Materialismo ou Kantianismo

Por Georgi Plekhanov, via Marxists.org, traduzido por Arthur H. R. Zullo

Nota do Editor de Moscou: ‘Após a publicação do artigo de Plekhanov “Conrad Schmidt Versus Karl Marx e Frederick Engels”, Schmidt imprimiu seu “Some Remarks on the Last Article by Plekhanov in Neue Zeit“, Neue Zeit, nº 11, 1898. Plekhanov ficou indignado com os ataques de Schmidt contra o marxismo e o materialismo, que revelaram tamanha ignorância, e com seu raciocínio neo-kantiano, então ele fez uma resposta em seu artigo “Materialism or Kantianism” que foi publicado no Neue Zeit em fevereiro de 1899. A correspondência de Plekhanov com Karl Kautsky, que está em vigor, mostra o esforço deste último em diminuir a agudeza dos argumentos de Plekhanov e seu desejo de não ofender Conrad Schmidt, não dando a Plekhanov mais espaço no Neue Zeit do que a Conrad Schmidt. O artigo foi publicado em russo em 1906, na coleção de obras de Plekhanov A Critique of Our Critics’.


Was für eine Philosophie man wählt, hängt davon ab, was für ein Mensch man ist. – Johann Gottlieb Fichte [1]

I

O leitor deve se lembrar que Eduard Bernstein concedeu ao Doutor Conrad Schmidt a fácil ‘contudo pouco agradável tarefa’ de revelar minhas contradições e refutar minhas falsas conclusões filosóficas. Conrad Schmidt tentou lidar com esta tarefa na edição nº 10 de Neue Zeit (1898). Vamos ver se seus esforços foram de alguma forma bem-sucedidos.

O artigo de Conrad Schmidt se divide em três seções: uma introdução bastante irônica, uma conclusão colérica, e a parte principal. Hei de começar do começo, isto é, pela introdução irônica.

Meu oponente assumiu uma postura de surpresa, declarando que não consegue entender porque retomei seus artigos, o último dos quais publicado há mais de um ano. Contudo, é completamente fácil de entender.

Eu li seus artigos logo quando surgiam, achando-os extraordinariamente fracos, e decidi que eles não poderiam exercer a mínima influência. É por isso que eu não tinha o menor desejo naquele momento de entrar numa polêmica com o autor. Afinal, são tantos os artigos ruins que aparecem, os quais refutar não vale a pena. Mas na primavera passada, Herr[1] Eduard Bernstein anunciou urbi et orbi [2] que os débeis artigos de Conrad Schmidt lhe deram um impetus imediato. Isso me fez perceber a erroneidade de minha prévia opinião a respeito do possível impacto que os artigos em questão poderiam ter, e vi que refutá-los não seria trabalho perdido. Sujeitar Conrad Schmidt a crítica significa, ao mesmo tempo, ter noção da força moral de Herr Eduard Bernstein que, como é de conhecimento geral, está determinado a revisar a teoria Marxista. Guiado por tais considerações, escrevi um artigo intitulado ‘Conrad Schmidt Versus Karl Marx and Frederick Engels’. [3] Consequentemente, esse artigo não carece tanto de interesse como meu oponente assevera

E agora hei de tratar da seção principal do artigo do estimado Doutor.

A melhor refutação do kantianismo, segundo Engels, provém de nossas atividades práticas diárias, e especialmente pela indústria. “A prova do pudim está no comer”, disse ele [4]. Conrad Schmidt descobriu, não só que o raciocínio de Engels é fraco mas – o que é bem pior – que ele foge de qualquer consideração sobre o assunto. Em meu artigo, eu me manifestei contra essa opinião, e mostrei que Conrad Schmidt havia sido incapaz de digerir o pudim de Engels. Eu não tinha a menor intenção de agradar meu oponente, logo não me surpreende que nem em forma nem em conteúdo meu artigo teve a sua aprovação. Quanto à forma, devo tratar dela ao final do presente artigo, e me debruçarei sobre seu conteúdo imediatamente.

