A catacrese capitalista (como “mandar sinais corretos” ao deus mercado)

Por João Paulo Rossatti

Como devemos entender o capitalismo então? Devemos percebê-lo como uma pura teoria econômica? Uma (ou a única) forma de organização das relações de produção? Ou, ao contrário, como uma ideologia que, em última instância, organiza a ontologia do ser social? A resposta passa impreterivelmente por essa última pergunta, pois o capitalismo como ontologia é (e também por isso funciona como) um modelo que organiza, em última instância, a própria razão dos sujeitos – o que torna urgente à própria compreensão antropológica dessa forma de subjetividade. Porém, e aqui está o essencial, essa ideologia se apresenta – e é assimilada pelos sujeitos – de formas muito distintas e nem sempre de modo claro aos que estão a vivenciando por dentro. Aceitar, acreditar e se comprometer, como essas formas de compromisso no e com o capitalismo são tão fortes? Um dos pontos importantes para se tentar compreender como tal razão de mundo se estabelece é a observação da constituição do mercado como estrutura fundamental de organização do laço social, aquela que interpela os sujeitos e ontologiza suas formas de vida. O mercado, nestes termos, manda e recebe sinais aos seus viventes/devotos; o mercado sente e faz sentir, pois é sensível a tudo o que acontece – curiosamente muitas das coisas que acontecem no mundo atual têm relação direta com a ação do próprio mercado. O mercado estabelece a partilha do sensível, sendo ele próprio o elemento construtor dessas estratégias sensíveis. A partir disso outra pergunta fundamental deve ser feita: como esses sinais devem ser percebidos pelos agentes sociais? A resposta passa, entre outras coisas, pela adoção disto que chamarei de catacrese capitalista, isto é, metáforas utilizadas para explicar algo para o qual não há linguagem imediata à disposição, assim, aquilo para o que devemos atentar na linguagem sobre/do mercado é o modo como este tem de ser constantemente humanizado (com seus medos, esperanças e dissabores) para ser naturalizado.

Ernesto Laclau, em seu A razão populista, argumenta que na linguagem a nomeação figurativa daquilo que é literalmente inominável é o elemento fundamental da própria retórica.1 O conceito de mercado como constructo teórico do (neo)liberalismo é, de certo modo, semelhante àquilo que Laclau chama, na esteira de Lacan, de significante-vazio. Sua vacuidade permite, por conta da operação que leva à sua nomeação, passar de um significante que deveria significar um lugar onde se trocam coisas – sejam o que forem – para o espaço onde a própria vida em si vem ganhar sentido. Trata-se, desse modo, de um significante que “tem de permanecer vazio para que a operação de significação tenha efetividade”2, em suma, o mercado, como objeto-lugar parcial da sociedade, “torna-se em si mesmo uma totalidade”3 cuja consequência é que tal objeto-lugar parcial “deixa de ser uma parcialidade que evoca uma totalidade e torna-se – para empregar nossa terminologia anterior – o nome dessa totalidade.”4 O elemento catacrético por excelência, por assim dizer, é a passagem do significante “mercado” de um lugar onde se põe compra/vende/troca alguma coisa para o espaço elementar do laço social onde a interpelação subjetiva ocorre, isto é, a passagem da parcialidade (como objeto-lugar) para aquilo que nomeia o próprio todo (como constituinte do e não como constituído pelo laço social – a inversão fetichista, afinal). O mercado, como grande Outro, ao “me chamar”, me constitui enquanto sujeito e este é (ou, ao menos, deve ser) capaz de interpretar os sinais desse Outro – da catacrese passamos logo à catequese capitalista. O mercado se torna, deste modo, aquele que organiza a ética, a estética e até mesmo os pormenores da vida cotidiana. Ele se torna o nome daquilo que até então era o inominável do capitalismo, ele é seu centro ausente e, também por isso, sua ontologia política.

