Althusser: manual de instruções

Por Panagiotis Sotiris, traduzido por Reginaldo Gomes

A obra de Althusser não sofreu por ter caído no esquecimento ou por ter sido ignorada: ao contrário, ela sofreu por ser um pensamento “bem conhecido”. Ou como disse Hegel, “o que é bem conhecido em geral, justamente por ser bem conhecido, não é conhecido.” Todos pensam ter compreendido Althusser sem o terem lido, de modo que o filósofo francês representa ou o espantalho de um marxismo frio e cientificista ou um monumento embaraçoso do pensamento francês dos anos de 1960.


Para os militantes, parece muitas vezes incongruente que ainda prestemos atenção a uma figura ao mesmo tempo tão controversa e tão canonizada. Face a essa confusão, Panagiotis Sotiris, militante que se reivindica da corrente “althusseriana” da esquerda grega, oferece um verdadeiro manual de instruções para se adentrar no trabalho de Althusser. Iluminando os diferentes aspectos do seu pensamento, ele detalha principalmente três “momentos”: uma redefinição da prática marxista da filosofia, uma profunda renovação do pensamento da ideologia e, last but not least, uma reformulação estratégica do movimento comunista, enfatizando a ditadura do proletariado e a necessidade de se trabalhar em uma política à distância do Estado.

É difícil estabelecer um guia de leitura da obra de Althusser, uma vez que ela é muito vasta. Proponho, portanto, organizar este guia a partir das diferentes temáticas que estruturam sua obra, de modo que o leitor possa adentrá-la a partir de diferentes lugares.

No entanto, penso que é imperativo começar pela leitura de Pour Marx[1]. De todos os textos publicados durante a vida de Althusser, esse é o que mais se aproxima de ser um livro, ainda que formalmente seja uma coletânea de textos acrescidas de um prefácio.

É uma leitura indispensável para qualquer pessoa interessada na evolução dos debates no seio do marxismo ao longo dos últimos cinquenta anos. Nessa obra, Althusser defende uma concepção não-historicista do materialismo histórico, a noção de anti-humanismo teórico e argumenta que há um corte epistemológico na evolução do pensamento de Marx. Ele esboça também uma teoria da prática teórica, um conceito de ideologia e um pensamento original da conjuntura.

Embora não se possa dizer que esse seja um livro propriamente político, ele continua sendo uma intervenção importante em um período em que a expansão do movimento comunista foi acompanhada de uma guinada para a direita e de uma profunda crise estratégica, tanto no Oriente como no Ocidente, exemplificada pela tendência à incorporação de elementos de humanismo e tecnocratismo no seio do marxismo.

Nesse sentido, o propósito secreto dessa intervenção de Althusser era favorecer uma torção da linha política por meio de uma correção teórica.

Todos que desejam descobrir Althusser, o althusserianismo e a nova concepção de epistemologia materialista que eles trazem consigo, não podem deixar de recorrer a Lire le Capital[2]. É importante ter a versão completa desse livro, com os textos de Althusser, Rancière, Macherey, Establet e Balibar.

O texto de Althusser é a versão mais bem sucedida da sua tentativa inicial de conceitualização de uma epistemologia não teleológica e não empirista, embora se possa dizer que ele seja também, de certa forma, o limite de sua abordagem.

O texto de Balibar constitui uma importante tentativa de re-conceitualização do materialismo histórico em termos de teoria das estruturas, uma tentativa que abriu o caminho para o paradigma do estruturalismo marxista.

Macherey e Establet oferecem-nos uma visão geral inestimável da arquitetura conceitual de O capital de Marx.

O texto de Rancière, por sua vez, destaca-se do resto porque é uma importante contribuição que nos oferece uma versão original da “forma-valor” em O capital, embora posteriormente ele renegue esse texto.

Após as poucas intervenções de 1966, Althusser iniciou um período de autocrítica filosófica e teórica que se traduziu na tomada de consciência sobre a importância da virada para a direita do movimento comunista oficial e dos limites de uma conceitualização da filosofia marxista em termos de uma possível “Ciência das ciências”.

