Psicanálise Popular: Da mais valia ao mais de gozar

Por Matheus Dias Pereira

Esse não é um texto que tem pretensão de esgotar a relação entre mais valia e mais de gozar, é um texto de verificações, apontamentos e reflexões sobre o tema e essencialmente uma tentativa de demonstrar mais uma das diversas contribuições técnicas e teóricas que Lacan trouxe para a clínica psicanalítica: Início com uma conclusão: Lacan a partir de Freud salvou alguns Psicanalistas do capitalismo! Consequentemente salvou a psicanálise de desvios terríveis aos quais ela vinha se submetendo na primeira metade do século XX. Vou explicar!


Nosso herói em questão, Lacan, fez a incrível verificação da relação do conceito de mais valia com o que ele chamou de mais de gozar, não que isso já não existisse na obra freudiana, mas Lacan enxergou e teorizou. Coisa de gênio! Ele formaliza isso em um período historio muito preciso, em 1968, momento esse, de efevercência política e de enfretamento aos sistemas políticos de direita e do capitalismo na França, me refiro aqui especificamente ao seu Seminário “de um Outro ao outro” iniciado nesse mesmo ano. Lacan, como todos sabem, não era um esquerdista revolucionário, mas atento as questões de seu tempo, nesse seminário resgata um conceito fundamental marxiano que é o conceito de mais valia e o conecta com sua conceituação de mais de gozar. Conceituação, essa sim, revolucionária para os psicanalistas, e necessária, inclusive para os revolucionários comunistas advertidos.

É preciso dizer rapidamente que estruturalmente a Psicanálise só pode surgir com o advento do capitalismo, no qual o dinheiro é a forma de valorizar o trabalho, passando a ter valor na economia de gozo do sujeito, tese marxiana, como bem nos ensinou Lacan.

A Mais valia na teoria marxiana é o excedente de trabalho não contabilizável, absorvido pelo patrão, portanto, lucro, ganho de valor sobre o tempo, corpo e trabalho de seu empregado. Mas o que fazer com isso? Lacan, sabiamente, verifica aí, que essa perda não contabilizável pode ser trabalhada e verificada com a inserção de um discurso: o discurso analítico! Assim, a mais valia (não contabilizável) quanto tomada em termos de mais de gozar que já estava lá, mas que só pode surgir em decorrência do método analítico, do discurso do analista passa a ser algo analisável.

Lacan ao passar da mais valia ao mais de gozar, retira o sujeito de qualquer preconceito prévio, coloca o sujeito sem qualidades como participante daquilo que o faz trabalhar em excesso para o gozo do Outro, portanto, não pactua com o natural do capitalismo. Abre assim espaço, exatamente para rompimento do inevitável fim do homem explorado e insere a possibilidade de fazer outra coisa com seu sintoma. Retira o trabalhador/paciente da posição do em si e a coloca no para si.

A partir disso, Lacan insere aqui um problema praticamente insolúvel na Psicanálise: qual o valor do dinheiro e do pagamento das sessões?

Antes dele as práticas psicanalíticas haviam perdido seu rigor e havia se criado diversos entraves pseudo técnicos, todos eles adaptativos ao sistema capitalista que levavam a psicanálise a se tornar mais um falso sistema terapêutico adaptado as necessidades do mercado e do homem consciente.

Assim, deve-se considerar o dinheiro e o pagamento das sessões para além dos limites ditados pelo capital e sim pautados no gozo do paciente que trabalha e paga por seu próprio gozo. Essa subversão metodológica extrapola qualquer possibilidade de apreensão normativa do sistema capitalista que ditaria valores mensuráveis pelo trabalho do analista. O que há, é uma subversão do sujeito, na qual ele deve ser seu próprio patrão e o dinheiro que entrega ao psicanalista não é o valor cobrado por seu atendimento, mas sim pelo seu gozo, renúncia de gozo.

Como disse que isso é importante não só para psicanalistas, para os comunistas, a luta é pela supressão do trabalho assalariado, segundo Edmilson Costa, secretario geral do Partido Comunista Brasileiro “o salário não representa o conjunto das riquezas produzidas, mas apenas o preço da mercadoria força de trabalho, que corresponde aos meios necessários à sua subsistência[1]“.