Quando Marx e Engels disseram que as atividades práticas diárias das pessoas fornecem a melhor refutação do kantianismo, eles estavam enfatizando a estranha contradição que subjaz à doutrina kantiana. Essa contradição consiste, por um lado, em Kant considerar uma coisa-em-si-mesma a causa de nossas representações, enquanto, por outro, ele considera que a categoria de causa não pode ser aplicada a ela. Ao revelar tal contradição, eu escrevi, aliás, o seguinte:

O que é um fenômeno? É uma condição da nossa consciência evocada pelo efeito das coisas-em-si sobre nós. É o que Kant diz. A partir desta definição, antecipar dado fenômeno significa antecipar o efeito que uma coisa-em-si terá em nós. É possível que agora se pergunte se podemos antecipar certos fenômenos. A resposta é: é claro, nós podemos. Isso é garantido pela ciência e tecnologia. Isto, contudo, só pode significar que podemos antecipar algum efeito que as coisas-em-si podem gerar em nós. Se podemos antecipar algum efeito das coisas citadas, isso então significa que estamos cientes de algumas de suas propriedades. Logo, se estamos cientes de algumas de suas propriedades não temos o direito de chamá-las de incognoscíveis. Este “sofisma” de Kant cai por terra, despedaçado pela lógica de sua própria doutrina. Era isso que Engels queria dizer com seu “pudim”. Sua prova é tão clara e irrefutável quanto a de um teorema matemático. [5]

Antes de mais nada, o Dr. Conrad Schmidt tentou refutar esta passagem em meu artigo.

“Se isso fosse verdade”, ele afirma com a delicada ironia que permeia seu artigo, “as coisas estariam ruins na irrefutabilidade da prova matemática”. Ele continua a me repreender por uma confusão de noções inadmissível. “O que são essas coisas que agem sobre nós, e assim nos permitem aprender algumas de suas propriedades?”, pergunta ele. “São coisas materialmente determinadas no tempo, e no espaço, ou seja, as definições e propriedades fundamentais de tais coisas são elas mesmas de um caráter puramente fenomenalista”. Já que é assim, é perfeitamente natural que nosso erudito Doutor considere com desprezo tanto o pudim de Engels quanto as conclusões que baseei nesse pudim:

Consequentemente, se “a invenção de Kant é despedaçada pela lógica de sua própria doutrina” – e vamos pensar assim pelo menos até que nos sejam fornecidas outras provas – é evidentemente porque uma não-lógica desconhecida é trazida para essa lógica por meio de um jogo de palavras (“coisa” e “coisa-em-si”).

Que desprezo, e que conclusão aniquiladora! Os materialistas (Marx, Engels e o humilde mortal que está escrevendo estas linhas) estão brincando com as palavras e estão trazendo sua própria não-lógica para a lógica do kantianismo. Isto pode ser evidentemente explicado pelos materialistas – na sua capacidade de dogmáticos e ‘metafísicos’ – não possuindo as faculdades necessárias para compreender a doutrina de Kant. Um ‘pensador crítico’ jamais, jamais diria o que nós, pobres ‘dogmáticos’ materialistas, ousamos dizer.

Mas… mas você tem certeza do que está dizendo, estimado oponente? Consideremos a questão que nos interessa, à luz da história da filosofia.

Já em 1787, Friedrich Heinrich Jacobi reprovou Kant, no suplemento de seu diálogo ‘Idealismus und Realismus’, com a contradição a que me refiro. Aqui está o que ele escreveu sobre o assunto:

Pergunto como se pode combinar, primeiro, uma suposição de objetos que produzem impressões em nossos sentidos e assim dão origem a representações, e, segundo, um postulado que procura destruir qualquer fundamento para essa suposição? Se levarmos em consideração… que o espaço e todas as coisas no espaço, de acordo com o sistema kantiano, não existem em lugar algum, exceto em nós mesmos; que todas as mudanças e até mesmo mudanças em nossa própria condição interna… não são nada além de formas de nossa representação, e não são indicativas de nenhuma mudança ou processos reais objetivos; que tais mudanças não são indicativas da externa nem da interna sequência dos fenômenos; se levarmos em consideração que todas as leis fundamentais da mente são meramente as condições subjetivas que são as leis de nosso pensamento, não da Natureza como tal… se ponderarmos profundamente sobre todas essas proposições, então somos obrigados a perguntar: é possível, lado a lado com essas proposições, assumir a existência de objetos que produzem impressões em nossos sentidos, e assim dão origem a representações? [6]

O que você vê aqui, Herr Doutor Schmidt, é exatamente aquela ‘não-lógica’ que tanto o desagradou nos textos dos materialistas. Isso o surpreende? Tenha um pouco de paciência comigo: você ouvirá coisas que são ainda mais surpreendentes.

