fins abstrusos, valem esses meios que são contraditórios no momento, mas que irão produzir um resultado desejado e não-contraditório.

De todo modo, mais interessante que isso é ouvir suas reflexões sobre estratégia política e eleitoral. Como organizar uma campanha, como produzir um discurso público, em que termos estruturar um programa político, Bannon tem ideias revigorantes sobre tudo isso. No trecho em que explica como pensa a mídia virtual, está claro que seus achados estão a anos-luz de muito pensamento progressista. Ele nota que o virtual, e sua onipresença no nosso mundo, criou uma forma absolutamente distinta de vida, mais dedicada à internet do que à vida material concreta.

Ao fornecer um meio para que essas existências se ordenem politicamente, Bannon abre uma porteira que inexiste na esquerda. Não só isso, mas seu plano traz a ideia de que o indivíduo sinta-se realizado, libertado de constrangimentos que usualmente teria e seja validado por seus pares. De fato, a mensagem que ele produz é: “isso só pode se dar no nosso campo político. Nossos adversários nem ponderam a possibilidade de dar voz às suas manifestações e pensamentos. Aqui, você pode ser quem realmente é”. Ao ligar a experiência social, comunicativa, afetiva das pessoas à um fórum político, ele produz um tipo perturbado de fidelidade, excepcional. Desligar-se de uma posição ideológica agora também afetará outros âmbitos da sua vida, pois todos se dão em um mesmo meio, enraizado na política.  Toda uma geração pode ser capturada por esse discurso, e a comunidade online de fato tende a se mostrar muito mais conservadora (vale lembrar dos trolls, por exemplo, que só podem existir produzindo o que muitos à esquerda chamam de um discurso de ódio – não percebendo suas próprias responsabilidades nisso).[5] A força de uma comunidade perigosa como essa, que valida um discurso extremista e fornece uma profunda sensação de pertencimento, é evidente. “Vozes enraivecidas, adequadamente redirecionadas, tem poder político”, conclui o entrevistado.

Em um momento frenético e instigante, Morris deixa Bannon descrever o passo-a-passo de como ele derrotou Hillary Clinton e como reverteu a crise do vazamento do áudio em que Trump afirma que “agarra mulheres pela vagina”. É fascinante acompanhar as artimanhas que surgem na cabeça do sujeito, algo ainda mais dramático quando chegamos a uma realização desesperadora: ele compreendeu nossa situação atual com perfeição, e sabe exatamente o que está fazendo. Por mais que seus ideais sejam torpes e as vezes até infantis (ele tem uma relação no mínimo curiosa com filmes americanos antigos, do tipo mais romântico e banal), não há dúvida de que sabe como agir politicamente em nosso tempo. Não há dúvida de que ele conhece os anseios da população média americana. Trump veio para dar fim à “carnificina americana”. Nessa visão bestial, todo o resto é detalhe.

Para Bannon, uma coisa é certa: estamos em guerra. Em guerra, tudo o que não é a luta é apagado. E que luta é essa? Ela se dá fundamentalmente em dois campos: o cultural e o econômico. O meio de vida americano está destruído por esses dois lados, e a culpa só pode ser da casta política. Ninguém ligou para o escândalo sexual de Trump porque essa não é a questão. A moralidade do homem que vai resolver nosso problema é irrelevante. E, se for preciso sustentar essa posição em uma forma menos egoísta, o estrategista de Trump fornece a matéria-prima: basta apontar para o histórico de Bill Clinton, acusa-lo de estuprador[6]. É a história do homem endividado que liga para seus credores e finge que na verdade eles é que o devem alguma coisa. No fim, chegam ao acordo de que ninguém deve nada a ninguém.

É evidente que quem sabe a raiz do problema sabe vender uma solução. Não havia nada na candidatura de Hillary que indicasse uma mínima noção da problemática social de seus conterrâneos. A socióloga Arlie Horschild mostra que uma grande parte da sociedade americana, de uma classe média e trabalhadora, sente que o país, o sonho que eles projetavam para ele e para suas vidas, está escapando de suas mãos. Sentem-se como “estrangeiros na sua própria pátria”, para usar os termos da pensadora. A plataforma difusa e abstrata da candidata, que seguidas vezes acusava essa parcela da população de tudo o que há de pior no espectro político, não poderia ser mais equivocada.

