Politzer: por uma psicologia concreta

Por José Paulo Netto, via Blog da Boitempo.

Nota editorial: George Politzer foi um filósofo francês, militante marxista e autor de brilhantes reflexões sobre a psicologia e a psicanálise. Por ocasião dos 80 anos de seu assassinato pela Gestapo nazistas, em 23 de maio de 1942, rendemos homenagem por meio da republicação deste breve artigo do professor José Paulo Netto – e anunciando a publicação, em breve, pela LavraPalavra Editorial, de uma coletânea contendo seus principais escritos: Crítica dos Fundamentos da Psicologia (1928), Psicologia Mitológica e Psicologia Científica (1929), Para onde vai a Psicologia Concreta? (1929), Psicanálise e Marxismo – Um falso contrarrevolucionário: o Freudomarxismo (1933) e O Fim da Psicanálise (1939), organizada e traduzida pelo camarada Bruno Bianchi.


O herói da resistência francesa não merece ser lembrado apenas pelas suas aulas na Université Ouvrière.

No Brasil, boa parte dos jovens brasileiros que, no final dos anos 1950 e na entrada dos anos 1960, se interessaram pelo marxismo conheceu Georges Politzer primeiramente como autor de um manual de filosofia e, depois, como um herói da Resistência Francesa.

Entre 1956 e 1961, pela editora Andes, do Rio de Janeiro, saíram três edições do seu Curso de filosofia: princípios fundamentais. Em 1962, uma tradução mais cuidadosa (de João Cunha Andrade, sobre a definitiva versão francesa do pós-guerra) foi lançada pela editora Fulgor, de São Paulo, sob o título Princípios fundamentais de filosofia. Creio que estas edições são hoje raridades bibliográficas; mas, posteriormente, várias outras foram publicadas no Brasil (como uma da Hemus, de São Paulo, de 1990) e, até hoje, utilizam-se em grupos de estudos marxistas.

Princípios fundamentais de filosofia reproduz as lições de Politzer nos cursos que ministrou, em meados dos anos 1930, na Université Ouvrière, criada em 1932, em Paris, sob os auspícios de figuras ilustres como Romain Rolland e Henri Barbusse. O texto foi estabelecido por G. Besse e M. Caveing e, parece, revisado por J. Kanapa – um histórico e polêmico dirigente comunista francês (boa fonte sobre ele é a sua biografia preparada por G. Streiff1).

Texto dado à luz após a Libertação da França, o livro fez de Politzer um autor popular – suas páginas logo se tornaram um instrumento de formação teórica que influiu sobre gerações de comunistas. É, sem dúvida, um exemplo de didatismo, dirigido para um público específico – originalmente, trabalhadores que estudavam à noite –: texto introdutório, vazado em linguagem singela, tem os méritos da divulgação filosófica, mas também os vieses costumeiros do manualismo marxista. Por este livro, não se obtém uma imagem adequada do intelectual que foi Politzer – tem-se, tão somente, uma amostra do seu empenho militante em servir à classe operária.

Este empenho peculiarizou a trajetória de Politzer. Nascido na Hungria a 03 de maio de 1903, pouco mais que adolescente participou da efêmera república húngara dos conselhos (1919). Fugindo à repressão, comandada por Horthy, que se seguiu à derrota da revolução em seu país, passou por Viena, onde tomou contato com a obra de Freud, e se exilou na França, em 1921, dedicando-se a estudos de filosofia, que concluiu formalmente em 1926. No final da década de 1920, num processo que à época envolveu muitos jovens intelectuais (Henri Lefebvre, Georges Friedmann, Pierre Morhange, Paul Nizan) que haveriam de marcar a cultura francesa do século XX, aproximou-se do movimento comunista e ingressou, em 1929, nas fileiras do Partido Comunista Francês.

Sua militância comunista, a partir de então, vai redirecionar os seus interesses originais, expressos na sua obra teoricamente mais significativa, Crítica dos fundamentos da psicologia, de 1928 – em várias ocasiões, H. Lefebvre creditou à militância de Politzer a não continuidade das suas pesquisas na área (o texto de 1928 seria a base para um ensaio mais substantivo, que o autor não chegou a escrever). Não se pense, porém, que Politzer se tornou um personagem menor na batalha das ideias: participou, ao lado de Paul Langevin e Georges Cogniot, da criação da revista La Pensée (1939), foi ativo colaborador dos Cahiers du bolchévisme (1935-1939) e da clandestina La Pensée libre (1941-1942).

A sua fecunda produção intelectual pode ser apreciada numa coletânea – que inclui seu trabalho seminal, publicado originalmente sob pseudônimo, Contre Bergson et quelques autres – intitulada Écrits philosophiques.1924-1939 (Paris: Flammarion, 2013). Assumidamente um defensor da razão iluminista, enfrentou as tendências irracionalistas então na moda e combateu frontalmente as suas derivações nazi-fascistas – um dos seus alvos foi o racismo e a “filosofia” de A. Rosenberg, ideólogo e conselheiro de Hitler. Materiais significativos desse enfrentamento estão coligidos no volume, organizado por R. Bourderon, Politzer contre le nazisme (Paris: L’Harmattan, 1984). Em português, além do ensaio de 1928, já citado, de alguns textos de Politzer só tenho conhecimento daqueles reunidos em A filosofia e os mitos (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973).