Essa virada teórica foi acompanhada de um importante trabalho sobre a noção de “encontro”, que se tornou a peça central de um materialismo anti-teleológico. No entanto, esse conceito não aparece nos textos então publicados.

O primeiro grande ponto de viragem na obra de Althusser toma a forma de uma redefinição da filosofia, em três etapas:

Lénine et la philosophie[3]

Esse livro é uma defesa da intervenção filosófica de Lênin e uma argumentação original em favor do caráter político da filosofia e da intervenção política na teoria.

Philosophie et philosophie spontanée des savants[4]

Essa série de cursos de Althusser é uma tentativa de repensar a especificidade da filosofia como proposta de intervenção política na teoria. É nesse livro que encontramos uma distinção entre filosofia e ciência e uma categorização das diferentes variedades de idealismo.

Réponse à John Lewis[5]

Esse é um texto polêmico contra os defensores do marxismo humanista. Ele desenvolve simultaneamente uma redefinição da filosofia como, em última instância, luta de classes na teoria e os elementos de uma teoria do stalinismo que vai muito além de uma simples denúncia do culto de personalidade.

La Transformation de la philosophie[6]

Esse texto é uma conferência de 1976, que avança ainda mais na sua concepção de filosofia, ligando as formas tradicionais do sistema filosófico à reprodução das relações sociais e políticas dominantes. Ele sugere uma nova prática do materialismo que visa combater o idealismo da filosofia tradicional, ao mesmo tempo em que participa na libertação das práticas sociais coletivas das classes subalternas.

Entre os textos de autocrítica publicados ao longo dos anos de 1970, podemos mencionar “Éléments d’autocritique”[7]. Nele, Althusser expõe a versão “pública” de sua autocrítica, enfatizando a ruptura com o estruturalismo. Ele também aponta os elementos spinozistas do seu pensamento.

Na “La soutenance d’Amiens”[8], ele revisita os seus desenvolvimentos teóricos e faz uma autocrítica dos textos de 1965.

No entanto, o período pós-1965 é também marcado pela tentativa de Althusser de propor uma nova teoria da ideologia. Althusser é frequentemente descoberto através das numerosas referências feitas ao seu artigo seminal de 1970 de título “Idéologie et appareil idéologique d’État”[9]. No entanto, como observou Althusser, esse texto é extraído de um manuscrito muito maior intitulado Sur la reproduction[10]. É preferível lê-lo integralmente do que apenas o artigo de 1970. Ele nos oferece um caminho mais amplo das problemáticas do althusserianismo, com ênfase na luta de classes, no papel dos aparelhos ideológicos de Estado, no primado das relações de produção sobre as forças produtivas e na necessidade de uma nova prática da política. Isso coloca a teoria da ideologia de Althusser em perspectiva, tanto em termos políticos quanto históricos. Essa perspectiva associa a necessidade de uma virada para a esquerda da linha política do PCF a uma teoria da ideologia e dos aparelhos ideológicos de Estado que, de uma certa maneira, tenta se confrontar com as questões postas por Gramsci.

Apesar das poucas intervenções de Althusser sobre a conjuntura política, estamos agora em condições de tentar reconstruir seu pensamento político.

Les Vaches noires[11] é um texto escrito por volta de 1976 sob a forma de uma entrevista imaginária e publicado pela primeira vez em 2016. Esse texto nos oferece o exemplo mais bem acabado da crítica das formas organizacionais e políticas do PCF no período em que o partido abandonou todas as referências à ditadura do proletariado. Nesse sentido, ele representa uma tentativa de crítica do stalinismo por Althusser. Devemos também nos referir ao texto de Balibar, “Sur la dictature du Prolétariat”[12], que ecoa as críticas de Althusser sobre o abandono da ditadura do proletariado. O XXII Congresso[13] é um pequeno livro que retoma um discurso feito por Althusser a propósito dessa guinada política do PCF e as questões por ela levantadas. Esse texto contém alguns pontos interessantes sobre a necessidade de deixar as massas e os seus interesses falarem por si.

