O mito da “substituição de importações”

Por Agustín Cueva, via LavraPalavra, traduzido por Leonardo Godim

Excerto de “O desenvolvimento do capitalismo na América Latina“, disponível em nosso site. Do capítulo 9: “O processo de industrialização e o problema da crise”.

É verdade que a história avança pelo “lado ruim”, mas isso não quer dizer que o faça de modo mecânico, nem através de um sistema de causalidades tão simples como o que às vezes se assinala ao falar de uma “industrialização induzida pela substituição de importações” (como se tal substituição “explicasse” a industrialização e não o inverso!). Parece infundada, em todo caso, a tese de que as crises dos países “centrais” produzem automaticamente o auge das economias “periféricas” ou que impulsionam, só com seus efeitos, o desenvolvimento industrial destas.

Em nosso opinião, a tendência geral do capitalismo é, ao contrário, a de transferir o custo das crises das áreas metropolitanas às áreas dependentes; e é natural que assim seja, posto que estas constituem, por definição, o ponto mais vulnerável do sistema. O que não quer dizer que sejam entidades passivas, incapazes de gerar forças que eventualmente contrariem ou pelo menos atenuem dita tendência, através de uma luta de classes que produza efeitos pertinentes.

Além disso, e para não incorrer em generalizações abusivas, convém fazer a devida distinção entre as crises econômicas enquanto tais, como a de 1929, por exemplo, e as crises de ordem político-militar que não necessariamente implicam uma recessão econômica em todos os países envolvidos nelas. Sabemos que um acontecimento como a Segunda Guerra Mundial provocou de fato o auge da economia estadunidense, cuja orientação forçosamente bélica produziu desde o início efeitos muito particulares na sua relação com as economias da América Latina.

Seja como for, não se pode esquecer que, dada a forma de inserção de nossas sociedades no sistema imperialista e o mecanismo básico de acumulação de capital que deriva deste fato, o processo de industrialização latino-americano nasce e se desenvolve estruturalmente vinculado a dito mecanismo, que converte o setor primário exportador em polo “dinâmico” de toda a economia. O desenvolvimento da indústria local está subordinado, portanto, às possibilidades de acumulação de capital-dinheiro através das exportações, ainda que o grau de conversão desse tipo de capital em capital produtivo industrial depende, em última instância, das condições estruturais internas que foram analisadas no capítulo 6 deste trabalho.

Uma recessão nos países “centrais” determina, de todas as maneiras, a recessão imediata do setor produtivo local mais “dinâmico”, o que por sua vez se traduz em uma recessão da economia dependente em geral. A partir daí se abre um leque de respostas possíveis dessa economia contraída, que em todo caso esbarra em uma fronteira que até agora nenhum de nossos países foi capaz de ultrapassar plenamente: a inexistência, primeiro, e a penúria, depois, do setor produtor de bens de produção. De forma que, em épocas de crise, quando não é possível importar este tipo de bem, mesmo a política mais industrializante que historicamente se conheça não pode ir mais além do emprego relativamente eficiente da capacidade já instalada de produção e de certos avanços em campos relacionados com o limitado desenvolvimento das forças produtivas locais. E isso é o que demonstra, efetivamente, o processo de industrialização latino-americano.

Lembremos, como uma informação geral que não pode ser deixada de lado, que três quartos de nossos países só iniciou realmente esse processo depois da Segunda Guerra Mundial. De partida isso quer dizer que as três grandes crises que geralmente são indicadas como “motor” do desenvolvimento industrial local, ou seja, as duas guerras mundiais e a depressão de 29, estiveram longe de desempenhar tal papel ao menos nestes casos. Nos demais a questão merece uma análise mais detalhada, para a qual apontaremos alguns elementos de acordo com os dados disponíveis.

