Considerações filosóficas sobre o ritual eleitoral fraudulentamente chamado democracia

Por Alain Badiou, via Quartier Général, traduzido por Daniel Alves Teixeira

E eis que hoje eu vou falar sobre as eleições, uma peripécia nacional. Vocês teriam razão em me acusar de oportunismo, de parecer um aparato midiático vulgar. Vocês poderiam dizer que estou falando aqui sobre o que está acontecendo e do que praticamente todo mundo já sabe.

Acredito que posso me defender, pelo menos parcialmente: naturalmente não vou começar este seminário com considerações, números e calculadoras, sobre o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais. Isso seria dobrar a filosofia às leis do jornalismo. Mas também não quero agir como se fosse falar inteiramente fora do contexto dessas eleições. Isto mostraria também um certo esnobismo intelectual. Por ora, farei uma única observação empírica. Uma opinião comum trata os últimos anos como anos sombrios, quase devastadores. Falamos sobre perda de liberdades, distúrbios econômicos, pandemia quebrando o ritmo da vida. Falamos de autoritarismo cego e insensível, lamentamos o desaparecimento total da esquerda, sublinhamos a importância dos movimentos de protesto, dos coletes amarelos ao antivax. Anuncia-se que o pior está à nossa frente, com inflação galopante e escassez previsível, principalmente de gás e petróleo. Eu mesmo, aliás, falei de uma época de grave desorientação política.

Parece, portanto, que a época é turbulenta, nova, perigosa e que até o conforto médio desfrutado pelos países da Europa Ocidental está ameaçado.

Bem, boas notícias! O parlamentarismo eleitoral afirma que está tudo bem, e que nada muda ou deveria mudar. A prova cabal é esta: há cinco anos, as eleições presidenciais trouxeram para o segundo turno um arrojado recém-chegado, Emmanuel Macron, e uma conhecida estrela do repertório eleitoral, Marine Le Pen. Os velhos partidos, especialmente a esquerda clássica, PS e PC, estavam desanimados. A partir de agora, ficamos sabendo que que é que vai acessar o segundo turno da eleição presidencial? Bem, o mesmo na mesma ordem, a herdeira Le Pen vindo mais uma vez atrás do velho recém-chegado Macron. E dos partidos da esquerda clássica, praticamente não há mais dúvida, estão, com os pequenos grupusculos da esquerda radical e os auxiliares da extrema direita, no inferno dos totalmente imperceptíveis.

Ele não está errado em nenhum ponto, este dispositivo: as conjunturas da realidade podem mudar, o protocolo eleitoral, por sua vez, permanece idêntico a si mesmo e à sua função de sempre: garantir que a realidade da sociedade francesa e de seu grupo dominante persevere, quaisquer que sejam os avatares da superfície eleitoral.

Sobre este ponto, gosto de citar um ex-ministro da Justiça gaullista, Alain Peyrefitte. O resultado das eleições de 1981, que levaram ao poder uma coalizão socialista-comunista liderada por Mitterrand, assustou o leal reacionário gaullista Peyrefitte. Ele então soube encontrar, e foi, creio eu, a primeira vez que encontrou algo coisa, uma fórmula admirável. Ele diz: “As eleições são feitas para mudar o governo, não para mudar a sociedade”. Guiado por sua angústia, ele redescobriu, muito paradoxalmente, uma consideração do próprio Marx: a saber, que as eleições são apenas um mecanismo que serve para designar, segundo a expressão de Marx, “os representantes do Capital”. No fundo, ambos, ainda que com fim opostos, diziam que as eleições diziam respeito à gestão – o governo – da ordem capitalista burguesa, mas de forma alguma visavam o questionamento dessa ordem em si.

De fato, nunca aconteceu, e na minha opinião nunca acontecerá, que a ordem capitalista de uma sociedade onde essa ordem foi firmemente estabelecida, muitas vezes desde dois séculos, seja derrubada após uma eleição e substituída por uma variante inventiva de coletivismo. Pode haver desvios oportunistas, um desvio para a direita porque a burguesia está infeliz, ou a situação financeira o exige, um desvio para a esquerda, porque o povo está resmungando e então é apropriado deixar cair alguns centavos. Mas nunca acontece nada que mude a ordem subjacente da organização social dominante.