Aqui como dizia Lacan no Seminário “Ou pior”, Marx e Freud são compatíveis. Estruturalmente comunistas e analistas falam a mesma coisa. Podemos dizer que Lacan também foi refratário a noção de salário para o analista, pois o dinheiro como salário pago ao analista estaria ligado intimamente as necessidades de subsistência do próprio analista, portanto, estaria como algo externo ao processo analítico. Freud[2] já afirmava que para além das questões de autopreservação e obtenção de poder as questões do dinheiro trazem “poderosos fatores sexuais”. O dinheiro acima de tudo com Lacan, passa na análise a ter status de gozo.

Mas como Lacan[3] chega a essa descoberta? Ele afirma o seguinte:

“Assim como o trabalho não era novo na produção da mercadoria, a renúncia ao gozo, cuja relação com o trabalho já não tenho que definir aqui, também não é nova. O que há de novo é existir um discurso que articula essa renúncia, e que faz evidenciar-se nela o que chamei de função do mais-de-gozar. É essa a essência do discurso analítico”.

A passagem da mais valia ao mais de gozar é possível a partir do encontro forçado entre Marx e Lacan. Lacan revela isso brilhantemente, e acima de tudo retira qualquer possibilidade de enquadramento mercadológico a prática analítica ao colocar o analista como objeto, causa de desejo. O que está em jogo então não é o trabalho, mas o desejo do analista, não um desejo qualquer, mas um desejo metodologicamente orientado que não cabe nas leis de mercado, nos cursos, na academia e nem mesmo em identificações de sistema político, o que não coloca de modo algum a Psicanálise como apolítica. Um método que estruturalmente trabalha com a castração, com a perda e porque não com a emancipação? Assim, a função: mais-de-gozar “aparece em decorrência do discurso. Ela demonstra, na renùncia ao gozo, um efeito do próprio discurso[4]“.

Na Psicanálise, metodologicamente o dinheiro não se encaixa em sistemas políticos econômicos existentes na realidade, portanto, não podemos basear a relação com o dinheiro em termos capitalistas como se o analista trabalhasse para dali tirar seu salário, pois o analista não é um trabalhador e o que está em jogo é o sujeito.

Para Lacan[5]:

“Um sujeito é aquilo que pode ser representado por um significante para outro significante. Não será isso calcado no fato de que, no que Marx decifrou, isto é, a realidade econômica, o sujeito do valor de troca é representado perante o valor de uso? È nessa brecha que se produz e cai a chamada mais-valia. Em nosso nível, só importa essa perda”..

Seguimos nessa pista: para Marx o valor de troca de uma mercadoria varia com tempo e espaço, marcado pelo tempo de trabalho de seu desenvolvimento, já o valor de uso de determinada mercadoria é relacionado de acordo com a utilidade relacionada às suas propriedades físicas e capacidade de satisfazer as necessidades, portanto atravessado, marcado por um discurso que inclui e exclui o sujeito. Eis a sua dificuldade de simbolização que o próprio Marx revela.

Por isso, por considerar o sujeito e essa perda entre valor de troca e valor de uso é que não se pode mensurar um valor previamente de uma sessão de psicanálise em termos de tempo de trabalho de mercado ou até mesmo pelas “condições sociais” da pessoa que adentra ao consultório. Considerar a mais valia sobre os corpos é legal, sinal até civilizatório, mas considerar a mais valia sem sujeito, é inviabilizar o tratamento analítico e consequentemente o inconsciente.

O valor do dinheiro como uma das formas de perda de gozo, não a única, não é o mesmo para cada sujeito, cabe aí também ao analista não ter preconceitos e resistir, por exemplo, a fazer “valor social das sessões”, pois como o nome diz, essa clínica parte de preconceitos excludentes do sujeito do inconsciente.  Sugiro então a partir do que já sabemos que troquemos a tão falada “clínica social” para Psicanálise Popular.

Mas usar o termo popular ao invés de social não é apenas um preciosismo? Não! Trago aqui alguns argumentos. O ser social em si já vem marcado por valores prévios a sua fala, como raça, cor, condições social, ideologia política, etc, ele já tem identidade e qualidades quando entra no consultório a partir de uma demanda social. Já “popular” não, já que suas adjetivações só podem vir depois. Parto do pressuposto que o “ser social” vem com qualidades anteriores ao que vai falar e “popular” só se reconhece após sua fala. Nesse sentido é preciso considerar o conceito de povo como a multiplicidade real de significantes que podem representar um sujeito para outro significante. Explico: Povo por si só não significa nada. Povo só existe em relação a algum outro significante, que pode ser o Estado, momento histórico, sujeitos submetidos sob a mesma lei, etc.

