Marxismo e ideologia jurídica burguesa

Por Étienne Balibar, traduzido por José Saramago[1]

“Claro como o dia para todo operário consciente”, diz Lênin. É isto verdade, porque esta tese não representa outra coisa que o desenvolvimento consequente do reconhecimento da luta das classes, e porque esse reconhecimento se efectua na experiência quotidiana dos trabalhadores explorados, em luta contra a exploração. Mas isso não quer dizer que este desenvolvimento consequente não tenha nenhum obstáculo a vencer. Pelo contrário, não cessa de chocar com a influência da ideologia jurídica burguesa, que é consubstancial ao seu funcionamento, e que a burguesia tem um interesse vital em manter. A ideologia jurídica burguesa influencia inevitavelmente os próprios trabalhadores. Estes não estão “vacinados” contra a inculcação por todas as práticas dos aparelhos ideológicos do Estado burguês, desde a escola primária da infância até ao funcionamento das instituições políticas em que participam como cidadãos. Desenvolver a análise do Estado, do ponto de vista proletário da luta de classes, é pois, ao mesmo tempo, criticar a sua representação jurídica burguesa constantemente ressurgente.

Toda a questão da “democracia” e da “ditadura” está profundamente presa na ideologia jurídica, cujo retorno se efectua, no próprio seio do movimento operário, sob a forma de oportunismo: é impressionante ver a que ponto, dum período para outro, os termos em que ele se formula são estáveis.  Não o compreenderemos se não remontarmos à sua condição, a reprodução pelos aparelhos do Estado burguês da ideologia jurídica.

A ideologia jurídica remete para o direito; mas embora ela seja indispensável ao seu funcionamento, não é o próprio direito. O direito é apenas um sistema de regras, isto é, de constrangimentos materiais a que se encontram sujeitos os indivíduos. A ideologia jurídica interpreta e justifica esse constrangimento, apresentando-o como uma necessidade natural inscrita na natureza humana e nas necessidades da sociedade em geral. O direito, na prática, “ignora” as classes, isto é, assegura a perpetuação de relações de classes codificando e fazendo respeitar regras que apenas se dirigem aos indivíduos, “livres” e “iguais”. A ideologia jurídica “prova” que a ordem social não assenta na existência das classes, mas precisamente na dos indivíduos a quem o direito se dirige. Culmina na representação jurídica do Estado.

A ideologia jurídica burguesa esforça-se (com bom resultado) por fazer crer que o Estado, em si mesmo, está acima das classes, e apenas tem que ver com os indivíduos. Que os indivíduos sejam “desiguais”, de facto, em nada a embaraça portanto, porque, sendo eles “iguais” em direito, isso significa simplesmente que um Estado digno desse nome deverá aplicar-se a combater as desigualdades… Desde logo, o poder de Estado não pode ser o domínio exclusivo duma classe, porque esta expressão, efetivamente, é um contra-senso jurídico. À ideia do domínio duma classe opõe-se, mais precisamente, na ideologia jurídica a representação do Estado como a esfera, a organização dos interesses públicos e da força pública, por oposição aos interesses privados dos indivíduos ou dos grupos de indivíduos, à sua força privada. É capital apreender bem este aspecto fundamental da ideologia jurídica burguesa, se não quisermos encontrar-nos, voluntariamente ou não, presos na sua “lógica” implacável.

Disse já que o direito não é idêntico à ideologia jurídica que se lhe cola à pele; eis aqui a verificação imediata disso mesmo: a distinção do “público” e do “privado” é uma relação jurídica bem real, constitutiva de todo o direito, cujos efeitos materiais são incontornáveis por tanto tempo quanto o direito exista. Mas a ideia de que o Estado (e o poder de Estado) deve ser definido por esta distinção, como a esfera ou sector “público”, da administração “pública”, do ministério “público”, etc., representa uma formidável mistificação ideológica. A distinção jurídica do “público” e do “privado” é o meio por que o Estado pode subordinar todos os indivíduos aos interesses da classe que representa, deixando-lhes – na época burguesa – a plena liberdade “privada” de vender e de comprar, a plena liberdade de “empreender”… ou a de vender a sua fora de trabalho no mercado. Esta distinção não é a causa história da existência do Estado. Ou então temos de admitir que, como o Deus omnipotente dos nossos priores e dos nossos filósofos, o Estado é a sua própria causa e o seu próprio fim.