Entre 1900 e 1904 o produto industrial da Argentina aumentou 28%; entre 1905 e 1909, 43%, e no quinquênio seguinte, 1910-1914, 20%. Por outro lado entre 1915 e 1919 só cresceu 13%, voltando a se recuperar em ritmo acelerado na fase pós-bélica que vai de 1920 a 1929, intervalo em que dito produto praticamente duplicou: 49% de crescimento em 1920-24, 32% em 1925-29.1 Como dado complementar vale destacar que no período 1910-1914 os investimentos representaram 42% do produto nacional bruto, porcentagem que baixou a 13% em 1915-1919. Ocorreu uma queda violenta nos investimentos estrangeiros nesse intervalo, que depois de representar 20,8% do produto nacional bruto da Argentina em 1910-1914 caiu a 3,4% em 1915-1919; mas a queda dos investimentos nacionais não foi menos brusca, já que diminuiu de 21,4% no primeiro quinquênio mencionado para 9,6% no segundo.2 Não se vê, então, de que maneira a Primeira Guerra Mundial poderia ser tomada como o “motor” do desenvolvimento argentino, nem sequer no que tange à substituição de importações. Como já vimos, este processo está muito avançado em 1929, mas graças ao tremendo impulso dos anos vinte.

No caso brasileiro as coisas também não parecem ser tão simples. É verdade que a produção de tecidos de algodão, por exemplo, passa de cerca de 400 milhões de metros em 1914 para cerca de 500 milhões em 1918; mas junto a isso ocorrem quedas muito significativas de outros itens, que são os indicadores mais eloquentes da formação de capital na indústria: o consumo de cimento baixa de 465 mil toneladas em 1913 para 51 mil em 1918; o de laminados de aço de 251 mil toneladas para 44 mil em igual intervalo, ao mesmo tempo em que a importação de bens de capital para a indústria diminui de um índice de 205 em 1912 para um de 32 em 1917 e de 37 em 1918.3 Já se viu, por outro lado, que a mudança fundamental na estrutura da indústria brasileira entre 1907 e 1920, de acordo com os dados manejados por Caio Prado, esteve determinada pelo crescimento notável da indústria de processamento de carnes para exportação.4 De todo modo, nada parece indicar que esse processo de industrialização, que recebeu tanto impulso durante o regime progressista de Floriano Peixoto, tivesse experimentado uma mudança significativa como efeito da Primeira Guerra Mundial.

Não dispomos de informações suficientes para analisar a situação do Chile nesta fase e, quanto ao México, basta recordar o evidente: as bases sociais de seu desenvolvimento industrial posterior não se forjaram nos campos de batalha europeus, mas em seus próprios, mediante a luta popular.

Gostaríamos de formular uma última observação com relação ao período anterior a 1929, de que o Uruguai, apesar de ser a menor e menos povoada nação da América do Sul (depois do Paraguai) registrou um dos processos de desenvolvimento industrial mais notável da região. Segundo a CEPAL:

Quanto ao Uruguai, ainda que não se disponha de informações suficientes, algumas indicações indiretas fazem supor que a importância relativa da indústria chegou a ser no período pré-crise uma das mais altas da América Latina, depois da Argentina. A indústria uruguaia de frigoríficos data desde os primeiros anos do século, assim como o desenvolvimento em uma escala apreciável de curtumes, tecidos de lã e outras atividades manufatureiras. Além do mais, essas primeiras etapas de desenvolvimento industrial do Uruguai se viram estimuladas, em maior medida que em outros países da região, por ações governamentais de promoção direta ou indireta.5

Esse desenvolvimento é possível, em primeiro lugar, porque a matriz econômica do Uruguai, ao carecer de elementos escravistas ou feudais, facilita a criação de um mercado interno bastante amplo. Efetivamente, o tamanho deste não depende da magnitude demográfica de cada nação (mercado somente potencial), mas da configuração estrutural da respectiva formação social; por isso o Uruguai pôde dispor em tal período de um mercado interno muito mais vasto que o da Bolívia, Peru e Equador somados e desenvolver um parque industrial maior que o destes três países. Mas isso não é tudo. É preciso lembrar, como sugere o próprio texto da CEPAL, que se trata do Uruguai politicamente progressista, que durante a fase “battlista” efetua uma redistribuição de renda que contribui para a expansão de seu mercado, dita as leis de proteção da indústria e leva a cabo uma série de nacionalizações, medidas que contrabalanceiam os efeitos de uma estrutura agrária latifundiária que infelizmente não é transformada.