Portanto, pensar em Psicanálise Popular é considerar que a mais valia imposta ao corpo de qualquer um, independente de onde esteja, com o advento do método analítico, com a inserção do discurso do analista, a transforma em mais de gozar. É necessário, pensar na psicanálise a partir de seus próprios conceitos e não de conceitos externos. É preciso romper por outro lado também, com a ideia de que a psicanálise é elitista e burguesa, não confundir o que psicanalistas fizeram da psicanálise com o que ela realmente é metodologicamente. Agora, com a possibilidade de trabalhar a mais valia a partir do discurso analítico que a aborda a partir do mais de gozar, enfim, rompemos tanto com identificações burguesas, quanto com identificações de samaritanismo para os pobres. É importante também lembrar que a questão do dinheiro é uma das formas de perda de gozo, não há apenas essa, mas negar a existência de tal tema em psicanálise é reformar e exclusão social da qual supostamente se tenta libertar as pessoas.

É a partir da fala do sujeito que a psicanálise se inicia, e não partir das formas de exploração e sofrimento reais e visíveis aos olhos também do analista que não é cego a elas mas que só pode saber delas a partir do sujeito. O esforço de Lacan em 1968 era exatamente de não consolidar estruturalmente o que se combatia socialmente naquele momento. Em um processo de análise há a possibilidade de verificação e de trabalho de suas perdas, seus traumas, de sua história e de onde se está metido nisso tudo, e para isso não há mercado contabilizável, nem identificação social sem sujeito. Lacan, então com Marx, nos abre as portas para possibilidade de uma emancipação que leva em conta o que se perde, não em busca de recuperá-lo, mas na busca de um saber fazer com isso que se verifica como perda.

É partir da escuta da fantasia ($◊a) que podemos acessar o que representa para o sujeito seu sofrimento e que sinthome pode fazer a partir de seu sintoma. É preciso metodologicamente seguir o dito lacaniano de que; “Eu a verdade falo”, pois é só daí que podemos pensar em uma psicanálise popular, para além de conceitos pré-definidos. Lacan[6] afirma: “Se em parte alguma do Outro é possível assegura a consistência do que é chamado verdade, onde está ela, a verdade, a não ser naquilo que corresponde a função do a”?

Diante disso, O que fazer? Perguntava Lenin. Acho que tanto para analistas como para comunistas Marx[7] dá a pista, vou concluindo com ele:

“A vontade do capitalista (poderia mudar aqui por sintoma) é certamente de ficar com o mais possível. O que temos de fazer não é apenas falar acerca de sua vontade, mas inquirir o seu poder, dos limites desse poder e do caráter desses limites”.

Creio que é partir daí que podemos construir uma Psicanálise Popular  longe das amarras do capitalismo, idealizações identitárias de libertação e toda sorte de deturpações que desconsideram que o sujeito. Concluindo, então que a tal psicanálise para o povo que Freud apontava em 1918 só pode existir desde que “os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa[8]”. Só há essa forma!


Notas

[1] Costa, Edmilson. Em Introdução da obra: Salário, Preço e Lucro. Karl Marx.Edipro. São Paulo. 2020. (p.9)

[2] Freud, Sigmund. Sobre o inicio do tratamento (1913). Obras Completas de Freud. Imago. 1996. (p.146)

[3] Lacan, Jacques. O Seminário livro 16. De um Outro ao outro (1968-1969). Jorge Zahar. 2008. (p.17)

[4] Lacan, Jacques. O Seminário livro 16. De um Outro ao outro (1968-1969). Jorge Zahar. 2008. (p.17)

[5] Lacan, Jacques. O Seminário livro 16. De um Outro ao outro (1968-1969). Jorge Zahar. 2008. (p.21)

[6] Lacan, Jacques. O Seminário livro 16. De um Outro ao outro (1968-1969). Jorge Zahar. 2008. (p.24)

[7] Marx, Karl. Em Introdução da obra: Salário, Preço e Lucro. Karl Marx. Edipro. São Paulo. 2020. (p.25)

[8] Freud, Sigmund. Caminhos da Terapia Psicanalítica (1918). Obras completas de Sigmund Freud. Imago. 1996. (p.179).


Sobre o autor

Matheus Dias Pereira é psicanalista, membro do Laço Analítico/Escola de Psicanálise. Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise/UERJ. Diretor do CAPS NEUSA SANTOS SOUZA-RJ.