Encontramos este círculo a propósito da maneira como a ideologia jurídica burguesa apresenta a oposição entre “ditadura” e “democracia”: como uma oposição geral e absoluta entre dois tipos de instituições, de organização do Estado, em particular dois tipos de governo. Um Estado democrático não pode, do seu ponto de vista, ser uma ditadura, uma vez que é um “Estado de direito”, em que a fonte do poder é a soberania popular, em que o governo exprime a vontade da maioria do povo, etc. A ideologia jurídica burguesa realiza assim um acto de prestidigitação extraordinário: não pára de explicar, de se convencer e sobretudo de convencer as massas (se a experiência das lutas lhes não ensinasse o contrário) que a fonte do direito é o próprio direito, ou, o que vem a dar o mesmo, que a posição entre a democracia (em geral) e a ditadura (em geral) é uma oposição absoluta. Assim é, diz ela, uma vez que a democracia é a afirmação do direito, da legitimidade jurídica (e a “democracia até ao fim” é a afirmação e o respeito do direito até ao fim), ao passo que a ditadura seria a negação desse mesmo direito. Em suma, donde vem o direito? da democracia. E donde vem a democracia? do direito. À noção do Estado como esfera e serviço “público” vem agora juntar-se, para a fechar sobre si mesma, a noção de “vontade popular” (e de “soberania popular”): a ideia de que “o povo” é um todo (colectividade, nação, etc.) unificado para além das suas divisões, reunindo a “vontade” dos indivíduos e dando-lhe a forma duma “vontade” única no governo legítimo da maioria.

É preciso portanto escolher: ou o sistema das representações da ideologia jurídica burguesa, que exclui a análise do Estado em termos de luta de classes, mas que a exclui para conduzir a luta de classes do ponto de vista da burguesia de que o Estado actual é instrumento; ou do ponto de vista proletário, que denuncia esta mistificação para poder lutar contra o domínio da classe da burguesia. Entre estas duas posições, não há compromisso possível: não se pode “fazer o seu lugar” do ponto de vista da luta de classes no seio da concepção jurídica burguesa do Estado. Como dizia Lênin, a propósito de Kautksy:

Kautsky raciocina da seguinte maneira: “Os exploradores constituíram sempre apenas uma pequena minoria da população.” Isto é uma verdade indiscutível. Como deveremos raciocinar a partir dela? Podemos raciocinar como marxistas, como socialistas; haveremos então de basear-nos na relação entre exploradores e explorados. Podemos raciocinar como liberais, como democratas burgueses; haveremos então de basear-nos na relação entre maioria e minoria. Se raciocinarmos como marxistas, teremos de dizer: os exploradores transformam inevitavelmente o Estado (ora, trata-se da democracia, isto é, de uma das formas do Estado) em instrumento de domínio da sua classe, da classe dos exploradores, sobre os explorados. Por isso, mesmo o Estado democrático, enquanto houver exploradores que dominem sobre uma maioria de explorados, será inevitavelmente uma democracia para os exploradores. O Estado dos explorados deve distinguir-se por completo dele, deve ser a democracia para os explorados e a sujeição aos exploradores; e a sujeição de uma classe significa a desigualdade em detrimento seu, a sua exclusão da “democracia”. Se argumentamos como liberais, teremos de dizer: a maioria decide e a minoria submete-se. Os desobedientes são castigados. E nada mais.” (XXVIII, 259).