O capitalismo, através da catacrese do mercado como objeto-lugar, universaliza uma subjetividade que, agora (aparentemente) sem mediações, é assumida indistintamente por quase todas as pessoa no mundo – estamos falando, é claro, da globalização mas também da glocalização – isto é, os elementos locais que não são assimilados pelo global, mas nem por isso deixam de ser integrados ao mercado. Slavoj Žižek argumenta que, por conta desse movimento, não faz sentido perguntar se essa universalidade é verdadeira ou apenas fictícia, pois enquanto força de mediação – como elemento estruturador das ficções simbólicas – tal significante-vazio destrói os conteúdos particulares, os cindindo por dentro, se transformando assim na universalidade real.5 Tal operação de nomeação do mercado como elemento constituinte da totalidade e fundamento da ontologia política é, como disse anteriormente, a operação necessária para a instituição do capitalismo como “natureza humana”. Nestes termos, como afirma Žižek, devemos entender que:

O capitalismo é a primeira ordem social e econômica que destotaliza o sentido: não é global ao nível do sentido (não há “visão de mundo capitalista” global nem “civilização capitalista” propriamente dita; a lição fundamental da globalização é precisamente que o capitalismo pode se adaptar a todas as civilizações, da cristã à hindu, ou à budista, do Ocidente ao Oriente), e sua dimensão global só pode ser formulada ao nível da verdade-sem-significado, como “Real” do mecanismo do mercado global.6

A antinomia de tal processo é, no entanto, a necessária deificação do mercado (agora ex-objeto-lugar), isto é, o mercado precisa ser humanizado pela operação de catacrese capitalista para, então, ser transformado em instância supra-humana – agora em sua aparência de übermensch nietzchiano. Explico, como objeto-lugar das puras trocas econômicas o mercado não tem nada de especial, na realidade, como insistem Friedrich Hayek e Ludwig v. Mises, em termos absolutos, o mercado até mesmo nasce com a civilização humana; porém, quando o liberalismo, a partir do séc. XVIII, vê nessa instituição o elemento fundamental da própria sociedade, ocorre uma transformação – daí a catacrese – na noção de universalidade que acompanhava até então o conceito. Daí em diante, tal como o Deus judaico-cristão, o mercado passou a estar presente em todos os lugares (este último, contudo, de forma real e não metafórica): ele , sente, se ressente e até pune aqueles que o desobedecem – suas Leis são como mandamentos, afinal.

Por conta disto podemos falar que o elemento humanizador do mercado opera em duplo nível (que num salto de fé também o põe para além do humano, pois sua “mão invisível” agirá sobre nós, queiramos ou não). Primeiro como objeto-lugar criado pelos humanos e, então, como elemento que será responsável pela humanização o próprio homem.7 Daí, também, porque se pode afirmar que o mercado se torna a “natureza humana”, pois – agora sem nenhuma mediação uma vez que o mercado não tem Igrejas, apesar de possuir alguns templos (…) – este se torna a universalidade real de todos: somos todos irmãos no mercado desde que sigamos suas Leis, por suposto. Aqui podemos inserir uma segunda, e elementar, base da argumentação: a teoria da neotenia conforme apresentada por Dany-Robert Dufour em seu O divino mercado. A neotenia, segundo o filósofo francês, ocorre por conta da prematuridade intrínseca ao humano na “sua primeira natureza”, isto é, o filhote humano nasce inacabado e o que o faz ser humano é a assimilação da cultura (como “segunda natureza”) com a qual ele é “preenchido” ao longo do seu período de formação.8 Um pequeno sujeito, incompleto e desprotegido, preenchido pelas ficções simbólicas advindas do grande Outro: “[…] a ficção nada tem de um supérfluo que o homem poderia ter dispensado ou poderia dispensar; ao contrário, ela é vital. Com efeito, um homem é um corpo não acabado enxertado nas ficções que lhe permitem alucinar aquilo de que precisou para sobreviver.”9 A fantasia, segundo Lacan, não é um véu que nos impede o acesso imediato à realidade (por de trás da cortina não há nada, o acesso à realidade é sempre mediado), mas sim aquilo que nos permite experimentar a própria realidade em-si, isto é, a ilusão é necessária e constituinte; por isso mesmo é tão difícil sair do circuito das fantasias, pois o desenlace dessa ponta Simbólica desfaz, ao menos de acordo com Lacan e Žižek, o nó borromeano que, na topologia do psicanalista francês, faz o laço social e produz os sujeitos. Segundo Dufour, a história pode ser vista como “uma sequência de submissões a figuras eminentes colocadas no centro de grandes configurações históricas”10 e o mercado seria a última dessas figuras (não a última no sentido fukuyamista do Fim, mas a última como a mais recente), dado que é elevado à condição de Outro no qual busco (e exijo) reconhecimento e demando amor: “[…] os homens têm vocação para a sujeição a um grande Sujeito. Esse grande Sujeito vale como mestre num mundo de indivíduos inacabados. O mestre oprime, é verdade, mas o homem quer mestre – ainda que para dele se queixar.”11