Passemos a analisar agora os efeitos da crise de 1929 sobre as economias latino-americanas, efeitos que sem dúvida foram desastrosos para o conjunto da região. Para a maior parte de nossos países a crise significou, pura e simplesmente, uma estagnação econômica de 10 a 15 anos, isto é, um marasmo prolongado que só foi superado ao fim da Segunda Guerra Mundial. No caso de Cuba a crise se tornou permanente, se prologando até o triunfo da revolução socialista, em 1959. Reproduzamos, pelo interesse que desperta, a síntese que Gerald Pierre Charles faz da situação:

Depois da idade de ouro que representaram os três primeiros decênios do século XX, se inicia um período em que o capitalismo dependente perde seu dinamismo e começa a manifestar uma clara decadência. De tal forma que parece que a formação social cubana havia chegado a desenvolver até seu último grau possível todas as relações de produção inerentes a sua condição subordinada, e estava dando lugar, em seu seio, a novas relações de produção, que reclamavam para sua germinação a ação consciente dos homens […]. Desde 1929-30, como efeito da crise mundial, a atividade açucareira sofreu uma enorme baixa. A safra de 1932-33, por exemplo, alcançou 50% da de 1922; o número de engenhos se reduziu de 176 em 1929, a 135 em 1933, e a duração da safra de 120 a 66 dias. As exportações chegaram a representar 18% do valor total das de 1919-1923, passando as vendas de açúcar de 200 milhões em 1929 a 129 em 1930 e a 42 milhões em 1932. Tudo isso significou a catástrofe para a economia cubana, com a quebra de numerosos bancos, assim como a ruína do comércio interior e de muitos pequenos industriais, agricultores etc. Desde o início foram as massas trabalhadores as mais afetadas. Em 1933, pelo menos 500 mil operários se encontravam sem trabalho, por volta de 250.000 chefes de família, isto é, aproximadamente um milhão de pessoas estavam na miséria, de uma população de 3,9 milhões. Os salários dos operários caíram a níveis, em geral, inferiores aos de 1909-1910, representando entre 50% e 70% dos vigentes em 1923.6

Nesse caso, como em nenhum outro, se pode afirmar que a crise do capitalismo em Cuba se tornou motor da história, não precisamente da maneira como alguns imaginam, mas por ter agudizado as contradições sociais e permitindo um salto qualitativo na luta das massas, algo que efetivamente ocorreu com o proletariado e com os setores estudantis a partir de seus heroicos combates contra a ditadura de Machado.7

Nos países centro-americanos:

Em geral, no período compreendido entre 1930 e 1945 não cresceu nem a capacidade produtiva interna nem se diversificaram as exportações, e os preços do café sofreram durante os anos 30 a queda mais violenta e persistente de sua história […]. Excluindo a nação costa-riquense, a sociedade centro-americana em seu conjunto padeceu de um fortalecimento das formas externas de dominação e viu se aprofundar o estilo “oligárquico” mediante o qual uma elite social conservou seu poder inalterável durante 15 ou 20 anos.8

Mesmo naqueles países da região latino-americana onde se supõe que a crise de 29 produziu efeitos econômicos “favoráveis”, estes não deixaram de ser catastróficos. No México:

Para 1930, o produto interno havia caído 12,5% e só cinco anos depois voltou aos níveis de 1928. O valor das exportações baixou, em 1932, um terço em relação às de 1929, e as importações se reduziram até ficarem inferiores às do começo do século; as primeiras caíram 48%, de 590 a 340 milhões de pesos, enquanto que as segundas caíram 52%, de 382 a 180 milhões de pesos. A receita pública caiu nos mesmos anos de 322 para 212 milhões de pesos; o investimento público se reduziu de 103 para 73 milhões, afetando sobretudo os setores de comunicação e transportes. O peso foi desvalorizado ano após ano e de 2,648 por dólar em 1931 passou em 1933 a 3,498 por dólar. A produção de cereais caiu em 1932 14% com relação à de 1929, enquanto que a produção de cultivos industriais, basicamente de exportação, se reduziu em dramáticos 48%, refletindo o primeiro destes casos o peso que a população trabalhadora teve que suportar, já mal alimentada, e o segundo a dependência da exportação mexicana em relação aos mercados imperialistas em crise. A mineração experimentou uma queda ainda pior que a agricultura de exportação: a produção de chumbo baixou de 248.500 toneladas em 1929 a 118.700 em 1933; a de prata caiu de 3.361 toneladas a 2.118 em 1933. A contribuição das manufaturas no produto interno bruto diminuiu em 7,3%, apesar de ser o setor que melhor resistiu aos embates da crise.9