Para a teoria marxista do Estado, em que se investe um ponto de vista de classe diametralmente oposto ao da ideologia jurídica burguesa, toda democracia é uma ditadura de classe. A democracia burguesa é uma ditadura de classe, ditadura da minoria dos exploradores, a democracia proletária é também uma ditadura de classe, ditadura da imensa maioria dos trabalhadores e dos explorados. Segurando firmemente a relação imediata do Estado com a luta de classes, temos o único fio condutor da sua análise materialista.

Regressemos então à formulação de Lênin, que citei acima: “Poder absoluto acima da leis.” Significará esta definição que possa existir um poder de Estado sem lei, sem direito organizado – incluindo a ditadura do proletariado, uma vez que a ditadura do proletariado é sempre, ainda, um poder de Estado, como a ditadura da burguesia? De modo algum. Significa, pelo contrário, que todo o Estado impõe o seu poder à sociedade por intermédio de um direito, e que, por essa mesma razão, o direito jamais pode ser o alicerce desse poder. Esse alicerce real só pode ser uma relação de força entre as classes. Só pode ser uma relação de forças históricas, que se alarga ao conjunto da vida social, uma vez que não há nenhuma esfera da vida social (sobretudo não a esfera dos interesses “privados” delimitados pelo direito) que escape à intervenção do Estado; uma vez que a esfera de acção do Estado é por definição universal.

Podemos então afastar uma “objecção” corrente, que evidentemente nada tem de inocente, e que cria a confusão reintroduzindo obliquamente o ponto de vista da ideologia jurídica. Segundo esta objecção, a definição do Estado por Lênin seria uma definição “demasiado estreita”: restringiria o poder de Estado à repressão, à violência brutal da lei. Esta objecção, além de não ter absolutamente nada de novo, ao contrário do que nos afirmam para dar a uma revisão teórica a aparência dum progresso e dum “ultrapassamento” do leninismo, é particularmente absurda dum ponto de vista marxista, e muito simplesmente materialista.

Na definição de Lênin, com efeito, não se trata de repressão, da violência repressiva tal como é exercida pelo aparelho de Estado de que falaremos daqui a pouco, e pelos seus órgãos especializados que são a polícia, o exército, os tribunais, etc. Não se trata de dizer que o Estado age pela violência, mas de dizer que o Estado assenta numa relação de forças entre as classes, e não no interesse público e na vontade geral. Esta relação é inteiramente “violenta” no sentido de que não é efectivamente limitada por nenhuma lei, uma vez que só na base dessa relação de forças sociais, durante a sua evolução, podem ser instituídas leis e uma legislação, uma legalidade, que, longe de pôr em causa essa relação violenta, não fazem mais do que sancioná-la.

Digo que esta objeção corrente é particularmente absurda, porque o que caracteriza historicamente a repressão, por exemplo a repressão policial, é justamente o facto de não estar “acima das leis”. Pelo contrário, na imensa maioria dos casos, está prevista e organizada pela lei (uma lei que, se preciso for, é fabricada para esse feito pela classe dominante com a ajuda do seu aparelho de Estado legislativo e judiciário). Lembremos aqui que o encerramento das usinas postas em “liquidação judicial” ou simplesmente “transferidas” para outro local, o despedimento dos operários, a penhora dos devedores insolventes e o espancamento das manifestações populares “proibidas”, são práticas perfeitamente legais, salvo excepções muito raras, ao passo que a instalação de piquetes de greve tendentes a impedir operários não grevistas ou amarelos de entrarem na usina, a ocupação desta, a oposição organizada aos despejos nas H.L.M.[2], as manifestações políticas perigosas para o poder, constituem, como se diz, “entraves à liberdade do trabalho”, “ataques ao direito de propriedade”, “ameaças contra a ordem pública”, e são perfeitamente ilegais. Basta reflectir um pouco no alcance destes exemplos quotidianos para compreender o que quer dizer a fórmula de Lênin: “a ditadura de classe é um poder acima das leis”. Não o facto de esquecer as leis, e de reduzir o poder de Estado aos seus meios repressivos, mas o reconhecimento da verdadeira relação material entre o poder de Estado, a lei e a repressão.