Como já observei, o diálogo ‘Idealismus und Realismus’ foi lançado já em 1787. Em 1792, Gottlob Ernst Schulze, que era então professor em Helmstedt, provou, em seu livro Änesidemus, que Kant e seu aluno Reinhold não se deram conta das conclusões que, logicamente, decorriam de sua doutrina:

Uma coisa-em-si [ele escreveu] é considerada como uma condição necessária de experiência, mas, ao mesmo tempo, é supostamente bem desconhecida. Mas se assim é, não podemos saber se as coisas-em-si existem na realidade e se podem ser a causa de alguma coisa. Portanto, não temos base para considerá-las como condições de experiência. Além disso, se assumirmos, juntamente com Kant, que as categorias de causa e efeito são aplicáveis apenas a objetos de experiência, então não se pode sustentar que a ação das coisas que existem fora de nossas representações produz o conteúdo destas últimas [etc – GP]. [7]

Novamente a mesma ‘não-lógica’! O autor de Änesidemus pensa – assim como eu hoje – que, segundo Kant, uma coisa-em-si é a causa de nossas representações. Ambos temos um e o mesmo ponto de partida, a diferença é que GE Schulze faz uso da inconsistência de Kant para chegar a conclusões céticas enquanto minhas próprias conclusões são de caráter materialista. A distinção é sem dúvida grande, mas não nos interessa aqui, onde estamos falando apenas de uma compreensão da doutrina de Kant de uma coisa-em-si.

Não eram apenas Schulze e Jacobi que entendiam Kant desta forma na época.

Cinco anos após a publicação de Änesidemus, Fichte escreveu que o filósofo de Königsberg foi compreendido nesse sentido por todos os kantianos… com exceção de Beck. Fichte continuou a repreender os popularizadores de Kant por essa mesma contradição na qual Engels baseou sua refutação da filosofia crítica. ‘Seu globo repousa sobre um elefante, e o elefante está sobre o globo. Sua coisa-em-si, que é um mero pensamento, deve agir sobre o sujeito’. [8] Fichte estava firmemente convencido de que o ‘kantianismo dos kantianos’, que ele considerava como nada mais do que uma mistura ousada do mais grosseiro dogmatismo e do mais categórico idealismo, não poderia ter sido o próprio kantianismo de Kant. Ele afirmou que o verdadeiro significado do kantianismo estava expresso no Wissenschaftslehre[2]. Você sabe o que aconteceu depois disso, Herr Doutor?

Em sua conhecida Erklärung in Beziehung auf FichtesWissenschaftslehre’, Kant não correspondeu de modo algum às expectativas do grande idealista. Ele escreveu (em 1799) que considerava o “Wissenschaftslehre” de Fichte um sistema totalmente infundado, e rejeitou qualquer solidariedade com essa filosofia. Na mesma Erklärung, Kant disse que sua Crítica da Razão Pura deveria ser entendida literalmente (nach dem Buchstaben zu verstehen[3]), e citou o provérbio italiano: ‘O céu nos salve de nossos amigos; nós mesmos enfrentaremos nossos inimigos’. Em uma carta a Tieftrunk que ele escreveu na época, Kant expressou seu pensamento ainda mais claramente. A falta de tempo o impedira de ler completamente o Wissenschaftslehre de Fichte, mas ele conseguiu ler uma resenha do livro ‘escrito’, acrescentou Kant, ‘com muito entusiasmo para Herr Fichte’, e descobriu que a filosofia deste último se assemelhava a um espectro. No momento em que você pensa ter sido capaz de colocar suas mãos sobre ele, você descobre que não agarrou nada além de seu próprio eu, com esse eu não possuindo nada, exceto as mãos estendidas para a captura. [9]

Assim, a questão foi resolvida de uma vez por todas e sem ambiguidade. Kant mostrou que o ‘kantianismo dos kantianos’ coincidia com seu próprio ‘kantianismo’. Isto era claro, mas não livrou o kantianismo da contradição indicada por Jacobi, Schulze e Fichte, e criticada por eles. Pelo contrário, a explicação dada por Kant em 1799 confirmou a existência dessa contradição.

Conrad Schmidt acha que minha compreensão da doutrina de Kant não se assemelha ao modo como é entendida por todos os historiadores da filosofia. Mesmo que assim fosse, isso não me perturbaria em nada. Os fatos históricos indiscutíveis que citei acima comprovam plenamente a exatidão de minha compreensão de Kant. Se os historiadores da filosofia desaprovassem esse entendimento, eu teria todo o direito de dizer: tanto pior para os historiadores da filosofia. Mas o Doutor Schmidt está tão equivocado a este respeito quanto em tudo, por todo o seu artigo.

