Sobre a Concepção de História no Último Marx

Por André Depa

O presente artigo pretende apresentar a discussão acerca da possível mudança de orientação na concepção de História no período tardio da vida de Karl Marx, que inicia-se com a derrota da Comuna de Paris, em 1871, e estende-se até 1883, data de sua morte.


De início, cabe esclarecer que delimita-se aqui o “último Marx” (ou Marx tardio) como o período da vida do autor d’O Capital que inicia-se em 1871, com a  derrota da Comuna de París, até 1883, o ano da sua morte (SHANIN, 2017). Esse momento de produção teórica de Marx foi marcado pelo trabalho em novas edições de sua magnum opus (segunda edição alemã, tradução francesa) pela redação de pequenos textos, comentários, trocas de cartas e notas de leitura, uma produção “menor” por conta da agravação do seu quadro de saúde, além de tragédias pessoais, como a morte de sua companheira, Jenny, em 1881 e da sua filha mais velha, de nome homólogo à mãe, alguns meses antes da morte do próprio Marx.

 Os principais textos deste período da vida teórica de Marx são (COSTA NETO, 2003):

  • A Guerra Civil na França (1871)
  • Notas sobre o livro de Bakunin: “Estatismo e Anarquia” (1874-1875)
  • Crítica ao Programa de Gotha (1875)
  • Notas marginais ao “Tratado de Economia Política” de Adolph Wagner (1879-1880)
  • Escritos sobre a questão russa, especificamente a Carta à Redação de “Otietchestviennie Zapiski” e os Rascunhos e Carta a Vera Zasulitch) (1877-1881)
  • Notas etnográficas de Karl Marx (em particular, as notas de leitura do livro de Lewis Henry Morgan, “A Sociedade Antiga” utilizadas posteriormente por F. Engels para a redação do seu livro “A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado”.

O período teórico de Marx anterior à 1871, por exemplo nos artigos que formulou sobre a crise econômica redigidos para o jornal norte-americano New York Daily Tribune, entre 1856 e 1858, e no seu Prefácio à Contribuição da Crítica da Economia Política de 1859, ainda certo da iminência de revolução, estava próximo de algumas formulações de Hegel. Na verdade Marx inverte Hegel, conforme ele escreveu no seu prefácio à segunda edição alemã de O Capital, colocando o processo da economia no lugar do espírito. Percebe-se, entre as concepções de Marx previamente a 1871 e as formulações de Hegel, uma proximidade na questão da contradição única que desenvolve o processo histórico, mas, de um lado, uma posição materialista e, do outro, uma idealista (BOITO JR; 2004).

Contudo, apesar de não romper completamente com a problemática hegeliana, nos textos do último Marx, encontramos esboços de uma nova problemática, por exemplo com a noção de meio histórico, que pressupõe a pluralidade de causas na origem de determinado fenômeno, uma ruptura importante com a ideia de unicidade causal do movimento, levando em conta a multiplicidade dos fenômenos sociais para a construção do processo.

Particular atenção podemos prestar nos esboços da carta-resposta que Marx endereçou à revolucionária russa Vera Zasulitch. Em dezembro de 1880 já fora solicitado a Marx, por Nicolai Alexandrovitch Morosov (representante do Comitê Executivo do Vontade do Povo), que escrevesse sobre a questão da comuna agrária russa. Em 16 de fevereiro de 1881 os membros do grupo Partilha Negra (dissidência do Vontade do Povo formada em 1879 e liderado por Zasulitch, Axelrod, Deich e Plekhanov), através da supracitada dirigente,  fizeram o mesmo pedido.

Quem encontrou os esboços da carta de Marx à então narodnik foi o historiador russo David Riazanov, em 1911, nos pertences de Paul Lafargue, marido de Laura Marx. Em 1923, um colega de profissão de Riazanov, Boris Nicolaievski, descobriu nos pertences do menchevique Pavel Axelrod a carta que Marx havia enviado efetivamente a Zasulitch (em 8 de março de 1881). O modelo final da carta acabou sendo mais breve do que Marx pretendia, a julgar pela densidade de conteúdo nos esboços (ele havia considerado a possibilidade de escrever uma brochura, como requisitado pela sua correspondente, mas por conta da enfermidade e da promessa de escrever sobre o mesmo tema para o Vontade do Povo acabou decidindo desenvolver algo mais conciso).