Notar-se-á ao mesmo tempo o absurdo que é apresentar a burguesa, em particular a burguesia imperialista actual, como uma classe empurrada pela história, pela crise do seu sistema, a “violar a sua própria legalidade”! Pode acontecer, acontece certamente que os trabalhadores, defendendo-se palmo a palmo contra a exploração e utilizando nessa luta todos os meios de que dispõem, utilizem contra tal patrão, contra tal decisão administrativa as “lacunas” da legislação existente, as contradições que a actividade incansável dos juristas teria conseguido introduzir. Nenhum militante sindicalista ou comunista ignora as extraordinárias dificuldades dessa acção, os limites que ela não consegue nunca atravessar, e sobretudo o facto de não poder resultar sem se apoiar numa relação de forças, numa pressão das massas. Mas sobretudo o que essa luta sempre recomeçada ensina aos trabalhadores, é justamente o facto de que a classe dominante, porque detém o poder de Estado, continua senhora do jogo: do ponto de vista da classe dominante, se não a quisermos confundir com a consciência moral dos seus juristas e dos seus ideólogos pequeno-burgueses, a lei não é um absoluto intangível: aplicar e fazer aplicar a lei, pode ser por vezes virá-la, é sempre transformá-la e adaptá-la às necessidades da luta da classe capitalista e da acumulação do capital. E se essa adaptação não puder fazer-se sem pôr em causa a forma constitucional (as instituições públicas parlamentares, judiciárias, administrativas) sob a qual se exerce o poder da classe dominante, então a burguesia não irá fazer a sua primeira “revolução” política: a história do nosso país, de 1830 a 1958, fornece bastantes exemplos disso.

A definição de Lênin não poderia ser “demasiado estreita”, no sentido de reter apenas um único aspecto do poder de Estado (o aspecto repressivo). Tem juntamente por objecto mostrar que todos os aspectos do poder de Estado (repressivos e não repressivos, de facto indissociáveis) são determinados pela relação de domínio de classe e contribuem para reproduzir-lhe as condições políticas. Neste sentido, todas as funções do Estado são políticas de uma parte à outra: incluindo, bem entendido, as funções “econômicas” e “ideológicas”. Mas a definição de Lênin é “estreita” o suficiente para excluir que, numa sociedade de classes, qualquer aspecto do Estado e do poder político, seja qual for, possa situar-se fora do antagonismo de classes.

Na realidade, a distinção entre uma definição “estreita” e uma definição “larga” do Estado é coisa velha na história do movimento operária. Era a ela que invocavam já os teóricos da social-democracia contra as teses marxistas sobre o Estado e a ditadura do proletariado: “O Estado, em Marx e Engels, não é o Estado no sentido largo, o Estado órgão de gestão, o Estado representante dos interesses gerais da sociedade. É o Estado do poder, o Estado órgão de autoridade, o Estado instrumento de domínio duma classe sobre outra”, dizia já o socialista belga Vandervelde, citado por Lênin (XXVIII, 333). A necessidade, afirmada por Marx, de derrubar o poder de Estado da burguesia destruindo o aparelho de Estado burguês, refere-se, evidentemente, nesta perspectiva, ao “Estado no sentido estreito”… Quanto ao “Estado no sentido largo”, órgão de gestão e serviço público, não se trata de destruí-lo, mas de desenvolvê-lo: trata-se de efectuar “a transição do Estado, no sentido estreito, para o Estado no sentido largo”, “a separação do Estado, órgão de autoridade, e do Estado, órgão de gestão, ou, para retomar as expressões santi-simonianas, do governo dos homens para a administração das coisas” (id., XXVIII, 334-335). A referência ao tecnocracismo humanista de Saint-Simon é esclarecedora.