De fato, ouça o que foi dito sobre este assunto por Friedrich Ueberweg, por exemplo. Na opinião deste historiador da filosofia, uma das contradições de Kant é que ‘as coisas-em-si por um lado, devem nos afetar, o que envolve tempo e causalidade; por outro lado, Kant reconhece o tempo e a causalidade como formas a priori apenas dentro do mundo dos fenômenos, mas não além dele’. [10]

Eu não disse a mesma coisa?

Agora vejamos o que Eduard Zeller tem a dizer:

Devemos é claro [ele escreve] assumir que uma realidade distinta de nosso sujeito corresponde às nossas sensações. Kant tenta mostrar isso na segunda edição de sua Crítica da Razão Pura, em sua luta contra o idealismo de Berkeley.

Eduard Zeller não está satisfeito com os argumentos de Kant contra Berkeley, mas isso não o impede de compreender o verdadeiro significado da doutrina kantiana, e dizer: ‘Kant sempre afirmou que nossas sensações não são meramente um produto do sujeito pensante, mas se referem a coisas que existem independentemente de nossa representação’. [11] Em suas críticas à filosofia de Kant, Zeller, aliás, diz o seguinte:

Se ele [Kant – GP] aceitou o conceito de causalidade como uma categoria de nosso intelecto, uma categoria que, como tal, é aplicável apenas a fenômenos, ele não deveria tê-lo aplicado à coisa-em-si; em outras palavras, ele não deveria ter considerado a coisa-em-si como a causa de nossas representações. [12]

Aqui vemos o mesmo entendimento de Kant que Engels tinha e que eu tenho. Se o Doutor Conrad Schmidt tivesse aprendido, ele, naturalmente, nunca teria declarado que isso foi contradito por todos os historiadores da filosofia.

Erdmann, também, para quem uma coisa-em-si era apenas um conceito final, foi obrigado a reconhecer que a coisa-em-si é uma “condição” dos fenômenos que é “independente de nós“. Mas se essa “coisa-em-si” é uma condição de um fenômeno, então este último é condicionado por ela, e temos novamente a contradição que gerou tantas discussões por entendidos ao longo do século XIX, uma contradição que só a mente profundamente perspicaz de nosso doutor irrefragabilis poderia não ter percebido.

Estou, é claro, bem ciente de que alguns historiadores da filosofia transformam o kantianismo em idealismo puro e simples. Mas alguns não significam todos, em primeiro lugar; em segundo lugar, se o Doutor Schmidt está de acordo com esses historiadores, ele deveria tentar nos provar que eles estão certos. Ele escolheu um caminho mais fácil, limitando-se a chamar a interpretação do kantianismo de Marx e Engels de uma invenção absurda de ignorantes.

Vimos que, segundo Conrad Schmidt, não são as coisas-em-si que nos afetam, mas as coisas que estão determinadas no tempo e no espaço. Eu não entraria em conflito se o meu oponente dissesse que tal é o verdadeiro significado de sua própria filosofia. Entretanto, ele afirma que tal é o significado da filosofia de Kant, e isso é algo a que devo objetar enfaticamente.

Eu pediria a Conrad Schmidt para abrir a Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft e ler, na segunda seção principal, a segunda nota do quarto teorema. Nesta passagem, Kant expõe a visão de um certo geômetra, a qual ele compartilha plenamente; ela consiste no seguinte:

O espaço não é de forma alguma uma propriedade inerente a qualquer coisa, fora de nós; é meramente a forma subjetiva de nossa percepção sensorial, uma forma em que os objetos de nossos sentidos externos nos aparecem; não conhecemos esses objetos como eles são em si mesmos, mas chamamos sua aparência de matéria… [13]