Politzer, que exercia o magistério, passou à clandestinidade em setembro de 1940, juntamente com Marie (“Mai”), nascida a 15 de agosto de 1905 e sua companheira de vida e militância, com quem se casara em 1931, depois da dissolução do seu primeiro matrimônio; a um de seus filhos, Michel Politzer, deve-se a narrativa Les trois morts de Georges Politzer (Paris: Flammarion, 2013). Elementos mais objetivos para resgatar a biografia de Politzer, todavia, são oferecidos, sinteticamente, por R. Bruyeron em “Les trois vies de Georges Politzer”.2 Na clandestinidade, Politzer e “Mai” exerceram papéis expressivos na resistência protagonizada pelos comunistas franceses. Presos pela Gestapo em fevereiro de 1942, portaram-se brava e heroicamente em face das bárbaras torturas de que foram objeto. Politzer foi fuzilado nos arredores de Paris a 23 de maio de 1943 e “Mai” faleceu, cerca de um ano depois, no campo de Auschwitz.

A partir da década de 1950, o interesse pelo espólio literário de Politzer se renova, mas colocando em evidência sobretudo o seu ensaio de 1928 – Crítica dos fundamentos da psicologia –, que se torna, entre intelectuais franceses de relevância, como o credibilizado D. Lagache, uma referência, tanto como crítica da teoria psicológica tradicional quanto como a aproximação pioneira, na França, ao pensamento freudiano. Mas referência não só entre franceses: também fora da Europa, não foram poucos os psicólogos e psicanalistas que examinaram com atenção as formulações do jovem Politzer (não se esqueça que, à época da publicação do ensaio, ele ainda não completara 30 anos) – na Argentina, por exemplo, José Bleger, respeitado docente da Universidad de Buenos Aires, publicava, sob clara influência de Politzer, o seu Psicoanálisis y dialéctica materialista (Buenos Aires: Paidós, 1958).

A Crítica de 1928 não constituiu apenas a pioneira aproximação ao pensamento freudiano na França: nela, Politzer formula a sua exigência de uma psicologia concreta, centrada na categoria de drama, que ele propõe como a única alternativa para fundar cientificamente a ciência psicológica – superando a concepção antropológica abstrata e dualista que até então era o fundamento da psicologia idealista – e permitir-lhe uma apreensão materialista e totalizadora da vida anímica (que Politzer nunca identificou a uma “vida espiritual” qualquer). E essa exigência de uma psicologia concreta excluía, também, todo viés behaviorista: abria, de fato, a possibilidade de estabelecer uma psicologia segundo os parâmetros de uma concepção do homem como ser prático e social. A elaborada proposição de Politzer e a sua exigência ganham plena inteligibilidade recorrendo-se aos estudos contidos em G. Bianco, dir., Georges Politzer, le concret et sa signification (Paris: Hermann, 2016).

Nos anos 1960 e 1970, antes e contemporaneamente à edição dos seus Écrits, em dois volumes (Paris: Éd. Sociales, 1973), teóricos que se moviam por caminhos analíticos tão diferentes como L. Althusser e L. Sève dedicaram-lhe particular cuidado – e, segundo vários especialistas, o influente J. Lacan foi um leitor arguto de Politzer. Numa obra bastante divulgada, de estudiosa competente, há um juízo que ganhou notoriedade: “Politzer é não somente um autêntico leitor de Freud, como tem a envergadura de um grande teórico”; e a autora complementa: “Sob sua pena, a língua francesa possui uma verve e uma fineza incomparáveis. Esse húngaro não respeita nada, nem as celebridades, a quem trata de vasos de porcelana, nem a famosa ‘inteligência francesa’, cujo ridículo fustiga com toda força”.3

Sem prejuízo ou desvalor de outros escritos de Politzer, as ideias da Crítica… de 1928 (que, nos últimos vinte e cinco anos, encontraram estudiosos sérios também na academia brasileira) talvez sejam o mais valioso de sua contribuição ao pensamento marxista, numa área de pesquisa em que outros teóricos também ofereceram contributos de indiscutível significação (pense-se, por exemplo, em Vigotsky e Wallon). A consideração criteriosa do ensaio de 1928, que lamentavelmente não pôde ser desenvolvido por Politzer, como era sua intenção original – esta consideração mostra que o herói da resistência francesa não merece ser lembrado apenas pelas suas aulas na Université Ouvrière.

NOTAS

1 Jean Kanapa. 1921-1978. Une singulière histoire du PCF. (Paris: L’Harmattan, 2001).

2 La Révue du Projet. Paris: PCF, nºs. 34-35, février-mars/2014.

3 E. Roudinesco, História da Psicanálise na França. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, v. 2, p. 76 – itálicos não originais.

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