Fascismo, técnica e capitalismo

Por Vinicius Aleixo Gerbasi

Este artigo expõe a interrelação entre capitalismo e fascismo no pensamento de Walter. Critica a evolução tecnológica inserida no cotidiano dos indivíduos e a reprodução da alienação nas relações sociais. Caracteriza o fascismo como um fenômeno de massa e indissociável do estranhamento causado nos indivíduos em meio às engrenagens da produção capitalista.


O pensamento do filósofo Walter Benjamin nos abre perspectivas para a análise do fascismo. A relação estabelecida pelo autor, que buscamos dar destaque, é entre técnica e fascismo. É o que brevemente pretende-se expor neste texto.

As inovações tecnológicas, paradoxalmente, aprofundam as contradições; criam enorme volume de riqueza e menor divisão dela; libera trabalho físico e penoso, ao mesmo tempo que explora ainda mais seu tempo de lazer e sua subjetividade; cria monopólios e conglomerados empresariais e financeiros os quais controlam os circuitos da riqueza mundial. Tudo isto, porém as custas de elevação da alienação e de espoliação da classe trabalhadora.

Duplo movimento e insatisfação popular

Polanyi vê como paradigmático do capitalismo os saltos internacionalizantes, os ciclos econômicos e tecnológicos gerados e, ao mesmo tempo, o descontentamento de massas com o aumento expressivo das desigualdades, que se acentuam no final de cada ciclo, gerando reações nacionalistas. Ele chama isso de duplo movimento das sociedades de mercado. A direção ideológica de tal reação não é possível de prever e nem sempre é progressista. Assim é que no século XX, as desigualdades sociais se multiplicaram à sombra da internacionalização do capitalismo. A polarização de classes começa no final dos anos 20 e se estende até a Segunda Guerra Mundial; tal polarização culmina em revoltas comunistas na Polônia, Hungria, Alemanha e evidentemente na revolução Rússia

Essa mesma polarização levou às revoltas e movimentos de tipo fascista e nazista, alcançando toda a Europa, incluindo Portugal e Espanha, onde, nesta última, os fascistas ocuparam o poder durante 40 anos. Em todos esses casos os fascistas contaram com o apoio da burguesia e da insatisfação das massas, os excluídos sociais, revoltados com o fracasso social da globalização capitalista e do imperialismo colonialista. Todos esses casos levaram a formação de governos autoritários e violentos, com ódio às minorias e a aos que pensam diferente, chegando como no caso alemão, ao holocausto, mas também o genocídio de comunistas, ciganos e estrangeiros. A derrocada da social democracia, que dobrou os joelhos às políticas neoliberais fez esgarçar o tecido social e aprofundar as desigualdades, também, nos últimos anos, nos países europeus com foco naqueles que, conseguiram reproduzir durante anos um substancial Estado de bem-estar-social. Na atual quadra deste século as reações nacionalistas tomam diversas formas, todas elas de extrema direita embebidas em fundamentalismos e ao nacionalismo religioso sejam eles islâmicos, cristãos ou ortodoxos. Assume feições a depender de cada grupo social. Se espalham em todo mundo, Estados Unidos, Rússia, Hungria, Israel, Itália, Inglaterra e Oriente Médio.  até mesmo no avanço da extrema direita na Suécia.

Há, no cerne de movimentos de massa de base fundamentalista-religiosa e ultraliberal elementos reconhecidamente semelhantes aos movimentos nazifascistas do século XXI. Mas não são a mesma coisa; contém, em si, elementos centrais daquele fenômeno de massas, portanto a eles se associando. Qualquer fenômeno histórico é exclusivo, pois deriva de uma configuração historicamente socialmente determinada.

Autoritarismo e violência são importantes no discurso nazifascista. Mas, devemos nos perguntar por que a alienação também é. A forma que se traveste é a farda e símbolos fortes, como os movimentos nazifascistas-nacionalistas do começo do século passado.  O fascismo é um movimento de massas, que arrasta as diferenças e os indiferentes a ele, e forma um amalgama entre Estado, líder e sociedade, formando um corpo único, e que tem, senão programa e ação definidos, pois é mais ou menos flexível, em termos de alianças sociais e políticas, pontos em comum que aparecem em suas manifestações históricas: a violência e a incorporação do indivíduo à multidão. O neoliberalismo, na formação de uma subjetividade neoliberal (competitividade, individualismo) e do princípio de mercados autorregulados se alia ao fascismo, porque vê nele, embora como última opção, um mantenedor do sistema capitalista, mesmo que em sua acepção mais visivelmente nefasta e autoritária. Ou seja, o neoliberalismo que após a fase de aparente riqueza induzida pela desregulamentação dos mercados e de crédito aos indivíduos, como foi o caso dos Estados Unidos até a crise do setor imobiliário de 2008, se vê, agora, diante do endividamento dos países, da inflação, de baixa produtividade e de explosão das desigualdades sociais.