É exactamente a mesma atitude para que são empurrados agora aqueles nossos camaradas que procuram, depois, à pressa, fundamentos “teóricos” para o abandono do conceito da ditadura do proletariado. François Hincker, imediatamente após o XXII Congresso, publica uma série de três artigos e escreve:

Ao longo da história do movimento operário marxista-leninista, correm, entrecruzando-se, duas apreciações [sic] do conceito de Estado […]Uma apreciação “estreita”: o Estado é um aparelho repressivo; é um aparelho que foi produzido pela classe dirigente [sic], desligou-se da base (relações de produção) social e intervém sobre ela do exterior. […] Uma apreciação “larga”: […] a essência do Estado é a organização do funcionamento da sociedade de classes no sentido da reprodução das relações de produção existentes, no sentido da reprodução do domínio da classe dominante, […] tudo indica que, precisamente, “fazer política”, para o pessoal política da classe dominante, é ultrapassar o interesse imediato e concorrencial dos indivíduos burgueses. Este domínio, esta hegemonia, exerce-se por meio da repressão, por meio da ideologia, mas também por meio da organização, até e inclusive porque presta serviços que, tomados separadamente, têm um valor de uso universal. Este último aspecto não foi suficientemente posto em evidência pelos clássicos antigos ou contemporâneos do marxismo[3], […] a classe dominante deve representar o seu interesse universal, […] construir estradas, escolas, hospitais, fazer uma arbitragem pela justiça, em geral a favor da classe dominante [sic], mas também, quer-se queira ou não, assegurando uma certa segurança, uma certa ordem, Nouvelle Critique, Abril de 1976, p. 8.) (Sublinhado por mim E.B)

Por aqui se chega a esta pérola ideológica estatal: “Quebrar o Estado, é desenvolver o Estado democrático com o fim de fazê-lo assumir plenamente a sua função social.” (Id., p. 9).

De facto, se o Estado “no sentido largo” fosse irredutível ao domínio de classe, que só o afectaria posteriormente, o puxaria e deformaria “no sentido” da sua reprodução, e assim entraria cedo ou tarde em contradição com as “necessidades da sociedade”, a luta revolucionária não seria uma luta contra o Estado existente, mas mais fundamentalmente uma luta para esse Estado, para o desenvolvimento das suas funções universais, para o arrancar à “apropriação” abusiva da classe dominante… Não é nada de espantar então que esta definição de Estado encontre muito simplesmente a imagem tradicional que dele dá a ideologia jurídica burguesa. A tese marxista diz: é porque as relações sociais de produção são relações de exploração e de antagonismo que um órgão especial, o Estado, é necessário à sua reprodução; é por isso que a manutenção dos trabalhadores de que o capital precisa, que as condições do desenvolvimento das forças produtivas de que o capital precisa – incluindo a construção das estradas, das escolas e dos hospitais – devem inevitavelmente tomar a forma do Estado. Mas eis que nos voltam a servir a tese burguesa (cujo valor os clássicos do marxismo não teriam percebido “suficientemente bem”): o Estado é outra coisa que a luta das classes, escapa-lhe por uma parte (a parte essencial), limita o campo da luta das classes (submetendo-o às exigências do “todo” social). É por sua vez quando muito limitado (entravado e pervertido) por ela[4]. Portanto, será tanto mais “livre” de pretender as suas funções universais (democráticas) quanto se fizerem saltar esses limites… Mas tudo isso assenta unicamente no sofisma seguinte: desde que, na base das relações de produção actuais, a sociedade não pode passar sem o Estado, assim será sempre, mesmo quando essas relações desparecerem! A ideologia burguesa parte do pressuposto de que o Estado, o seu Estado, é eterno, e a ele chega outra vez, sem surpresa.