Na Argentina a renda por habitante diminuiu em cerca de 20% entre 1929 e 1934 e só em 1946 conseguiu superar o nível alcançado antes da crise;10 no Uruguai, ainda em 1943 tal renda era inferior à de 15 anos antes;11 no Chile, em 1937 o produto interno bruto ainda não tinha recuperado, em termos absolutos, o nível de 1929.12

O caso chileno impõe, por sua vez, questionar algo que passou praticamente inadvertido nos estudos sobre os efeitos da crise de 29 na América Latina: referimo-nos aos processos de “refeudalização” ocorridos na agricultura. No Chile a porcentagem de “inquilinos” sobre o total da população rural ativa era de somente 14,5% em 1921; em 1930 tal porcentagem aumentou bruscamente, chegando a 20,6%; em 1935 foi de 20,5%.13 Não deixa de chamar atenção que isso tenha ocorrido em uma das sociedades latino-americanas que menos apresentava tendências feudalizantes nos anos vinte. Outro exemplo que poderíamos apresentar é o do Equador, onde estudos recentes demonstraram como os efeitos da crise “levaram a reimplantar as retardatárias práticas das fazendas”, com as seguintes implicações:

O regresso à huasipungaje significou um sério obstáculo ao processo de proletarização do campesinato serrano, o que impossibilitou a difusão de maquinário na agricultura […]. Essa paralisação da mecanização foi acompanhada do estancamento nas técnicas agrícolas em relação às inovações operadas a partir de 1910. Com efeito, a rotação de cultivos se limitou a algumas fazendas, enquanto na maior parte das terras se repetiam os mesmos cultivos através de vários anos. Além disso, tomou caráter generalizado a predominância absoluta das gramíneas sobre as leguminosas.14

É provável que o Chile e o Equador não constituam situações de exceção mas, ao contrário, casos representativos de uma tendência mais geral; mas isso só poderemos saber quando se realizem investigações sistemáticas a partir de hipóteses diametralmente opostas às que até agora a sociologia latino-americana veio manejando.

Esse é ainda o período em que a tendência à deterioração dos termos de intercâmbio – que, segundo Samir Amin, teria começado com a própria implantação da fase imperialista –15 se manifesta com maior rigor: entre 1930 e 1934 tais termos se deterioraram para a América Latina em 24,3% e no intervalo entre 1935-39 são ainda inferiores aos de 1929 em 12,9%.16

Quanto à “industrialização por substituição de importações”, que supostamente haveria ocorrido graças à crise, basta analisar os dados disponíveis para comprovar a inconsistência desta interpretação mecanicista de nosso desenvolvimento histórico.

Na Argentina, o produto industrial cresceu 6% entre 1929 e 1934, ou seja, em termos absolutos permaneceu estagnado; entre 1935 e 1939 houve um desenvolvimento de 25%.17 O que quer dizer que nestes dez anos tenha crescido, no total, menos que durante o quinquênio 1925-29. O investimento enquanto porcentagem do produto nacional – em si mesmo reduzido pela crise – caiu de 33,3% em 1925-29 a 22,2% em 1930-34 e a 23,7% em 1935-39, sem que se experimentasse, ademais, nenhuma mudança na estrutura de dito investimento por setores econômicos: para a indústria, mineração e construção civil foram dedicados 16% do total de investimentos em 1925-29, só 15,4% em 1930-34, e 16,9% em 1935-39.18