Alain Badiou afirma que a vitória de Trump era certa porque era uma disputa entre uma posição e uma não-posição (Clinton). Escolher a candidata democrata não era optar por um projeto, engajar-se em um processo, articular um sonho. Era resignação. A única virtude de Hillary é que ela não era Donald Trump. Um debate que se norteia dessa forma já está perdido, pois ambas as opções são fundadas em um lado só. Ele e o Ele-Não.

Muitos críticos acusaram Morris de passar o pano para Bannon, de não lhe confrontar e atacar, de não o colocar sob pressão, como ele havia feito com Robert McNamara e Donald Rumsfeld em filmes anteriores.

O que os críticos parecem não entender é que existe uma diferença gritante entre Bannon e os outros entrevistados por Errol Morris. McNamara e Rumsfeld foram confrontados à luz da história, depois que suas maquinações foram desveladas e, o que é mais importante, entendidas. O diretor tinha em mãos tudo que precisava para enfrenta-los. De fato, ele está menos contundente do que poderia ser, mas, em American Dharma, Morris não quer confrontar. Seu objetivo é aprender. Compreender como de fato funciona a cabeça de Bannon, e como ele foi capaz de fazer o que fez. O fenômeno é novo, complexo e chocante. Desestabiliza o consenso e exige uma reflexão nova. O contraste entre a atitude de Morris e a dos críticos expõe uma divisão enorme na esquerda contemporânea e como ela reage à nova direita. A maior parte quer lhes calar, humilhar, lacrar[7] em cima deles. Mas o fato é que muitos deles têm um entendimento perfeito do nosso cenário político atual, ancorado na realidade, nos anseios materiais da população, algo que a esquerda tende a romantizar ou parece querer dispensar. Antes de silenciar Bannon, é necessário ouvi-lo, compreender suas ideias e sua estratégia, e então elaborar a melhor forma de vencê-lo. A alternativa é continuar pagando o preço em derrotas humilhantes para Bannon e sua turma, que aqui no Brasil já ocupam, com conforto cada dia maior, o poder.


* Esse texto foi escrito antes da prisão de Steve Bannon, e não sofreu nenhuma alteração em decorrência desse fato porque esse fato não altera seu argumento. Bannon é moralmente repulsivo e claramente perturbado, mas isso não quer dizer que não haja o que aprender com ele, postas as ressalvas necessárias. Basta lembrar de José Dirceu, que não é flor que se cheire (até Lula, como nos lembra Perry Anderson, tinha medo dele), mas tem que ser ouvido para que possamos compreender o pensamento de quem o segue. Bannon pode ser preso, mas a luta para derrotar seu legado está longe de acabar.


Notas:

[1] Basta ver a primeira cena de The Brink, outro filme sobre ele, na qual Bannon descreve seu horror diante da constatação de que a máquina de extermínio nazista foi fruto de um processo racional e burocrático para compreender o tamanho de sua incongruência e volatilidade moral.  “Existiram pessoas que sentaram e pensaram nesse processo todo e se desligaram inteiramente do horror moral dele”, ele nota, incrédulo. E nós só temos a agradecer a genialidade da diretora Alison Klayman, por abrir seu filme com essa cena.

[2] Ver David Wallace-Wells: A terra inabitável, publicado pela Companhia das Letras.

[3] O excelente American Factory mostra algumas facetas dessa transformação sob ambos esses aspectos.

[4] Ver, sobre esse assunto https://newleftreview.org/issues/II123/articles/robert-brenner-escalating-plunder

[5] https://revistacult.uol.com.br/home/o-bolsonarismo-e-o-partido-dos-trolls/

[6] A esquerda parece incapaz de compreender isso. No fim do dia, ainda precisamos proferir nossa opinião política em termos intelectual e discursivamente aceitáveis. Esse é o valor incalculável de figuras como Olavo de Carvalho para movimentos desse tipo. Eles fornecem uma camada de legitimidade para o discurso mais estapafúrdio possível, de modo a possibilitar que o eleitor médio o declame sem pesar. Mas esse assunto será abordado em outro texto.

[7] Ver: https://lavrapalavra.com/2020/07/27/o-brilho-ofuscante-da-lacracao-ponderacoes-sobre-o-cancelamento-de-dan-bilzerian/

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