Somos neste ponto muito mais cegos e medrosos do que os militantes do século XIX. Sobre aqueles que ainda acreditavam que as eleições eram um lugar democrático e que ali se podia derrotar o inimigo conservador, esses verdadeiros militantes, intelectuais e trabalhadores, falavam muito claramente em “cretinismo parlamentar”.

Nada é mais compartilhado hoje do que, sob o nome de “democracia”, uma forma quase definitivamente instalada de “cretinismo parlamentar”. Especialmente entre muitos intelectuais, a oposição fundamental a seus olhos entre “totalitarismo” e “democracia” é apenas uma forma moderna e infinitamente mais perniciosa, dessa doença conservadora que é o cretinismo parlamentar.

Quanto a mim, eu era na minha juventude, especialmente no início dos anos sessenta, um idiota desse tipo. Militante das variantes de esquerda do socialismo, participei ativamente de campanhas eleitorais, contei os votos com tristeza, preparei as próximas eleições, considerei alianças de toda a esquerda… Em suma, fiz todo o necessário para que o cretinismo animasse a militância feroz.

Foi a tempestade de maio de 68, minha ativa frequência às fábricas, a descoberta da potencial capacidade política dos trabalhadores, especialmente dos imigrantes, que me fez entrever que o caminho do coletivismo comunista não estava, não podia ser encontrado nos ritos eleitorais. Isso foi confirmado, se houvesse necessidade de prova, pelo triunfo nas eleições de 1968 da reação mais agressiva possível.

Desde então, e portanto há 54 anos, faço uma cura de descretinização: não votei em nenhuma eleição, por mais tensa e melodramática que seja sua encenação, em particular pelos partidos ditos de “esquerda”. Mas acredito que temos que entender por que o dispositivo eleitoral, tal como funciona alegremente nos países ocidentais, é chamado de “democrático” e, sob esse nome, considerado o único regime político libertador, todos os outros sendo qualificados como “ditatoriais” ou “totalitário”. Considerando que, da Rússia a Cuba, passando pela China, Vietnã ou Iugoslávia, nenhuma experiência de implantação não capitalista da sociedade, nenhuma experiência coletivista, qualquer que seja sua duração ou avatares, conseguiu se estabelecer por meio de eleições, nem praticou o parlamentarismo de tipo ocidental.

É verdade que o próprio Marx extraiu, da experiência fundamental que a Comuna de Paris foi para ele, sua grandeza e seu fracasso, a ideia de que a natureza de um poder comunista de transição, destinado a fazer murchar o Estado e a confiar a gestão de todas as coisas aos povos interessados, que um tal poder, em vista da resistência violenta que corria o risco de encontrar, só poderia ser chamado de “ditadura do proletariado”.

É por isso que o que é chamado de “democracia” nos países imperialistas ocidentais, eu renomeio, de forma brutal, a forma refinada da ditadura burguesa, e de uma forma um pouco mais técnica mas clara, o “parlementar-capitalismo”.

Então, analiticamente, o que é isso?

Em primeiro lugar, é obviamente falso que a democracia possa ser definida pelo ritual eleitoral. Etimologicamente, “democracia” significa “poder do povo”, ou mesmo “comando pela multidão”. É ridículo pensar que tal ordem possa ser outra coisa que não “coletiva”, no sentido de uma reunião do povo, como praticado pelos atenienses na Grécia antiga. Deste ponto de vista, nada é mais ridículo do que declarar democrática a prática da cabine de votação! Essa cabine de votação é o traço visível de uma concepção totalmente burguesa de convicção política: é, no contexto eleitoral, uma convicção “privada”, como deve ser a propriedade. E assim como os burgueses que são acionistas e donos do capital têm uma tendência marcada a esconder suas posses recorrendo a paraísos fiscais, também o eleitor deve esconder seu voto preenchendo sua cédula, sozinho, numa espécie de mictório eleitoral. Não se pode inventar um procedimento tão antidemocrático como esta solidão! Em uma verdadeira democracia, qualquer decisão deve resultar de uma reunião onde as várias possibilidades foram discutidas e compreendidas por todos. E a escala do encontro, seja de uma fábrica, de um distrito, de uma aldeia, de uma cidade, de um cantão, de uma região, de uma nação e um dia de todo o universo, depende do assunto tratado e do caminho percorrido na direção indicada pela canção de guerra proletária: “Levantemo-nos e amanhã, a Internacional será o gênero humano”.