Trabalho apresentado no dia 9 de setembro de 2022, na 24ª Jornada do Laço Analítico / Escola de Psicanálise (A clínica Psicanalítica de Lacan). Manaus/AM.

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17 comentários em “Psicanálise Popular: Da mais valia ao mais de gozar”

    • Obrigado Luis. É importante diferenciar o que os psicanalistas fazem da psicanálise do que realmente é o método analítico. Enquanto método não cabe ao psicanalista ser um assalariado que goza do dinheiro dos pacientes.

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  1. Muito interessantes os conceitos trazidos e as articulações, pelo que lembro a primeira vez que me aproximo dessa leitura. Confesso que não tenho muita proximidade dos textos lacaneanos o que dificulta, eu imagino, uma melhor compreensão. Mas, me peguei refletindo sobre a realidade do psicanalista dentro dessa leitura e perspectiva.

    Já ouvi em um curso sobre o início da análise uma fala que me marcou e vez ou outra volta a reflexão. “Se você depende financeiramente do dinheiro que recebe como analista, não será analista”. Eu entendo de onde veio essa fala e imagino aproximações com conceitos que estão nesse texto. Faz sentido pensar o desenlace do analista e do capitalismo, mas pergunto, olhar para isso sem considerar a pessoa do analista em sua inserção social/histórica/de trabalho não é só negar a realidade da intervenção de fatores assim no trabalho analítico? Ou mesmo não é perpetuar o lugar burguês de analista? (É preciso uma estrutura social prévia pra se desprender da função do dinheiro no trabalho analítico?)

    Refletir sobre o trabalho analítico como trabalho (salário, direitos trabalhistas, descanso, aposentadoria) não seria também uma forma de fortalecer a pessoa do analista e por consequência sua possibilidade de atuar como psicanalista?

    Reflexões que me vem com a leitura desse texto, agradeço!

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    • Perfeito. O discurso de valor sem levar em conta todo o arcabouço social que envolve a realidade ímpar de cada analista soa como excludente, o que, por aí só, parece conduzir a ideia/idealização de uma condição econômica prévia para só então poder ser analista.

      Talvez esse discurso funcione em parte, mas não em todo. Talvez fosse absolutamente defensável em meados do século passado, mas cada vez mais esvaziado na dinâmica contemporânea.

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      • Interessante artigo de reflexão pessoal a partir da sua interpretação de Lacan e Freud. Interessante tbém perceber a tendência de psicanalistas neste nosso momento histórico, que têm, reiteradamente, delineado uma interpretação sempre com base nos incômodos emocionais individuais que as ideologias políticas causam no indivíduo (em si mesmos?). Poderíamos contemplar variadas interpretações psicanalíticas, não menos relevantes e altamente importantes para a evolução humana, a partir da afirmação-mote de toda essa análise por outras perspectivas. Homem, sociedade, identidade social, utilidade individual são temas que ganham todos os campos da ciência e tbém de sabedoria popular, de tradição, de formação humana, de literatura. Freud e Lancan se ocuparam muito mas do que os braços políticos do capitalismo e as preocupações esquerdistas possam de conta. Espero que passe logo esse tempo que tenhamos visto todos os bons pensadores, pesquisadores, cientistas, psicanalistas , escritores, leitores, tão envolvidos com os próprios incômodos emocionais e diariamente batendo na mesma e mesma e mesma tecla como forma quase catártica de tentativa de autocura. Você escreve muitíssimo bem, Matheus. Apenas atente para regras de crase e pronomes, que ainda estão em uso. Seria, então, um texto gramaticalmente perfeito.

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  2. Excelente texto. Também não gosto dessa ideia de “preço social”, “valor social”, e acho muito boa a experiência de clínica pública em São Paulo (conhece? É uma iniciativa de alguns psicanalistas, como o Teles Ab Saber). Prefiro chamar a psicanálise só de psicanálise mesmo. Se ela não é elitista, (alguns que a fazem, são, concordo com você), não precisa de adjetivaçoes.

    Abs

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  3. SALVOU o psicanalista do capitalismo??? HAHAHA. Claro, o ser humano nasceu para ser igual a TODOS. Sem particularidades. Sem desejos. Sem ter a própria escolha. HAHAHA Quanta bobagem. PENSE UM POUCO.

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    • Olá Paulo, quem está salvo do capitalismo? Quando disse isso, me referi ao uso da técnica que na época é até hoje é usada por muitos em favor dos seus próprios enriquecimentos sem ouvir o valor de verdade da angústia de quem nos procura. Abraço

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