O que é referido aqui – coisas-em-si, ou coisas determinadas no espaço e no tempo? Obviamente, as coisas-em-si. E o que diz nosso Kant sobre essas coisas? Ele diz que não sabemos o que elas são em si mesmas, e que elas nos aparecem apenas na forma subjetiva do espaço. O que é necessário para que elas apareçam? Elas devem afetar nossos sentidos. “O efeito de um objeto sobre a faculdade da representação, na medida em que somos afetados pelo referido objeto, é a sensação”. [14] Conrad Schmidt pode novamente tentar resgatar a posição que ocupa e nos convencer de que Kant está falando aqui de coisas que estão determinadas no espaço e no tempo, isto é, fenômenos, que, como declarado na Crítica da Razão Pura, ‘existem, não por si mesmos, mas somente em nós‘. Para impedir todas essas tentativas, citarei outra passagem da Crítica da Razão Pura, que diz ‘Porque temos que lidar apenas com nossas representações; o que as coisas-em-si são (independentemente das representações através das quais elas nos afetam) é algo exterior à esfera de nossa cognição’. [15]

Isto, penso eu, é suficientemente claro: as coisas-em-si nos afetam através das representações a que elas dão origem.

Conrad Schmidt fala, em seu artigo, de “mal-entendidos cômicos”. Ele está perfeitamente certo, só que esqueceu de acrescentar que todos esses mal-entendidos são de sua própria autoria.

Conrad Schmidt nos assegura que a passagem que citei da Prolegomena só confirma minha proposição à primeira vista, e somente porque foi “arrancada do contexto geral”. Isso não é verdade, e deixo ao leitor a tarefa de julgar por si mesmo:

‘As coisas são dadas como existentes fora de nós, mas não sabemos o que elas são em si mesmas’… A que coisas isso se refere? Coisas-em-si. Isso é claro, mas vejamos o que vem a seguir: ‘Mas conhecemos apenas suas aparências’. Aparências de quê? De coisas já determinadas no espaço, no tempo e assim por diante, ou de coisas-em-si? Que pergunta estranha. Quem não verá que Kant está falando aqui das coisas-em-si? Mas vamos prosseguir: ‘Estas são representações que são causadas pelo efeito das coisas sobre nós’. Que coisas provocam representações em nós? Coisas-em-si, das quais não podemos saber nada. Mas de que forma estas coisas evocam representações em nós? ‘A nossa percepção sensorial’. A conclusão é: as coisas-em-si-mesmas afetam nossa perceptividade sensorial. Quantas capelos de doutorado precisam ser desgastados para que alguém se torne tão incapaz de entender ‘coisas’ que são tão claras ‘em si mesmas’?

Quanto à ‘ligação’ entre a passagem que citei e o contexto geral, eu pediria ao leitor que julgasse por si mesmo depois de ler o primeiro parágrafo do Prolegomena, particularmente a segunda nota desse parágrafo. Além disso, chamaria a atenção do leitor para o parágrafo 36 do mesmo livro, onde se lê o seguinte:

Em primeiro lugar: como é a Natureza no sentido material, ou seja, na contemplação, como a essência dos fenômenos – como são o espaço, o tempo e o que preenche a ambos; como o objeto da percepção é possível? A resposta é: graças a nossos sentidos que, em conformidade com sua natureza específica, recebem impressões de objetos que são desconhecidos por si mesmos e que são bastante distintos desses fenômenos.

Agora diga-nos, Doutor Schmidt, que objetos afetam nossos sentidos?

Meu oponente afirma que, em meus artigos, eu o trato quase como se ele fosse um aluno; falando por mim mesmo, não tenho o menor desejo de ser seu professor, mas não posso deixar de lhe dar alguns bons conselhos. Mein theurer Freund, ich rath’ euch drum zuerst Collegium logicum. [16]

Mas voltemos a Kant:

Sua suposição da existência da coisa-em-si – embora a tenha coberto com várias ressalvas – baseia-se numa dedução da lei da causalidade, ou seja, na contemplação empírica, ou, mais precisamente, nas sensações em nossos órgãos de sentido de que ela deriva, tendo que possuir uma causa externa. Mas, segundo sua própria e bastante correta descoberta, a lei da causalidade é conhecida a priori, ou seja, é uma função de nosso intelecto, e consequentemente é de origem subjetiva.

A ‘não-lógica’ nestas linhas pertence a Arthur Schopenhauer; [17] essa ‘não-lógica’ é tão forte que a fraca ‘lógica’ de nosso Doutor se destrói contra ela como uma garrafa contra uma pedra. O que quer que o Doutor Conrad Schmidt e seus semelhantes possam dizer, não pode haver dúvida de que uma estranha contradição subjaz ao sistema kantiano. Mas uma contradição não pode servir de fundamento; ela é apenas indicativa de falta de fundamento. Consequentemente, a contradição deve ser eliminada. Como isso deve ser feito?