A cabine de votação é a materialização de uma ideia tipicamente burguesa e conservadora, uma ideia que afirma que a unidade básica de tudo o que existe é, na ordem política hoje dominante, o indivíduo.

Em certo sentido, a maior contradição é de fato a da palavra após a qual colocamos o sufixo “ismo”. É “individual”? Diremos então que a ideologia dominante é o individualismo, que está imediatamente ligado à propriedade privada de tipo burguês, em particular à propriedade privada dos meios de produção. Ou então, diremos que devemos partir do “comum”, do que é partilhado no destino de todos, do que resulta de deliberações fundamentadas em que todos aqueles que se interessam pela decisão a tomar devem tomar parte . . E então dizemos comunismo, que está imediatamente ligado à propriedade coletiva, propriedade compartilhada em particular por todos aqueles que vivem ou trabalham no local em questão.

Diremos então que o ritual eleitoral, destinado a designar nas cabines de votação aqueles que serão os protetores do individualismo e da propriedade burguesa, deve ser chamado de “parlamentarismo” e não de “democracia”, pois em vez de decisões coletivas reais em todos os níveis, ele propõe a criação de um lugar único onde, sob nomes como “ministérios” ou “parlamentos” se reúnam os representantes do conservadorismo capitalista. Daí o nome que proponho para tal regime: capital-parlamentarismo.

Hoje é particularmente claro que esse nome se justifica. De fato, as eleições de várias câmaras – esses salões políticos do Capital – são literalmente programadas por um gigantesco aparato de propaganda, ele próprio controlado pela propriedade burguesa. Os principais jornais e semanários nacionais, canais de rádio e televisão estão há muitos anos sujeitos a um processo ininterrupto de privatizações. É coerente, afinal! Eleger uma maioria de procuradores para o individualismo capitalista é mais seguro se for à capitalistas notórios e convencidos que todos os meios de propaganda pertencem! Os poucos sobreviventes públicos pertencem ao Estado burguês, e fala-se constantemente em privatizá-los também. Uma “propaganda” nas mãos do Estado, diz o individualista burguês, é totalitária! Mantido por um bilionário, é… democrático.

Uma objeção que pode ser feita aqui é que o procedimento parlamentar envolve não apenas indivíduos, mas partidos, e que um partido pode pretender ser o representante de uma comunidade, como os trabalhadores, quando dizemos, por exemplo, que um partido comunista é “o partido da classe trabalhadora”. De acordo com essa visão, o procedimento eleitoral seria coletivo, pois oporia grupos representativos da diversidade social. O próprio Lenin disse: “A sociedade está dividida em classes, as classes são representadas por partidos e os partidos são liderados por líderes”. Bem, não tenho certeza se ele estava certo.

Tudo repousa aqui na noção suspeita de “representação”. No fim das contas, o capitalista-parlamentarismo pode afirmar que, graças aos partidos políticos e ao voto parlamentar, é de fato a realidade da sociedade que acaba por ser “representada” nas assembleias eleitas.

Minha tese é então a seguinte: o que caracteriza a verdadeira democracia é que ela não admite representação. Não é representável. Um partido, por mais proletário que se declare, não é, não pode ser, a representação dos trabalhadores, da classe trabalhadora. Só pode ser um dos instrumentos políticos com os quais a classe se equipa na luta contra a hegemonia burguesa. Fica, portanto, sob o signo do múltiplo: é uma multiplicidade proletária organizada, nada mais.

De fato, na política, o que é decisivo é a presença, a apresentação, e não a representação. É o múltiplo da decisão que conta, não o Um da representação e de uma decisão separada.

Dois exemplos do maior alcance.