O processo de deificação (e humanização) do mercado para os (neo)liberais não é uma invenção da razão humana, ao contrário, é o que resta como decantação das relações entre humanos e não como produção destas mesmas relações, em termos hayekianos, o mercado é uma “ordem espontânea” que ao invés de ser produto da sociedade é o que emerge (trazido pela “mão invisível”?) quando a Grande Sociedade12 desiste de tentar organizar o mundo e o aceita como é. Então nós temos é sorte de ter a nossa disposição uma instância que nos fornece benevolamente as informações necessárias para a ação humana, como argumenta Mises: “Todos os homens são livres; ninguém tem de se submeter a um déspota. O indivíduo, por vontade própria, se integra num sistema de cooperação” e essa liberdade fez o humano aderir “espontaneamente” ao mercado pois este “o orienta e lhe indica a melhor maneira de promover seu próprio bem estar, bem como o das demais pessoas. O mercado comanda tudo; por si só coloca em ordem todo o sistema social, dando-lhe sentido e significado.”13 De maneira explicita, o mercado exerce exatamente o papel de grande Outro, aliás é por isso que Mises pode afirmar que “o mercado é o ponto focal para onde convergem e de onde se irradiam as atividades dos indivíduos.”14 O nível de convergência, portanto, (re)afirma o ponto de orientação do “bem-estar” de cada um e de todos, como reitera Dufour criticamente:

O Mercado corresponde assim a uma tentativa de produzir um novo grande sujeito suscetível de ultrapassar em potência todos os antigos, graças a essa Providência enfim decifrada, aceita e sobretudo posta em prática. […] o Mercado apresenta os próprios atributos da divindade: ele possui a onipotência contanto que o deixem realmente agir, e se apresenta como o próprio lugar da verdade – diz-se até que o Mercado seria a única verdadeira realidade do mundo de ficção dos homens.15

Giorgio Agamben também apontou a convergência deítica-humanizada da genealogia teológica da economia e do governo em seu O reino e a glória. Ao vasculhar a arqueologia do termo oikonomia o filósofo italiano percebeu que o conceito, para além de significar a mera “administração da casa”, assumiu um caráter teológico ao longo do desenvolvimento do cristianismo paulino e medieval, pois a casa do Pai é o mundo e o “gerenciamento” desse mundo cabe à boa governança.16 O processo, segundo o autor, reafirma a emergência de uma “teologia política” e uma “teologia econômica”, da primeira Agamben aponta que derivam a filosofia política e a teoria da soberania moderna; da segunda advém a biopolítica (neo)liberal.17 A revelação do paradigma teológico subjacente ao conceito de oikonomia:

[…] torna possível uma conciliação em que um Deus transcendente, ao mesmo tempo uno e trino, pode – continuando a ser transcendente – encarregar-se do cuidado do mundo e fundar uma práxis imanente de governo cujo mistério supramundano coincide com a história da humanidade.18

A catacrese capitalista, ao humanizar o mercado também o coloca para além do homem (vejam novamente as citações de Hayek e Mises). A transcendência do mercado, que se se encarrega de emitir sinais de agrado e desagravo, fornece componente teológico que sustenta a ficção simbólica que estrutura essa “segunda natureza”, ou seja, a vida sem sentido (apenas instintiva da “primeira natureza”) adquire sua forma acabada apenas ao ser atravessada pela liturgia da oikonomia.19 A aproximação do neoliberalismo com a teologia da prosperidade, portanto, não é mero acaso.20 Assim, apesar do deslocamento político-econômico que a ideia adquire, uma “mão invisível” que recoloca tudo no lugar quando as coisas saem do controle, não deixa de ser um substituto da providência divina:

O liberalismo representa uma tendência que leva ao extremo a supremacia do polo “ordem imanente-governo-ventre”, até quase eliminar o polo “Deus transcendente-reino-cérebro”; mas fazendo assim, apenas joga uma metade da máquina teológica contra a outra. E quando a modernidade abolir o polo divino, a economia que derivar daí nem por isso se emancipará de seu paradigma providencial. […] A modernidade, eliminando Deus do mundo, não só não saiu da teologia, mas, em certo sentido, nada mais fez que levar a cabo o projeto da oikonomia providencial.21

Então, afinal, como compreender os sinais do deus mercado? Bom, primeiro como não há uma transcendência espiritual (não há inferno na casa do capitalismo) a punição ocorre ainda em vida e a responsabilidade por não ter entendido o que o mercado “queria” de você é única e exclusivamente sua; segundo, como demandamos o reconhecimento desse grande Outro, por meio do qual aprendemos a desejar – a história dos desejos desejados de Kojève –, não somos capazes de romper sozinhos o ciclo. Nestes termos, o mercado se apresenta a nós como uma entidade eterna, sem começo nem fim, que guia com sua “mão invisível” as ações humanas e a nós cabe aprender a nos orientarmos da melhor maneira possível através dos sinais “revelados” pelo mercado. Quando Gabriel sopra suas trombetas o sujeito deve saber se preparar para o apocalipse econômico; os que não souberem o que está para vir padecerão no juízo da crise estrutural do capitalismo.

A catacrese capitalista é, portanto, como defendi até aqui, um dos elementos basilares para o efetivo sucesso do neoliberalismo enquanto ideologia. Ao humanizar aquilo que até então era inominável, dando-lhe um nome próprio e imputando o sentido da totalidade, o neoliberalismo substitui o Deus transcendente (elemento da “natureza primeira”) por um deus imanente (“natureza segunda”) e, ao completar essa operação, o que o neoliberalismo faz é produzir um sujeito que só pode ser interpelado por um grande Outro – que na Grande Sociedade hayekiana não é outro que não o mercado.


Notas

1 LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013. p. 122.

2 Idem. p. 166. (grifos do autor)

3 Idem. p. 176.

4 LACLAU, A razão…, 2013, Op. Cit.. p. 177.

5 ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014. p.125.

6 ŽIŽEK, Violência… Op. Cit. p.73. (grifos do autor)

7 O objetivo último é a satisfação dos desejos primários, isto é, de manutenção da “boa vida” e somente o mercado pode proporcionar isto: “Em suas atividades, o empresário tem de investigar para além dos usos e das finalidades conhecidas com o objetivo de proporcionar os recursos para a produção de outros recursos que, por sua vez, servem ainda a outros, e assim por diante – isto é, para que ele atenda a uma multiplicidade de fins últimos. […] O processo de mercado proporciona à maioria das pessoas os recursos materiais e informacionais de que precisam para obter o que desejam.” HAYEK, Friedrich A. von. Os erros fatais do socialismo. Barueri-SP: Faro Editorial: 2017. p. 144.

8 DUFOUR, Dany-Robert. O divino mercado: a revolução cultural liberal. Rio de Janeiro: Cia. Freud, 2008. p. 80-1.

9 Idem, p. 82

10 Idem. p. 83.

11 Idem. p. 84.

12 HAYEK,. Os erros…, 2017. Op. Cit.

13 MISES, Ludwig von. A ação humana. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010. p.315. (grifos meus)

14 Idem. p. 316.

15 DUFOUR, O divino…, 2008, Op. Cit. p. 87-8

16 AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo: homo sacer, II, 2. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 34.

17 Idem. p. 13.

18 AGAMBEN, O reino… Op. Cit. p. 65.

19 Idem. 267-69.

21 AGAMBEN, O reino…, 2011, Op. Cit. p. 308-10.

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