Nos esboços, assim como na carta final a Vera Zasulitch e na Carta à Redação de “Otietchestviennie Zapiski”, Marx ressalta que a fatalidade histórica da expropriação camponesa está restrita, em sua análise n’O Capital, à Europa ocidental. Por que? Porque a expropriação camponesa foi uma transformação de um tipo de propriedade privada noutro tipo de propriedade privada, e no caso da Rússia a mesma lógica não poderia ser aplicada, pois ainda não ocorrera, como aconteceu com a Marca alemã por exemplo, a transformação da propriedade comunal em propriedade privada. A situação era de transição. Tais indicações de Marx remetem às observações do professor Reinaldo Carcanholo em seu livro[1], onde ele aponta que a noção de definição é ausente no marxismo, pois as coisas estão em constante movimento, e também da sua colocação de que O Capital parte de uma estrutura geral e abstrata, exceto no seu último capítulo, que é concreto. Mas não de aplicação supra-histórica, como o próprio Marx aponta, e sim uma análise concreta de um caso concreto (o desenvolvimento do capitalismo na Europa ocidental).

A coexistência de um modo arcaico com a produção capitalista possibilitava ao povo russo seguir um caminho diferente, sem passar pelos “forcados caudinos” do capitalismo. Marx sugere que a comuna agrária pode seguir dois rumos: o qual prevaleceria os elementos da propriedade privada, ou o que predominaria os elementos comunais, “tudo depende do ambiente histórico em que a comuna se encontra localizada”.  Tal sugestão está alinhada com a noção de unidade dos contrários, ou seja, a concepção de que  um corpo qualquer é formado por contradições que estão constantemente interagindo até que uma tendência prevaleça, o que significa o fim da unidade contraditória, do próprio corpo. Essa é uma ideia chave da dialética, usada em outros momentos por Marx, como quando trata sobre o valor de troca e valor numa mercadoria. O meio histórico é a unidade, os múltiplos fatores são elementos dentro desse amálgama contraditório, que “puxam” para um lado ou outro e eventualmente rompem com a unidade, estabelecendo algo novo, superando o velho.

É importante notar também que nos rascunhos da sua carta-resposta, Marx admite a possibilidade da revolução russa servir como alavanca de regeneração social da Rússia, se “as influências deletérias que a assaltam de todos os lados e então assegurar-lhe as condições normais de um desenvolvimento espontâneo”. Tal afirmação é um rompimento com a noção anterior de que a Revolução tomaria lugar primeiro em territórios europeus, que estava assentada na observação das contradições daqueles países, notadamente no período da crise, onde uma revolução parecia iminente.

Percebe-se, portanto, um movimento relevante no pensamento marxiano, que abre um novo leque de possibilidades ao mesmo tempo que combate concepções fatalistas da História, rejeitando a transformação da sua análise histórica numa filosofia da história. O que também implica na rejeição da ideia de uma História teleológica, mecânica, significando que o caminho para o socialismo não está assegurado (?). Também é possível notar a validez desta concepção quando analisamos a questão da regressão do socialismo ao capitalismo, questão que, segundo a crítica chinesa (e o desenrolar da história), é uma possibilidade, e não está de forma alguma garantida.


REFERÊNCIAS:

BOITO JR. Armando. O lugar da política na teoria marxista da história.  In: Crítica Marxista n°19. São Paulo: Editora Revan, 2004.

CARCANHOLO, Reinaldo A (org). Capital: Essência e Aparência. Volume I. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2011.

COSTA NETO, Pedro Leão da. Marx Tardio: notas introdutórias. In: Crítica Marxista n°17. São Paulo: Editora Revan, 2003.

MARX, Karl. Luta de Classes na Rússia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

SHANIN, Teodor (org). Marx tardio e a via russa: Marx e as periferias do capitalismo. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2017.

[1] CARCANHOLO, Reinaldo A (org). Capital: Essência e Aparência. Volume I. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2011.

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