1. Quando Lênin retorna do exílio na Rússia, estamos no início da revolução de 1917, ele é recebido na estação por um forte distanciamento do Partido. E imediatamente gritou: “Todo o poder aos sovietes”. Ora, os sovietes são as múltiplas assembleias operárias e populares, que Lenin considera como a existência política real de um caminho completamente novo da política socialista. Um caminho precisamente oposto àquele em que os partidos socialistas da França ou da Alemanha se atolaram, ou seja, o caminho do partido parlamentar e as eleições, que finalmente os levaram a apoiar o compromisso assassino de seus respectivos países na carnificina de 14-18. Lenin não disse, nunca disse, “todo poder ao partido”. Mais tarde, na década de 1920, pouco antes de sua morte, ele se perguntou se o estado soviético liderado pelo Partido Comunista era realmente diferente do estado czarista. Ele proporá a criação de uma inspetoria operária e camponesa diretamente responsável pelo controle do Estado. Mas ele morrerá sem ter conseguido concretizar suas propostas. E Stalin levará ao auge a identidade falsamente representativa entre o Partido e o Estado.

2. Durante a Revolução Cultural na China, muitas vezes perguntaram a Mao Tse Tung por que ele sempre falava da situação na China como uma luta do proletariado contra a burguesia, quando a China era um estado comunista, um estado governado pelo partido comunista. E Mao acabou por dizer isso: “Muitas vezes me perguntam onde está a burguesia na China. Bem, a burguesia está no partido comunista”. Ele viu, portanto, que o Partido, tão logo se funde com o Estado, pode degenerar. Em vez de trabalhar para o definhamento do Estado em favor de uma gestão coletiva imediata de todos os processos de produção, administração ou distribuição, os caciques do Partido formam uma nova burguesia. Em vez de coletivizar a propriedade privada, eles assumem o controle dela. Em vez de definhar o estado dos capitalistas, eles estão criando o capitalismo monopolista de estado. E assim é a China de hoje, que se tornou uma potência no mercado mundial, rival dos Estados Unidos, sem qualquer caráter comunista.

Em ambos os casos, como podemos ver, os grandes pensadores e dirigentes comunistas viram claramente o perigo de substituir a determinação política popular por sua representação eleitoral ou partidária. Eles não puderam impedir que esse fenômeno antidemocrático prevalecesse e, com ele, a hipótese comunista, única alternativa à dominação capitalista, fosse terrivelmente enfraquecida.

A verdadeira democracia certamente implica formas de organização, mas uma organização não é e não deve ser uma representação. Deve permanecer subordinado à multiplicidade ativa.

Mas a multiplicidade atuante por sua vez não deve ser reduzida a um conjunto de indivíduos. Não é redutível a um total de indivíduos. Ela não pratica a cabine de votação. Ela trabalha coletivamente para analisar a situação e determinar a ação que importa. Qualquer reunião política verdadeiramente democrática se resume a encontrar uma resposta, elaborada e compartilhada, a duas perguntas clássicas: uma, qual é a situação atual? Dois, nesta situação, quais são nossas tarefas?

Dir-se-á, portanto, que o múltiplo político atuante define a situação atual e suas tarefas, entre dois perigos, duas alienações: sua redução eleitoral aos votos de uma multiplicidade de indivíduos, que é sua própria forma de decomposição; e sua redução parlamentar que consiste em nomear uma direção unificada do múltiplo. Que é sua própria maneira de se confundir com uma representação.

Decomposição eleitoral e representação dirigente são as duas armadilhas de qualquer política que tente escapar da ditadura do cretinismo parlamentar.

Na verdade, o que a chamada democracia parlamentar teme acima de tudo é que os dois vícios do capital-parlamentarismo, decomposição e representação, sejam enfraquecidos. Isso acontece se contestamos o sufrágio como a única validação política, e se contestamos o poder do Estado como a única figura unificada da ação política.

O cretinismo parlamentar das forças da oposição é recuar constantemente diante dessas duas críticas radicais da política pseudodemocrática e afirmar que, uma vez no poder, faremos o contrário. Mas de fato, o poder será realmente o mesmo. Porque é desde a mobilização das multiplicidades populares que devemos nos distanciar tanto da decomposição quanto da representação.