Quanto ao Uruguai, o produto interno bruto gerado pela indústria foi em 1930 de 1,563 bilhão de pesos; em 1936 de 1,476 bilhão e em 1943 de 1,845 bilhão, calculado segundo o custo constante de fatores em 1961.19 O que quer dizer que, inclusive com referência ao ano de 1930, no qual temos uma produção industrial já deprimida, tal produto só aumenta minimamente em 1943: 18% em 13 anos, porcentagem que não deixa de contrastar com o aumento do período imediatamente posterior, 1944-55, que é de 118% (produção industrial equivalente a 4,216 bilhões de pesos em 1955).20 Além disso, nada parece indicar que tenham ocorrido mudanças na composição orgânica do capital industrial uruguaio na década de trinta, e nem sequer que se tivesse produzido uma real alteração da relação entre indústrias “tradicionais” e “dinâmicas”: as primeiras só sofrem uma modificação que consiste na queda da indústria de carnes, enquanto as segundas se veem acrescidas, a partir de 1938, pela criação da refinaria da Ancap. Cabe se perguntar, ao fim, como teria podido ocorrer um desenvolvimento industrial mais acelerado que o precedente em circunstâncias em que, por um lado, a importação de máquinas e equipamentos cai de 17.693 toneladas em 1925-29 para 10.557 toneladas em 1930-34,21 e, por outro, não é criada nenhuma indústria produtora de bens de produção.

Parece claro, dessa forma, que nem no caso argentino nem no uruguaio houve o grande salto para frente que alguns se esforçaram para descobrir. E mal poderia haver, em uma situação em que as forças mais retrógradas se amparam no poder, praticam uma redistribuição regressiva da receita nacional, consolidam e até ampliam a estrutura latifundiária22 e agravam a dependência com negociações como o triste e célebre pacto Roca-Runciman.23

A “década infame” da Argentina e a ditadura de Terra no Uruguai representam – e é preciso ter isso muito claro – uma resposta tipicamente reacionária à crise de 1929. Com tal resposta se salvam naturalmente os interesses da oligarquia, mas ao preço de afundar a economia dos respectivos países. Assim como a crise capitalista de 1907-1908 marca o ponto de declínio do “milagre” porfiriano, a de 1929 assinala a agonia dos “milagres” rioplatenses; só que no primeiro caso as massas entram em cena para transformar a via de desenvolvimento do capitalismo em um sentido antioligárquico, enquanto que no segundo a oligarquia se impõe como força hegemônica, para acentuar os traços mais negativos do sistema. A sorte da Argentina e do Uruguai está lançada desde esse momento: em que pese a efêmera retomada do segundo pós-guerra, estes países não farão mais do que seguir perdendo a posição de ponta que até 1929 haviam ocupado na constelação latino-americana.

Em relação ao caso do Chile, cabe destacar que este é o que melhor desmente a conhecida fórmula de “com menor capacidade de importar, maior é a substituição de importações e, portanto, maior industrialização”. Se nos atentarmos aos quadros elaborados por Celso Furtado, descobrimos que no Chile a “magnitude do processo substitutivo” foi, entre 1929 e 1937, três vezes superior à do México e Brasil (17,4% frente a 5,7% e 4,4%, respectivamente); mas de forma que no mesmo período a intensidade do processo de industrialização foi da ordem de 46% no México, 42% no Brasil e apenas 16% no Chile.24 Furtado calcula, na verdade, o que cada país deixou de importar, dando como certo que esse dado revelava em si mesmo um “processo substitutivo”, algo evidentemente falso. Em todo caso, é evidente que a indústria chilena cresceu em um ritmo inferior a 2% no período de crise, o que significa que o produto industrial por habitante sofreu uma estagnação absoluta em tal período.

Os avanços que aqui se deram posteriormente são fruto da luta das massas, que através da Frente Popular impulsionam, até onde é possível, a industrialização do país. O próprio Furtado reconhece esse fato ao escrever:

A criação, em 1939, da Corporación de Fomento de la Producción (CORFO), instituição que serviria de modelo um decênio depois a outros países da América Latina, representa um ponto de partida da segunda fase de industrialização chilena. Coube à CORFO elaborar e executar um plano de eletrificação para o país, criar as bases da produção e refinamento de petróleo, instalar uma moderna siderúrgica (Huachipato), desenvolver a produção de açúcar de beterraba, promover a produção de papel etc. O Chile constitui, portanto, menos um caso de industrialização, à base de substituição espontânea de importações, que de ação estatal visando superar os obstáculos criados à economia do país pela desorganização de seu setor exportador.25