– “Enfin la crise du Marxisme!” e “Le marxisme comme théorie finie”[14]

Esses dois textos constituem as declarações públicas mais francas de Althusser sobre a crise do marxismo e a crise do movimento comunista. Neles, Althusser exprime a necessidade prática de se voltar para as iniciativas coletivas de massa e as formas virtuais de comunismo inscritas nos interstícios da sociedade capitalista.

– “Marx dans ses limites”[15]

Esse texto, publicado após a sua morte, apresenta a visão mais detalhada do pensamento de Althusser sobre o Estado, a crise do marxismo, a crítica de Gramsci e a crítica da concepção de Poulantzas do Estado como uma condensação de relações de classe. A sua teoria do Estado como uma máquina que transforma as forças sociais em poderes políticos e institucionais permite a Althusser colocar a exigência de se pensar uma política fundada na necessidade de afirmação da classe trabalhadora e de suas organizações à distância do Estado.

Um outro texto, escrito nos anos de 1970 e publicado após a sua morte, aborda diretamente a política: Machiavel et nous[16]. Esse é um texto singular que oferece uma leitura bastante original da obra de Maquiavel e uma exposição da evolução do pensamento de Althusser sobre o materialismo do encontro. Ele nos oferece também uma conceitualização do pensamento político sobre a conjuntura. Nesse sentido, trata-se de um texto exemplar da obra de Althusser.

Quanto ao materialismo do encontro ou ao materialismo aleatório, nós somos agora capazes de reconstituir sua emergência no quadro de uma série de elaborações de Althusser, algumas das quais anteriores a 1984.

Escrito nos anos de 1980, “Le Courant Souterrain du matérialisme de la rencontre”[17] continua sendo uma espécie de declaração programática. Todavia, é importante, após a leitura desse texto, estudar a maneira como essa problemática emergiu no seio do trabalho de Althusser.

Quatro textos publicados recentemente nos informam sobre a emergência do materialismo do encontro em sua obra:

Le cours sur Rousseau[18]. Este é um texto que já requer um certo conhecimento do trabalho de Rousseau, em particular do segundo discurso, mas também dos cursos anteriores que Althusser consagrou a esse filósofo.

Initiation à la philosophie pour les non philosophes[19], que Althusser elabora para repensar a filosofia e o materialismo do encontro,

Être marxiste en philosophie[20]

Machiavel et nous[21]

Todos esses textos nos fornecem uma visão preciosa sobre a evolução de sua concepção particular antes dos anos 1980 e podem nos ajudar a compreender melhor tanto “Le courant souterrain…” quanto a apresentação do materialismo aleatório que Althusser expõe na entrevista de 1985-86 com Fernanda Navarro[22].

Esses textos de 1970 sobre o materialismo do encontro mostram que essa noção não tem um caráter filosófico ou mesmo poético abstrato para Althusser (contrariamente ao que alguns textos dos anos 1980 poderiam nos levar a crer), mas é um elemento incontornável de uma tentativa mais ampla de repensar uma crítica comunista de esquerda ao reformismo.

A acuidade política desse esforço (o “encontro” como forma de repensar o caráter complexo, intempestivo e aberto da política comunista em ruptura total com qualquer concepção teológico-metafísica) é capital se quisermos compreender a importância dessas elaborações teóricas de Althusser.

Após a leitura do corpus principal da obra de Althusser, podemos nos voltar para outros textos.

 – Montesquieu, la politique et l’histoire[23]

A única monografia da obra de Althusser, é uma obra importante porque expõe a sua primeira tentativa de desenvolver uma concepção de história que não seja teleológica. É também uma leitura muito fina da obra de Montesquieu.