Para isso, existem dois caminhos: um deles consiste no desenvolvimento em direção ao idealismo subjetivo, o outro no desenvolvimento em direção ao materialismo. Qual é o caminho certo? Esse é o cerne da questão.

De acordo com o idealismo subjetivo – por exemplo, o de Fichte – uma coisa-em-si-mesma está localizada dentro do eu (das im ich gesetzte[4]).

Consequentemente, temos que lidar apenas com a consciência. É o que diz Fichte frequentemente e sem ambiguidade: qualquer ser, o do Eu, assim como o do não-Eu, é apenas uma certa modificação da consciência. Mas se assim é, se “o ser genuíno e real é o do espírito” como é afirmado por Fichte, então chegamos a conclusões estranhas e inesperadas. De fato, serei obrigado a reconhecer, nesse caso, que todas as pessoas que me parecem existir fora do meu Eu são apenas modificações de minha consciência. Heine uma vez escreveu sobre várias senhoras de Berlim que indignadamente perguntaram se o autor de Wissenschaftslehre reconhecia pelo menos a existência de sua própria esposa. Esta brincadeira, que contém uma reflexão válida, revela o calcanhar de Aquiles do idealismo subjetivo. De qualquer forma, o próprio Fichte sentiu isto e se esforçou, tanto quanto pôde, para eliminar este ponto fraco em seu sistema. Ele explicou que seu Eu não era um indivíduo, mas um Eu Mundo, um Eu Absoluto:

É claro que meu Eu Absoluto não é um indivíduo [ele escreveu para Jacobi] no sentido em que fui interpretado por cortesãos ofendidos e filósofos importunados, de modo a me imputar a vergonhosa doutrina do egoísmo prático. Mas o indivíduo deve ser deduzido do Eu Absoluto. Minha Wissenschaftslehre tratará disso na doutrina do direito natural.

No entanto, encontramos, em sua lei natural, apenas argumentos como os seguintes: ‘Um ser racional não pode se postar para possuir consciência de si como tal, sem se considerar um indivíduo entre outros seres racionais existentes fora dele’. Esta é uma ‘dedução’ muito fraca. Toda a força da prova repousa sobre a ênfase colocada na palavra indivíduo. Um ser racional não pode se ver como tal sem estar consciente ao mesmo tempo do não-Eu em geral, ou seja, das pessoas e das coisas. Isto é uma prova da existência de coisas fora da consciência deste ser racional? Não, não é. Consequentemente, também não é uma prova da existência de outros indivíduos.

Ao invés de ‘deduzir’ (deduzieren) a existência de pessoas, Fichte faz da existência delas um postulado moral. Mas isso significa contornar o obstáculo, não superá-lo. Até que o tenhamos superado, não nos livramos dos absurdos a que qualquer sistema filosófico deve levar, o que nega a existência de coisas fora de nós e seu efeito sobre nossos sentidos externos. Se a existência de outros indivíduos está apenas no espírito, então minha mãe é meramente um fenômeno e, como fenômeno, ela existe apenas em mim. [18] Consequentemente, dizer que eu nasci de mulher é um absurdo. É com a mesma pouca confiança que posso dizer que morrerei mais cedo ou mais tarde. Sei apenas que outras pessoas morrem, mas como elas não passam de representações, não tenho o direito de afirmar que sou tão mortal quanto elas; neste caso, uma conclusão lógica com base na analogia não é válida.

Pode-se facilmente perceber o labirinto desconcertante de absurdos em que vamos entrar se começarmos a considerar e estudar a história da humanidade e do nosso universo do ponto de vista do idealismo.

Assim, o desenvolvimento do kantianismo em direção ao idealismo, embora elimine a contradição subjacente ao sistema kantiano, leva a absurdos óbvios e ridículos.

II

Vejamos agora a que nos levará o desenvolvimento do kantianismo em direção ao materialismo. Mas, em primeiro lugar, devemos chegar a um acordo sobre a terminologia. Que tipo de materialismo temos em mente? Será o materialismo que existiu na mente dos filisteus, que são notados muito mais pelo temor a Deus do que pelo talento filosófico? Ou talvez a referência seja ao materialismo genuíno, ou seja, aquele materialismo cujos fundamentos estão contidos nos escritos dos principais materialistas? O materialismo tem sido difamado não menos do que o socialismo. É por isso que, quando ouvimos argumentos sobre o materialismo, devemos às vezes nos perguntar se esta doutrina não está sendo distorcida.