É preciso lembrar aqui as palavras de Marx, no Manifesto, que valem a fortiore para o Estado: “Tal como, para o burguês, o desaparecimento da propriedade de classe equivale ao desaparecimento de toda a produção, assim o desaparecimento da cultura de classe equivale ao desaparecimento de toda cultura.” Assim o desparecimento do Estado equivaleria ao desaparecimento de toda a sociedade!

Por outras palavras, é impossível separar realmente o reconhecimento da luta das classes e o reconhecimento da natureza de classe do Estado como tal (daí deriva a necessidade da ditadura do proletariado). Desde que se admita que o Estado em tal ou tal das suas funções possa escapar à determinação de classe, desde que se admita que possa constituir um simples “serviço público” e representar os interesses de toda a sociedade antes de representar os da classe dominante, diferentemente de como interesses históricos da classe dominante, é-se inevitavelmente levado a admitir que a luta de classes entre exploradores e explorados tem limites, pára num certo ponto. É-se levado a admitir que os exploradores e os explorados têm “também” certos interesses históricos em comum (os da “coletividade nacional”, por exemplo), que a sua luta não determina o conjunto das relações sociais, que ela está circunscrita a uma certa esfera da vida social ou se apaga diante de certas exigências superiores. E o cúmulo é que se faz intervir essa limitação (logo, esse abandono) do ponto de vista de classe precisamente a propósito do desenvolvimento actual do Estado, que representa historicamente a extensão, o reforço e a concentração do poder da classe dominante, à medida do desenvolvimento do imperialismo e da acentuação das suas contradições.

Acabo de falar dos interesses de classe da burguesia no seu conjunto. De facto, a burguesia como classe tem apenas um só interesse fundamental em comum. Fora desse interesse, tudo a divide. Esse interesse, é a manutenção e o alargamento da exploração do trabalho assalariado. Compreende-se então o que exprime a tese de Marx e de Lênin sobre o poder do Estado: o poder só pode pertencer a uma classe porque a raiz do poder de Estado é o próprio antagonismo de classe, o carácter inconciliável desse antagonismo. Ou, melhor: é a reprodução de conjunto das condições desse antagonismo. Não há “meio termo” entre o desenvolvimento da exploração para que tende a classe burguesa, porque a sua existência depende disso mesmo, e a luta pela sua abolição, que o proletariado conduz. Não há conciliação possível entre as duas tendências históricas correspondentes. Marx e Lênin não cessam de pô-lo em evidência: o alicerce da ideologia pequeno-burguesa do Estado, inclusive quando ela penetra no socialismo e nas organizações da classe operária, é a ideia de que o Estado representaria no seu nível próprio a conciliação da luta das classes entre exploradores e explorados. E o ponto nodal n.º 1 da concepção proletária do Estado, absolutamente inadmissível para a ideologia burguesa e sobretudo pequeno-burguesa, é o facto de o Estado resultar do carácter inconciliável, antagonista, da luta das classes, e constitui o instrumento da classe dominante nessa luta. A existência do Estado na história está ligada apenas à da luta das classes, inclusive e sobretudo quando se trata de preencher as “funções gerais” da sociedade, quer sejam económicas ou culturais: uma vez que precisamente se trata de subordinar essas funções gerais ao interesse da classe dominante e de fazer delas outros tantos meios do seu domínio. Quanto mais importantes e diversificadas forem essas funções, mais esse carácter de domínio duma classe do Estado se afirma.

[1] Texto transcrito por Reginaldo Gomes.

[2] Habitações de renda média. – N.T.

[3] Notar-se-á com que elegância o autor fabrica aqui, por medida, a concepção “estreita” dos clássicos de que precisa para introduzir triunfalmente o seu propósito de “alargamento”.

[4] Variante oportunista: a ideia da “apropriação dos interesses privados” sobre o Estado, do “desvio” do poder público apenas em proveito de alguns. Daí a palavra de ordem: que o Estado encontre o mais depressa possível a sua liberdade e a sua universalidade natural!

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