Guerra, Fascismo e Técnica

O caráter violento e a insatisfação das massas correspondem à algumas transformações da sociedade moderna, tais como o surgimento e o aprofundamento da proletarização. Não apenas no Brasil e nos países subdesenvolvidos no século XXI, mas especialmente neles, pois a massa salarial cai e precarizara-se as oportunidades de trabalho e de renda. Walter Benjamin (2011) entreve o que há por trás da relação entre massificação e proletarização e sua conexão íntima com o fascismo. O autor esclarece que as massas proletárias “recém-surgidas” no seio do capitalismo amplamente desenvolvido no começo do século XX são organizadas pelo fascismo, este último não busca alterar as “relações de produção e propriedade que tais massas tendem abolir” (BENJAMIN, 2011). Ao observar os modernos recursos audiovisuais àquela altura, o autor diz que a reprodução em massa, por exemplo, do cinema, corresponde diretamente, à “reprodução das massas”. A trágica constatação do filósofo é a de que “os movimentos de massa e em primeira instância a guerra constituem uma forma de comportamento humano especialmente “adaptada ao aparelho”. O audiovisual capta os movimentos de massa, numa perspectiva muito mais ampliada do que o olho humano.

O que significa a técnica para a sociedade contemporânea, caracterizada naquilo que Marx chamou de estranhamento dos indivíduos frente as relações sociais de produção capitalistas e que já no começo do século XX se apresentava em seu estágio evoluído? E mais, o que é na visão dele a estetização da política, para a qual a guerra atribui significado aos movimentos de massa, preservando as relações de dominação? Tal estetização vai se perpetuar na produção industrial do cinema e da arte; e, atualmente, na comunicação por redes sociais, acrítica, tautológica, em nosso cotidiano mediado por algoritmos e por tecnologia de inteligência artificial, as quais organizam o complexo sistema de produção e de consumo – através das plataformas digitais e de cadeias globais de produção. O que entendemos hoje por tecnologia é um conjunto de algoritmos e modelos matemáticos que instrumentalizam a informação à serviço do capital (WARK, 2022) e na qual a classe dominante, na posse de grandes conglomerados informacionais, controla a informação e a utilidade de previsão, registro, mediação e armazenamento.

O século XX é o contexto histórico no qual vive e escreve Benjamin. Ele vê a técnica e sua alienação como aspecto central, ressalta que nas sociedades tradicionais era a religião e arte que se caracterizavam como dimensões importantes naquelas formações sociais e, portanto, na reprodução das relações socias. Na modernidade contudo esta tradicional relação foi rompida em decorrência das técnicas de reprodução em massa da arte. A arte se descola pela primeira vez na história de sua função religiosa. A arte se mistura e se reproduz, agora, através das relações sociais, tecendo múltiplos significados, para o bem ou para o mal. Disso, se abrem dois caminhos: por um lado, a explosão das contradições levaria à emancipação social, por outro lado, a conservação da sociedade de classes e das relações de produção, definhadas e incapazes de contornar suas próprias crises. Para contemplar a segunda alternativa o sistema capitalista usa o expediente além da violência, da arte cinematográfica, no século XX, como ferramenta de propaganda política. A técnica e sua evolução, segundo ele, apenas adiam temporariamente as crises que surgem das relações de produção e técnicas anteriores, ampliando as forças de reprodução do capital (na indústria da arte) e, ao mesmo tempo, estimulando interesses nacionais e ampliando a produção cinematográfica em escala internacional.

A análise política e sociológica da técnica ainda segundo Benjamin, nos esclarece que a humanidade alcançou desenvolvimento técnico extraordinário, mas pagou muito caro, e esse preço foi sua autoalienação: não transformou as relações de produção, não as mazelas sociais e a exploração de classe, ou seja, não superou as relações de dominação do homem pelo homem.

Interessante notar que na análise de Benjamin, essa autoalienação – ao contrário da arte romana ou da arte grega, as quais logram, através da literatura, da poesia, da música e da arquitetura, o desenvolvimento espiritual e intelectual da sociedade, – na falta de supressão das contradições, da miséria e da exploração, cria as condições para o renascimento do movimento fascista. Nessa análise, a técnica serve ao capital, ela não rompe com a exploração, a alienação e o imperialismo. A guerra é determinada pela insuficiência dos meios de produção em gerar riqueza coletiva, pelo desemprego e pela necessidade de ampliação de mercados consumidores e recursos naturais (apesar de causas políticas a guerra entre Rússia e Ucrânia não pode ser entendida sem a questão territorial que envolve o poder político e econômico).

Para Benjamin a autoalienação dos indivíduos leva a sua autodestruição: as forças criativas e críticas se veem bloqueadas. A sociedade se torna palco das tragédias, a sociedade tenta em vão se libertar. A catarse é um modo de lidar com o sofrimento e as dores. A humanidade se transforma em espetáculo para si mesma. A sua autoalienação permite viver sua destruição como “prazer estético” (BENJAMIN, 2011, p. 196). Isso é o que o autor entende por estetização da política, sua prática é o “próprio fascismo”. Não é nenhum pouco curioso o por que a extrema-direita ascende no mundo todo. Em tempos de crise, e de profunda autoalienação, a extrema-direita surge como forma de estetizar, através da política e seu discurso mentiroso de transformação econômica e social: tentam conter as contradições e os efeitos das crises econômicas e sociais a partir da reprodução dessas mesmas relações sociais. Nessa perspectiva é que se dá o avanço e conquistas sobre as massas. Paradoxalmente, oferecendo a elas uma política ultraliberal e exploração ainda maiores.