Meu estimado oponente está entre aqueles que se lançam a refutar o materialismo sem se dar ao trabalho de fazer um estudo minucioso sobre ele e tentar entendê-lo. Ele diz, por exemplo: “Os materialistas deveriam afirmar que esta essência [ou seja, a essência que corresponde aos fenômenos – GP] é idêntica aos fenômenos”. Isto não é apenas um erro, mas um erro que é de fato delicioso na forma.

Nós, materialistas, devemos afirmar que a essência das coisas é idêntica aos fenômenos! Por que devemos fazer uma afirmação tão absurda na forma quanto em sua ‘essência’? Talvez devêssemos fazer isso para facilitar para Herr Conrad Schmidt a ‘fácil tarefa’ de nos refutar? Os materialistas são pessoas gentis, sem dúvida, mas exigir-lhes tais cortesias excessivas significa ir longe demais.

O Herr Doutor continua dizendo que os materialistas aceitam uma realidade existente como uma realidade totalmente independente da consciência humana in sich e an sich[5] (?), isto é, aquelas definições mais gerais que são necessariamente percebidas por nossos sentidos, ou, mais corretamente, por nossa mente processando as impressões recebidas por nossos sentidos como base dos fenômenos sobre nós. Acima de tudo, o espaço e o tempo, e a matéria que está em movimento neles, são vistos pelos materialistas como uma realidade que é totalmente independente das propriedades da consciência humana, e existe em si mesma. Conrad Schmidt prossegue dizendo:

Consequentemente, o materialismo é uma filosofia de identidade porque mesmo onde ele observa a… distinção entre nossas representações e o que existe em si, emergindo assim dos confins do realismo ingênuo, ele considera possível conhecer… a coisa-em-si através de uma análise dos fenômenos.

É verdade? De fato, não é. Para entender isso, vamos ver o que Holbach tem a dizer:

Se de todas as substâncias que atingem nossos sentidos não sabemos nada além dos efeitos que elas produzem em nós, após os quais lhes atribuímos certas qualidades, então pelo menos essas qualidades são algo definido e dão origem a idéias distintas em nós. Por mais superficial que seja o conhecimento que nossos sentidos nos proporcionam, é o único tipo de conhecimento que podemos ter; constituídos como somos, nos vemos obrigados a descansar satisfeitos com tal conhecimento… [19]

Peço ao leitor que leia estas linhas com particular atenção e que entenda seu conteúdo. Vale a pena porque a passagem fornece uma idéia extraordinariamente clara do materialismo francês do século XVIII como o ápice do desenvolvimento da filosofia materialista pré-marxista. [20]

Segundo Holbach, ou seja, os autores do Système de la Nature, que Holbach não escreveu sozinho, há coisas fora de nós e independentes de nós, coisas que têm uma existência real e não meramente “espiritual”. São coisas cuja natureza nos é conhecida e que nos afetam, produzindo impressões em nossos sentidos; de acordo com as impressões produzidas em nós por sua ação, atribuímos certas propriedades às coisas. Essas impressões são o único conhecimento (conhecimento superficial e muito limitado) que podemos ter das coisas-em-si:

Não conhecemos a essência de nenhum être[6], se pela palavra essência se entende o que constitui sua natureza; conhecemos a matéria apenas pelas sensações e pelas idéias que ela nos dá. Só então formamos juízos corretos ou errados. [21]

Isso significa afirmar que a essência das coisas e dos fenômenos é “idêntica“? Obviamente, não. Por que então nosso doutor irrefragabilis atribui essa asserção aos materialistas? Por que, ele acha que eles “devem” obrigatoriamente defender essa visão?

Na medida em que [ele prossegue dizendo] o materialismo é entendido apenas como um esforço para encontrar em todos os lugares o elo causal dos fenômenos naturais e estabelecer a dependência dos processos espirituais do material, então tal ‘materialismo’ não é de forma alguma contrário à filosofia teórica de Kant: ao contrário, ele persegue um objetivo que é bastante compreensível e até mesmo necessário do ponto de vista dessa filosofia. A oposição entre eles só se revela quando o chamado “materialismo” se torna um materialismo consistente, isto é, metafísico, ou, mais corretamente, metafenomenalista; quando pronuncia os elementos do mundo dos fenômenos como “coisas-em-si”.