Só que tal substituição “espontânea” não parece ter ocorrido de verdade em lugar nenhum. O México se recupera com relativa rapidez da crise, de forma que sua produção industrial já em 1936 é ligeiramente superior à de 1929, para daí em diante adquirir um ritmo de crescimento que é quase duas vezes mais acelerado que o da Argentina. Entre 1934 e 1950, por exemplo, a indústria mexicana cresce a um ritmo médio anual de 7,2%. Porém é difícil negar que isso tenha como base as transformações estruturais que culminam na fase cardenista, que é uma das respostas mais progressistas que a América Latina consegue dar à crise de 29. Quanto à substituição de importações como motor da história, estudos como o do economista Leopoldo Solís demonstram que até 1938 não ocorreram mudanças significativas na estrutura das importações mexicanas:

Foi assinalado que em outros países da América Latina (Argentina, Brasil, Colômbia) a Grande Depressão estimulou a substituição de importações e propiciou a industrialização. Por sua vez, através de observações comparadas e do teste χ2 (qui-quadrado), para o México se provou que não houve mudança “significativa” na estrutura das importações no período posterior à Grande Depressão; pelo que se deduz que no México esse fenômeno não foi um fator de estímulo no processo de substituição de importações.26

Resta, por fim, o caso do Brasil, que parece ser o mais ajustado à tese de que a crise de 29, ao diminuir a capacidade de importar, impulsionou a industrialização. Furtado chamou a atenção sobre esta situação ao observar que:

A produção industrial, que se destinava em sua totalidade ao mercado interno, sofre durante a depressão uma queda de menos de 10 por cento, e já em 1933 recupera o nível de 1929. Alguns setores de produção industrial haviam atravessado uma etapa de relativa depressão, nos anos vinte, quando as importações foram favorecidas pela situação cambial. É o caso típico da indústria têxtil, cuja produção de tecidos de algodão foi inferior em 1929 aos pontos mais altos alcançados durante a Primeira Guerra. A recuperação dessa indústria foi rápida, nos anos que se seguiram à crise. De 448 milhões de metros, a produção de tecidos de algodão elevou-se a 639 milhões em 1933 e 915 milhões em 1936. 27

Mas aqui há uma primeira observação a formular, no sentido de que o Brasil é o caso latino-americano em que mais evidentemente se delineia, no curso dos anos vinte, uma contradição entre o impulso de novas forças produtivas e o freio que a manutenção da estrutura oligárquica de poder impõe a elas. Uma ilustração viva desta contradição pode ser obtida ao incluir, ao quadro de uma industrial têxtil deprimida nos anos vinte que Furtado nos apresenta, apenas esse dado de outros autores:

Curiosamente, durante os anos 1923-1928 se fizeram as maiores importações de teares, máquinas de estampar e acessórios. Níveis comparáveis de importação só se observaram em 1913.28

Vemo-nos então tentados a afirmar que bastou que a crise se desse e a correspondente dificuldade de importar para que a contradição se resolvesse em favor dessa força industrial emergente. Só que esse raciocínio se esquece de que a oligarquia não perdeu sua hegemonia ao se inteirar de que havia ocorrido o crash de 29, mas quando este precipitou um processo revolucionário que vinha se gestando desde muito antes e que expressava, entre outras coisas, a tendência a resolver em sentido progressista a contradição acima indicada.