Armado com tudo isso, deixe-me voltar à conjuntura recente e falar sobre ela um pouco abstratamente. Os três verdadeiros parceiros da feira eleitoral são de fato, por um lado, os dois eleitos para o segundo turno, a saber, o presidente Macron e Madame Le Pen. Por outro lado, o forasteiro à esquerda, ou seja, o fervente Mélenchon. Os outros, na lógica parlamentar, não são mais do que pessoas que têm que vender seus pequenos eleitorados por quase nada. Eles compõem os batalhões da decomposição parlamentar. Mas os outros três, se eles escapam temporariamente dessa decomposição, têm sérios problemas de representação. De que multiplicidades são eles os únicos representantes? Em nome de quais coleções de cabines de votação eles falam? Aqui eles estão muito preocupados com o que os ameaça, e que está muito próximo: as eleições legislativas. No entanto, dos três primeiros no primeiro turno das eleições presidenciais, apenas Marine Le Pen pode se gabar de ter partido. Macron, como sabemos, nunca teve, de fato, nada além de um remendo que se tornou pouco a pouco inconsistente. E Mélenchon já não é dos socialistas, nem dos comunistas, que, aliás, em termos de representação, apenas apresentam a sua decomposição. Então? Como organizar uma gestão unificada do múltiplo? Até Madame Le Pen está com problemas, porque os outros dois se uniram contra ela. Macron, o não partidário, recebe de braços abertos todos aqueles que não querem Madame Le Pen. E Mélenchon disse quatro vezes: “nenhuma voz para Madame Le Pen”, sem nunca dizer, porém, o que a tortuosa demagogia obriga: “vote Macron”.

Nestas condições, a máquina eleitoral, com a sua bomba decompositora e a sua torneira representativa, arrisca-se a dar a partir do próximo mês um presidente sem poder perante um parlamento sem maioria, ainda que ninguém tenha dito realmente a verdade: isto é, que a dita máquina pode se adaptar a qualquer coisa, exceto, é claro, esse é o axioma de Peyrefitte, a qualquer mudança na sociedade, a saber: um ataque à influência, ela incondicional, do capitalismo moderno no jogo eleitoral. Este ataque, nunca!

De resto, assim que o real capitalizado subjacente prospera, a máquina eleitoral pode secar, ela já viu outros. Quando eu era jovem, estávamos na quarta república, as maiorias eram geralmente tão fracas que mudamos constantemente de primeiro-ministro. Votamos sem saber quem seria o ministro, e os governos dançavam alegremente. Isso impediu que o capitalismo francês se reconstituísse, nos anos 1950 e 1960, a ponto de falarmos dele como um período suntuoso, dos “30 gloriosos”? De jeito nenhum! Isso impediu os situacionistas de Guy Debord de falar do nascimento de uma “sociedade de consumo”? Ainda menos…

A conclusão será, portanto: para evitar as armadilhas da dialética entre decomposição e representação, acima de tudo, nunca se aproxime de uma cabine de votação, não vote, nunca volte a votar. Suba em todos os lugares, em tudo o que lhe interessa, tudo o que o mobiliza, verdadeiros encontros coletivizantes sem o menor traço de eleição. Lembre-se que o único inimigo destemido, o único beneficiário do sistema, é a ditadura econômica e social do Capital. A “Democracia”, aquela que se opõe ao totalitarismo, concretamente, são os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Alemanha, etc. Ou seja, a procissão das potências imperiais, e os bilionários colocando a serviço de seus bilhões todo o terceiro mundo dos pobres, daqueles que, para viver ou sobreviver, devem deixar seu país e tentar vir para outro lugar, para nós, por exemplo . Por que votar, se não para expulsar essas aves de rapina de nossas casas e receber de braços abertos suas vítimas tropicais, asiáticas, sul-americanas e assim por diante? Mas é justamente isso que a máquina eleitoral não permite. Então, em todo caso, deixemos de votar, e convoquemos, em reuniões multifacetadas para construir outra humanidade, todos a fazerem o mesmo.

O objetivo: que os bilionários sejam os únicos a votar. Aí veríamos com mais clareza.

Enquanto isso, gostaria. para reconfortá-los, de fazer uma pequena música verbal, ler para vocês fragmentos de um belo texto sobre política. Eles são retirados da penúltima parte de “A República”, de Platão. Vemos aí que a esperança de uma militância racional já havia encontrado, contra a aparência pseudodemocrática, sua linguagem.