Técnica e política, na primeira quadra deste século se colocam como negação da emancipação social e conservação da totalidade do capital, que contém em si o estranhamento e a alienação, no sentido atribuído por Walter Benjamin e também por Marx. O ponto fundamental nessa perspectiva teórico-analítica é a instrumentalização técnica. A técnica que oprime e nega ao indivíduo que se adquiria consciência e significado à sua vida. Os discursos fascistizantes cumprem o papel de preencher as lacunas e homogeneizar significados sobre a vida social. Nas antigas linhas de produção e nas modernas industrias robotizas e inteligentes; no seu cotidiano, imerso por tecnologias estranhas que o controlam. A produção tecnológica que não é neutra, pois é reflexo das de determinações sociais históricas que a moldam. Mais uma vez vale ressaltar, a partir do que foi posto por Benjamin, que a evolução técnica retirou da arte seu caráter divinizado e místico. O complexo industrial-informacional-digital é definido desde industrias 4.0, técnicas de big data e serviços de computação em nuvem e inteligência artificial, catalisada por plataformas digitais. Um exemplo notório para o que se discute neste texto é o campo de ação e de influência de conteúdos e mensagens produzidas e circuladas em plataformas digitais (Youtube, por exemplo) de conteúdo audiovisual por empresas oligopolizadas que controlam os algoritmos. Elas têm negado aos indivíduos o protagonismo tecnológico em definir a sociabilidade e os padrões que definem padrões algorítmicos dentro delas, dito de outro modo, em metamorfosear tal experiência e sociabilidade estranhada por uma outra que figure de modo diferente das relações sociais capitalistas, baseadas na criação e na apropriação do valor.

O filósofo expressa sua preocupação e êxtase com a arte massificada por entender que a arte, mais especificamente, o cinema é um meio de expressão coletiva e política, podendo ser utilizado para fins diversos: revolucionário ou apenas entretenimento. Uma utilização mais trágica foi sua apropriação pela extrema-direita em especial pelo nazismo alemão; uso este que tinha como objetivo reproduzir a ideologia de superioridade racial, o antissemitismo e o ódio às diferenças culturais e políticas.

Por que tornar relevante a interrelação entre técnica e arte? A resposta é que o que importa para Benjamin é também o nível de reprodução da arte, da comunicação, e não apenas a arte em si, o que, no capitalismo contemporâneo, significa e expressa a massificação das relações de produção através da tecnologia digital do consumo, do trabalho (plataformizado e precarizado) e, portanto, permitindo ao capital se reproduzir com força total; na produção de mercadorias e do valor e na criação da subjetividade neoliberal. Dito de outro modo, mover-se para além das engrenagens da produção e reprodução geográfica e espacial do capital. Em todo caso, o que se disse nos parece ser o ponto de exposição de análise mais relevante para Benjamin: o de que o desenvolvimento das forças produtivas se torna “bloqueado” pelas “relações de propriedade” e, dessa forma, da apropriação de seu resultado pelo coletivo.  Trabalho, movimentos de máquinas, saberes, experiências se tornam todas elas algo “antinatural” aos seres humanos (BENJAMIN, 2011). Tal relação pressupõe então a emergência do fascismo, que, nessa perspectiva, é causado pelo estranhamento das relações sociais dentro do capitalismo e ao mesmo tempo exige a não transformação da sociedade capitalista rumo à uma outra onde não haja exploração do trabalho e a transformação do mesmo em mera mercadoria. Essa sociedade, lembremos mais uma vez, pode vir a ser alcançada levando em consideração a imensa produção de riqueza gerada no século XXI, dada a produtividade econômica, a ciência e tecnologia, mas apropriada por poucos.

Antes de terminar o texto uma anotação fundamental. A natureza sociológica e filosófica destas notas – pela perspectiva teórica que adota – se limita a demonstrar brevemente a relação entre técnica, capitalismo e fascismo vislumbrada por Benjamin. Posto isto, faz-se necessário apenas apontar a relação, no Brasil, entre capitalismo e as forças políticas e econômicas, que comandam as instituições e as decisões do Estado, e às quais estão sempre em constante disputa: o papel da mídia, que errou grotescamente ao tratar como iguais um candidato da social democracia e um representante da extrema direita nas últimas eleições; a importância que passaram a ter instituições como TSE e STF contra práticas antidemocráticas e criminosas; a derrota eleitoral da extrema-direita que não disporá mais a máquina do governo na construção de um projeto de poder autoritário; e por fim, a vitória de Lula que pode descapitalizar a violência bolsonarista, ao menos parcela dos mais de seus 50 milhões de eleitores não necessariamente bolsonaristas, mas sim de antipetistas que votaram em Bolsonaro.


Refêrencias

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: brasiliense, 2011 (Obras escolhidas, v.1).

WARK, McKenzie. O capital está morto. São Paulo: sob influência, pré-venda, 2022.

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

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