Já assinalamos, no capítulo anterior, as principais limitações do tipo de movimentos que levaram a cabo transformações como a de 1930 no Brasil; aqui nos interessa destacar que, apesar disso, não se pode ignorar a distância que existe entre a resposta brasileira e a argentina ou uruguaia, ainda que em termos de desenvolvimento estritamente econômico. Furtado observa a este respeito:

Ao contrário da Argentina, onde os interesses da economia de exportação reforçaram a sua posição no Estado mediante o golpe militar de 1930, no Brasil essas posições foram debilitadas. […] A maior profundidade da crise não permitiu que no Brasil se alimentassem ilusões com respeito a uma restauração do setor exportador em papel similar ao que antes lhe coubera. Assim, desde os anos 30 o governo brasileiro preocupou-se em unificar o mercado nacional, eliminado as barreiras que ainda sobreviviam entre os estados, criou a Companhia Siderúrgica Nacional, à qual caberia a instalação da usina de Volta Redonda, promoveu o treinamento de mão de obra industrial em escala nacional etc.29

Resta assinalar uma última questão, referente aos efeitos da Segunda Guerra Mundial na economia latino-americana. É verdade que a partir de 1943 se inicia, via de regra, um período de recuperação do conjunto de nossa economia; mas isso não significa que esta tenha seguido um curso oposto ao do sistema capitalista-imperialista e em particular ao de seu novo centro hegemônico. Recordemos que no intervalo de 1939-45 a produção industrial dos Estados Unidos cresceu em mais de duas vezes e o produto nacional bruto desse país aumentou em mais de dois terços, registrando uma “tremenda expansão” nas palavras de Baran e Sweezy.30

Ligado a esta expansão, o setor primário exportador latino-americano se recuperou com relativa rapidez, o que permitiu reestabelecer o mecanismo de acumulação tipicamente dependente ao qual já nos referimos. Entre 1943 e 1953 foi registrada inclusive uma tendência ao melhoramento dos termos de intercâmbio, com a correspondente elevação da capacidade de importar. Se examinarmos, sobretudo, as situações uruguaia e argentina fica claro que o “boom” fugaz de sua indústria no decênio 1945-55 está assentado nessa premissa. Revisemos, para comprovar, alguns dados relativos ao momento de “decolagem”.

Para a Argentina, os termos de intercâmbio melhoram de 83,7% em 1943 para 141,7% em 1948; a produção agropecuária cresce no mesmo intervalo em 57,5% e a produção industrial em uma porcentagem similar: 58,2%.31 As importações provenientes dos Estados Unidos passam de 179 milhões de pesos em 1943 para 2,286 bilhões em 1948, e as procedentes do Reino Unido de 194 para 775 milhões nos mesmos anos.32

Para o Uruguai os índices dos preços de exportação sobem de 54,1 em 1943 para 117,3 em 1948; o volume físico das exportações quase não experimenta mudanças, mas o de importações sim, que passa de um índice de 46,4 em 1943 para um de 111,2 em 1948. Nesse intervalo o produto industrial bruto cresce 37%.33

Ainda no caso brasileiro é muito difícil demonstrar que a expansão industrial varia em razão inversa ao desenvolvimento da economia primário exportadora. Maria Conceição Tavares, que sem dúvida realizou a tentativa mais rigorosa de aplicação da tese do “desenvolvimento industrial induzido pela impossibilidade de importar”, chega por isso a uma conclusão matizada, que a nosso juízo não faz mais que tornar evidente o beco sem saída daquela tese. Diz a autora:

Todo o problema reside, como vimos na parte teórica deste ensaio, que o estrangulamento [do setor exportador]34, em termos absolutos, não deve ser prolongado, para permitir à economia avançar para etapas sucessivas de diversificação. Assim, poderia se dizer, em tese, que a cada período de restrições mais severas do setor externo deve suceder um período de abrandamento que facilite a transição para a etapa seguinte.35

Conclusão que no fim das contas desemboca em um vazio explicativo, posto que a condição supostamente necessária para a industrialização de nossos países estaria sempre dada: o desenvolvimento cíclico do capitalismo se expressa, nas áreas dependentes, justamente pela alternância de períodos de “restrições” e períodos de “afrouxamento”, salvo em casos de verdadeira exceção.

Por todas essas razões preferimos manter nossa tese de que as crises do capitalismo, por si só, não fazem mais que produzir efeitos negativos nos pontos débeis do sistema, a menos que a luta de classes dê resultados favoráveis às forças portadoras do progresso. Quando isso não ocorre, os aspectos mais retrógrados do modelo oligárquico-dependente se acentuam e a economia subdesenvolvida entra em uma prolongada fase de estagnação, em espera de uma reativação da economia imperial que volte a colocá-la em movimento, subordinando-a em função das necessidades de reordenamento do sistema todo. É a situação que mais se assemelha a um “reflexo” passivo, ainda que na realidade essa aparência de passividade expresse o predomínio das forças mais reacionárias. Este último foi o caso, infelizmente, na maior parte dos países latino-americanos na década de trinta.