Eu leio para você esses trechos na minha tradução. Sócrates fala primeiro:

— Afinal, por que os ricos desprezam os trabalhadores pobres, não hesitando em chamá-los de “bárbaros” ou “mal integrados à civilização”, de fazer leis perversas contra eles, ajuntá-los em cidades revoltantes e controlá-los, bater neles, prendê-los, até mesmo fuzilá-los assim que eles fingem se revoltar? É porque eles têm muito medo, os ricos e seus partidos parlamentares, que, animados pela pura humanidade da Ideia, o leão do afeto operário submeta a covardia da besta dominante, e que daí resulte uma força e coragem política, tanto mais ameaçadora para o poder dos ricos quanto estes são de fato corruptos e covardes.

O jovem discípulo de Sócrates, chamado Glauque, intervém então nestes termos:

“Ainda não vejo como escapar do perigo que todos esses vícios trazem…

Então Sócrates:

— O coletivo político, seja ele qual for, deve ser à imagem do homem interior, aquele que é capaz de verdade. A sua deliberação deve conduzir ao que, segundo uma apreciação fundamentada e racional, constitui uma verdade política. Só esta verdade se opõe às decisões de um grupo social que persegue violentamente seus próprios interesses.

E Amantha, a jovem também discípula do filósofo:

“Parece-me que você opõe às paixões do comércio e às ações egoístas uma disciplina à qual se deve consentir, pois estabelece o poder, no homem, de uma capacidade sobre-humana. Você quer que a deliberação política nos una à serviço de nossa harmonia subjetiva.

Ao que Sócrates responde:

— Em todo caso, escaparemos aos ditames impostos em toda parte pelo implacável processo de concentração do Capital. Voltados para nosso governo interno, nosso pensamento ativo, encontraremos ali como subordinar os negócios do dinheiro e o retorno monetário de ações possuídas ao desdobramento daquilo que, para além de nossos desejos imediatos, somos capazes de criar com um sentido universal. Faremos o mesmo em relação ao reconhecimento público, para além de qualquer mecanismo eleitoral. Não contaremos os votos. Aceitaremos de bom grado os elogios daquilo que julgamos ser o nosso melhor, e fugiremos, tanto na nossa vida privada como nos nossos compromissos no cenário mundial, das homenagens interessadas que possam perturbar o nosso devir-sujeito.

O jovem Glauque, um pouco melancólico, se inquieta:

“É provável que fiquemos longe de toda ação política e de todos os políticos…

Sócrates reage vivamente:

“Não, pelo Cão!” Estaremos muito ativamente envolvidos na política entre o povo de nosso país como a serviço de toda a humanidade! Mas não no nível das funções oficiais, não no estado – à distância do estado, pelo contrário. A menos que circunstâncias revolucionárias imprevistas.

Glauco, recuperando a esperança:

– Oh sim ! Circunstâncias que estabeleceriam uma ordem política como a que estamos falando desde ontem à noite, certo? Porque essa ordem só existe por enquanto em nossos discursos. Eu não acredito que haja um exemplo completo disso em qualquer lugar.

E Sócrates então concluirá nestes termos:

— No entanto, é provável que muitos processos políticos muito reais, em muitos países, sejam compatíveis com a Ideia que é nossa, pois o alcance dessa Ideia, a ideia que alguns chamam de comunismo, comunismo real, é universal. No entanto, se esses processos são poderosos ou recentes, numerosos ou raros, não é o que nos determina como Sujeitos ativos. Certamente esperamos que as políticas um dia forneçam à Ideia o real do qual ela se sustentará em escala mundial. Mas mesmo que ainda não seja o caso, é ainda assim, em tudo o que empreendermos, a esta Ideia e à nenhuma outra que tentaremos ser fiéis.

Voilá. Sim, vamos tentar ser fiéis. Para começar, repito, não vamos votar mais, não votemos. Votar já é o começo da corrupção pelo poder. E, no vazio criado por essa abstenção combativa, abriguemos tudo o que atrai, no povo, o desejo, mesmo ainda não formulado, de acabar com o Capital, sua concentração, seus bilionários, seus oligarcas em todos os lugares, para que em todos os lugares, e em todas as questões, assembleias populares, sovietes não eleitos, decidem o que melhor convém, e em paz, a todos os povos da terra.

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Este texto foi pronunciado no Théâtre de la Commune, como parte do seminário público do filósofo, em 11 de abril de 2022.

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