Breves notas sobre uma opção política

Por Felipe Duarte

Em maio de 1949, há mais de três décadas do início da experiência socialista soviética, o astrofísico Albert Einsten (1879-1955), já no final de sua vida, escreveu para a revista norte-americana Monthly Review o artigo “Por que socialismo?”[i], em que, com o brilhantismo que lhe era peculiar, atreveu-se a advogar em favor de uma causa que a mim também é muito cara. Neste pequeno ensaio, pretendo esclarecer os motivos que, em 2022, me forçam a tomar partido: sou comunista, seguidor e estudioso do marxismo.


No Brasil de 2019, cerca de 29,2% da população percebeu um rendimento domiciliar per capita inferior a ½ salário mínimo mensal[ii], mesmo tendo o país figurado entre as dez maiores economias do mundo naquele período. Já em 2021, o número de pessoas que sobreviveram com renda domiciliar per capita de até R$ 497,00 reais saltou para 29,6% da população total[iii]. Notem bem, 62,9 milhões de pessoas da décima maior economia mundial não puderam contar com sequer ½ salário mínimo.

O absurdo, obviamente, não para por ai, já que, ainda que tenhamos sido o quarto maior produtor de grãos do mundo e o maior exportador de carne bovina[iv], em 2020, cerca de 55,2% dos brasileiros se encontravam em situação de insegurança alimentar, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil[v]. Repare mais uma vez, mais da metade da população de um dos maiores produtores de alimentos do mundo não tem direito a comida!

São milhões e milhões de pessoas que estão totalmente excluídas do suposto círculo de progresso sob a égide do capital. Estes são apenas alguns dados, restritos ao campo da sobrevivência econômica, e que ignoram o extermínio promovido pela democracia liberal de forma institucionalizada[vi], mas que revelam as contradições econômicas que permeiam a sociedade brasileira em pleno século XXI. Ora, se há tanta riqueza, tanta produção de alimentos, tanto dinheiro, tanta mercadoria, por que não há o que comer e como satisfazer as necessidades básicas da maioria?

Apreender a miséria, a fome e a riqueza passa, necessariamente, pela apreensão de como a sociedade produz e reproduz a vida, já que, antes de qualquer coisa, é elementar que tenhamos condições materiais de existir, sendo certo que todas as demais relações sociais serão influenciadas por este contexto. Afastamos, assim, qualquer perspectiva que se centre na individualidade do ser como causa exclusiva para seu sucesso ou fracasso.

Na contemporaneidade, a produção e reprodução da vida se dá sob o modo de produção capitalista, em que as necessidades, por mais básicas que sejam, em tese, são satisfeitas pela troca de mercadorias. A título de exemplo: se preciso comer, vendo minha força de trabalho no mercado, e, com o dinheiro recebido, compro alimentos para tanto. E isso se aplica a praticamente tudo: saúde, entretenimento, transporte, moradia, etc.

Logo de início, a satisfação das necessidades pela mediação da forma mercadoria impõe um problema: o obscurecimento de todos os papeis exercidos no processo produtivo. Isto é, quando tomo café pela manhã não consigo identificar de que forma aquele café chegou até a minha mesa, quero dizer, ignoro quem o plantou, colheu, ensacou, distribuiu e, o pior, como foram repartidos os ganhos na cadeia de produção desta mercadoria. A lógica da troca de mercadorias esconde se quem plantou e produziu determinado alimento, consegue ter meios de satisfazer as suas próprias necessidades, como a alimentação.

Para além disso, a forma mercadoria e a lógica da produção capitalista mistifica e esconde também a contradição fundamental entre capital e trabalho. Para que a valorização do valor aconteça, para que o lucro chegue ao bolso e para que todas as mercadorias sejam produzidas, não se pode prescindir do trabalho humano, do trabalho vivo; e, no entanto, para que esta mesma lógica se reproduza, o capital precisa superar os entraves impostos pelo próprio trabalho, tais como: o limite físico da jornada de trabalho, a luta por melhores condições, a luta por melhores salários, etc. O trabalho humano, portanto, constitui, ao mesmo tempo e de modo diverso, o elemento capaz de colocar em movimento o processo produtivo, bem como o entrave a ser superado.