Notas:

1 Dados tomados de CGE e CFI, Programa conunto para el desarrollo agropecuario e industrial, 2º informe, t. III, Buenos Aires, 1963, p. LXV.

2 Fuente: Mónica Peralta Ramos, Etapas de acumulación y alianzas de clases en la Argentina (1930-1970), Siglo XXI, Argentin, 1972, p. 48.

3 Cf. Villanova e Suzigan, op. cit., p. 393.

4 Cf. a citação 32 do cap. 5 deste livro. [*]

5 El proceso de industrialización en América Latina, Nueva York, Naciones Unidas, 1965, p. 16.

6 Op. cit., pp. 63-66.

7 Cf. Luchas obreras contra Machado (recompilação e introdução de Mirta Rosell), La Habana, Instituto Cubano del Libro, 1973.

8 Edelberto Torres-Rivas, Procesos y estructuras…, pp. 131 e 141.

9 Arnaldo Córdova, La política de masas del cadernismo, México, Ed. ERA, 1974, pp. 17-18.

10 Aldo Ferrer, op. cit., p. 188.

11 Cf. Millot et al., op. cit., pp. 82-83.

12 Furtado, A economia latinoamericana…, p. 189.

13 A. Schejtman, Peasant economies within the large haciendas of central Chile (tesis), University of Oxford, England, 1970, p. 187.

14 Apuntes para una discusión sobre los cambios en la estructura agraria serrana, trabalho da equipe de investigação do Departamento de Ciências Sociais e Políticas da Pontificia Universidad Católica de Ecuador, mimeografado, Quito, Agosto de 1976, p. 73.

15 Op. cit., p. 168.

16 CEPAL, Estudio económico para América Latina, 1949.

17 CGE e CFI, loc. cit. Segundo Furtado, a produção industrial argentina cresceu em 23% no intervalo de 1929-37, ou seja, a um ritmo médio anual apenas superior a 2%. Cf. La economía latinoamericana…, p. 112.

18 Cf. Mónica Peralta Ramos, op. cit., pp. 48 e 105.

19 Millot et al., op. cit., quadro 23, p. 251.

20 Millot et al., loc. cit.

21 Millot et al., op. cit., quadro 34, p. 263.

22 No Uruguai “a crise se resolveu proletarizando a pequenos e médios produtores, provocando, em outro extremo, processos de maior concentração dos meios de produção”. Millot et al., op. cit., p. 75, nota 1.

23 Cf. Rodolfo Puiggrós, La democracia fraudulenta, 3ª ed., Buenos Aires, Corregidor, 1974, cap. IV.

24 A economia latinoamericana…, pp. 190-191.

25 Ibid., p. 192.

26 La realidad económica mexicana: retrovisión y perspectivas, 5ª ed., México, Siglo XXI, 1975, p. 99.

27 Formação econômica do Brasil, ed. cit., pp. 210 e 254.

28 Villanova e Suzigan, op. cit., p. 172.

29 La economía latinoamericana…, p. 116.

30 Cf. El capital monopolista, 10ª ed., México, Siglo XXI, 1975, pp. 192-193.

31 Furtado, A economia latinoamericana…, pp. 196-197.

32 Marta Panaia, Ricardo Lesser e Pedro Skupch, Estudios sobre los orígenes del peronismo/2, Siglo XXI Argentina, 1973, p. 74.

33 Instituto de Economia, Faculdade de Ciências Econômicas e de Administração, El proceso económico del Uruguay. Contribución al estudio de su evolución y perspectivas, Montevideo, Universidad de la República, Departamento de Publicações, 1969, pp. 150 e 174.

34 N.E.: Nota de Agustín Cueva.

35 Da substituição de importações ao capitalismo financeiro, Ensaios sobre economia brasileira, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981, p. 102.

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