L’avenir dure longtemps[24]

Não se deve ler a autobiografia de Althusser sem que antes se tenha lido toda a sua obra. Ela nos fornece importantes indicações sobre sua vida ao mesmo tempo em que também nos induz ao erro, tal como faz qualquer forma autobiográfica, especialmente no caso de uma situação pessoal tão atormentada como a de Althusser após a tragédia dos anos 1980. A segunda edição dessa autobiografia inclui algumas passagens importantes concernentes ao trabalho de Althusser sobre Espinosa e Maquiavel.

As Lettres à Franca[25]  são uma leitura fascinante e nos oferecem um panorama inestimável sobre o confronto de Althusser com as questões políticas e teóricas de seu tempo. Elas evocam igualmente os episódios depressivos que marcaram sua vida. As Lettres à Hélène[26] nos dão indicações importantes sobre o contexto biográfico sem nos dar o tipo de panorama sobre o pensamento de Althusser que nos oferecem as Lettres à Franca.


Notas

[1] La Découverte, 2005. [Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Campinas: Ed. Unicamp, 2015].

[2] PUF, 1967. [Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis et al. Ler O Capital (2 volumes). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editorai, 1979 e 1980].

[3] Maspero, 1969. [Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. Lênin e a filosofia. São Paulo: Mandacaru, 1989].

[4] Maspero, 1973. [Trad. pt.: ALTHUSSER, Louis. Filosofia e Filosofia Espontânea dos Cientistas. Lisboa: Presença, 1979].

[5] Maspero, 1973. [Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. Resposta a John Lewis. In: ALTHUSSER, Louis. Posições 1. Rio de Janeiro: Graal, 1978].

[6] Em Sur la philosophie, Gallimard, 1994. [Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. A transformação da filosofia. Seguido de Marx e Lênin perante Hegel. São Paulo: Mandacaru, 1989].

[7] Em La solitude de Machiavel, PUF, 1998. [Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. Elementos de autocrítica. In: ALTHUSSER, Louis. Posições 1. Rio de Janeiro: Graal, 1978].

[8] Na coleção Positions, Éditions Sociales, 1976. [Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. Sustentação de tese em Amiens. In: ALTHUSSER, Louis. Posições 1. Rio de Janeiro: Graal, 1978].

[9] Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

[10] Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Petrópolis: Vozes, 1999.

[11] PUF, 2016.

[12] Trad. pt.: BALIBAR, Étienne. Sobre a ditadura do proletariado. Lisboa: Moraes Editores, 1977.

[13] Maspero, 1978. [Trad. pt.: ALTHUSSER, Louis. O 22º Congresso. Lisboa: Estampa, 1978].

[14] Em La solitude de Machiavel, PUF, 1998. [Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. O marxismo como teoria “finita”. Revista Outubro, 63. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro-Edic%CC%A7a%CC%83o-2-05.pdf. Acesso em: 10/09/2021].

[15] Em Écrits philosophiques et politiques, t.1, Stock/IMEC.

[16] Em Écrits philosophiques et politiques, t.2, Stock/IMEC.

[17] Em Écrits philosophiques et politiques, t.1, Stock/IMEC.

[18] Le Temps des cerises, 2013.

[19] PUF, 2014. [Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. Iniciação à filosofia para os não filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2019].

[20] PUF, 2015.

[21] Tallandier, 2009.

[22] Sur la philosophie, Gallimard.

[23] PUF, 1959. [Trad. bras.: ALTHUSSR, Louis. Montesquieu a política e a história. Lisboa: Presença; Sao Paulo: Martins Fontes, 1977].

[24] Stock, 2007. [Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. O futuro dura muito tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992].

[25] Stock/Imec, 1997.

[26] Grasset, 2011.

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1 comentário em “Althusser: manual de instruções”

  1. Pensava que Althusser tivesse sido enterrado por andar fora de moda, ao contrário do que ocorria nos anos 1970 nos meios universitários. Não sei se penso mal, mas sempre acreditei que esse “esquecimento” não contribuía em nada para a práxis necessária ao pensamento e ação revolucionária em nosso país. Falta-me leitura para fazer essa avaliação, entretanto. Talvez seja a hora de começar uma série de cursos a respeito de uma galeria de ideias e retratos relevantes, mesmo os controversos, do marxismo.

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