Os problemas não param por aí. Sendo o lucro o fio condutor e o objetivo máximo do processo produtivo, não é raro que a satisfação das necessidades humanas seja posta de lado para manutenção da rentabilidade econômica. É preciso denunciar que esta contradição se irradia para todos os campos do tecido social. Exerce influência, por exemplo, tanto na incapacidade de se pôr fim aos nossos problemas ambientais, como também na incapacidade de se atender demandas básicas para salvar vidas, como vimos de forma exaustiva durante a pandemia de covid-19. No final do dia, para qualquer empresa inserida na lógica do modo de produção capitalista, o saldo positivo é o resultado mais elementar.

Por estes motivos, apesar de já se ter atingido um patamar tecnológico suficiente para satisfazer nossas demandas mínimas de saúde, alimentação, moradia, lazer e meio ambiente, a sociedade burguesa é incapaz de supri-las.

 Mas, afinal, por que socialismo? Não poderíamos humanizar o modo de produção capitalista com reformas democráticas, tal qual a social democracia europeia ou o próprio desenho constitucional de 1988? A resposta a esta pergunta só pode ser um sonoro e retumbante não. Um não pautado em experiências históricas concretas. Diante da primeira crise econômica, o alento conquistado pela classe trabalhadora dentro dos marcos da institucionalidade e da conciliação de classe são lançadas ao chão tal qual um castelo de cartas diante de um sopro.

A título de exemplo, a Constituição Cidadã assegurou uma série de direitos trabalhistas, econômicos e sociais, bem como concedeu ao Estado papel ímpar na promoção desses direitos, direta ou indiretamente. Desde sua promulgação, entretanto, assistimos sistemáticos ataques ao referido pacto civilizatório nas reformas administrativas e privatizações da década de 90, na reforma da previdência do governo Lula, nas privatizações do governo Dilma, na reforma trabalhista de Michel Temer e, recentemente, como golpe de misericórdia, no teto de gastos que sepultou o pretenso estado de bem-estar social brasileiro.

Diante deste complexo de complexos que é a sociedade burguesa assentada sob o modo de produção capitalista, o socialismo revolucionário se apresenta como única alternativa disposta a enfrentar e superar as preponderantes contradições de nosso tempo. O socialismo que busca, além das melhorias pontuais na condição de vida dos trabalhadores, a superação da sociabilidade pautada na forma valor e na expropriação do trabalho alheio. O socialismo que não visa apenas a eliminação da forma jurídica da propriedade privada, mas sim relações sociais para além da lógica do capital.

Dessa forma, sempre que sinto o estômago revolver diante da situação de penúria em que se encontram as crianças indígenas em minha cidade ou quando o desconforto toma conta de mim ao ter acesso a uma deliciosa refeição enquanto uma família não consegue meio salário mínimo para passar o mês, me recordo que o socialismo e a teoria marxista são as únicas vias que atacam frontalmente as principais contradições que dão suporte à nossa sociabilidade.

Para além disso, claro se torna para mim que, além da responsabilidade individual de cada um de nós perante o estado das coisas, a superação dessas mazelas passa, na linha do preconizam e preconizaram os grandes nomes da nossa tradição, por uma construção coletiva que vise subverter o status quo e o modo de produção e reprodução da vida. É nesta toada que reafirmo: sou comunista, seguidor e estudioso do marxismo, interessando a mim e a meus pares não apenas entender o mundo e a sociedade, mas, acima de tudo, transformá-los.


NOTAS:

[i] EINSTEIN, Albert. Por que socialismo. Monthly Review. vol 1. n. 01. Maio, 1949. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/einstein/1949/05/socialismo.htm

[ii] IBGE. A síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira de 2020. p. 64. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101760>.pdf. Acesso em 10 dez. 2021.

[iii] https://cps.fgv.br/MapaNovaPobreza

[iv] GUARALDO, Maria Clara. Brasil é o quarto maior produtor de grãos e o maior exportador de carne bovina do mundo, diz estudo. Embrapa. 01 jun. 2021. Disponível em:<https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/62619259/brasil-e-o-quarto-maior-produtor-de-graos-e-o-maior-exportador-de-carne-bovina-do-mundo-diz-estudo>. Acesso em: 11 dez. 2021.   

[v] REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR (REDE PENSSAN). VIGISAN: Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Rede Penssan, 2021. p. 09. Disponível em: <http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2021.

[vi] https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2022/05/04/numero-de-pessoas-mortas-pela-policia-cai-e-atinge-menor-patamar-em-quatro-anos-assassinatos-de-policiais-tambem-tem-queda.ghtml

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