Consequentemente, o materialismo ou é fenomenalista – e então não se afasta de forma alguma da filosofia teórica de Kant – ou então é metafenomenalista – e nesse caso nos leva à metafísica, já que declara que os elementos dos fenômenos são coisas-em-si. Além da questão de saber se Conrad Schmidt se expressou bem, podemos dizer que o seu ou-ou é uma mistura de todas as vantagens possíveis, com a única exceção de que não está de acordo com a realidade.

O kantianismo também é metafenomenalista no sentido de que reconhece que as coisas-em-si nos afetam. É o fichteanismo que é uma filosofia genuinamente e puramente fenomenalista. Mas Kant travou uma luta contra a filosofia de Fichte. É evidente que o materialismo é uma doutrina metafenomenalista porque não questiona a existência de coisas fora de nossa consciência nem seu efeito sobre nós. Mas como, ao mesmo tempo, reconhece que só conhecemos as coisas-em-si graças às impressões causadas por seu efeito sobre nós, não tem a necessidade nem a possibilidade lógica de considerar os fenômenos como coisas-em-si. Neste sentido, ela não se desvia de forma alguma do kantianismo, apesar de sua natureza metafenomenalista. A diferença entre o materialismo e o kantianismo só vem à tona posteriormente. Ao considerar as coisas-em-si as causas dos fenômenos, Kant nos asseguraria que a categoria de causalidade é totalmente inaplicável às coisas-em-si. Por outro lado, o materialismo, que também considera as coisas-em-si as causas dos fenômenos, não cai em contradição consigo mesmo. Simples assim. Se, com base nesta distinção, afirmarmos que o materialismo é uma doutrina metafísica, teremos primeiro que reconhecer que a essência da filosofia “crítica” reside em sua contradição interior.

Mas então, o que é metafísica? Qual é o seu objeto de estudo? O objeto de estudo da metafísica é o Absoluto. Ele deseja ser a ciência do Absoluto, o incondicionado. Mas será que o materialismo se preocupa com o Absoluto? Não, não o faz; seu objeto de estudo é a Natureza e a história humana:

As pessoas sempre erram quando sacrificam a experiência em prol de sistemas filosóficos nascidos da fantasia [diz Holbach]. O homem é uma obra da Natureza; ele existe na Natureza; ele está sujeito às suas leis; ele não pode emergir dela nem mesmo em pensamento. É em vão que seu espírito deseja escapar das fronteiras do mundo visível; ele é sempre forçado a voltar a esse mundo.

Estas linhas, que são introdutórias no Système de la Nature, do qual citei tão frequentemente, compreendem o “cânone” do materialismo, e é bastante incompreensível como se pode chamar de metafísica uma doutrina que nunca se separou daquele “cânone”.

Mas o que o materialista entende pela palavra “Natureza“? É um conceito metafísico para ele? Veremos agora se é esse o caso.

O materialista entende por Natureza a soma das coisas que compõem o objeto de nossa percepção sensorial. A Natureza é o mundo sensorial em toda a sua totalidade. Era desse mundo sensorial que os filósofos franceses do século XVIII falavam. A este conceito de Natureza eles estavam constantemente contrapondo ‘fantasmas’, ou seja, seres imaginários e sobrenaturais:

Está sendo repetido incessantemente para nós [lemos no Système de la Nature] que nossos sentidos nos mostram apenas o exterior das coisas… reconhece-se, mas nossos sentidos não nos mostram nem mesmo o exterior da Divindade que nossos teólogos definiram para nós, à qual eles conferiram atributos, e sobre a qual nunca deixaram de divergir, enquanto até hoje nunca chegaram a prova alguma de Sua existência… [22]

A mente humana tateia no escuro assim que emerge dos limites do mundo sensorial ou, o que é uma única e mesma coisa, dos limites da experiência. Nisto os materialistas estão em total acordo com Kant, porém os materialistas entendem a experiência de forma um pouco diferente do que o autor da Crítica da Razão Pura.

Segundo Kant, a Natureza é a existência (Dasein) das coisas na medida em que essa Dasein é determinada por leis gerais. Essas leis gerais (ou as leis puras da Natureza) são as leis de nossa mente. ‘A mente não tira suas leis (à priori) da Natureza; pelo contrário, ela dita suas próprias leis à Natureza’, nos explica Kant. Consequentemente, estas leis não têm qualquer significado objetivo; em outras palavras, elas são aplicáveis apenas aos fenômenos, não às coisas-em-si. Mas como os fenômenos existem somente em nós, é óbvio que a teoria kantiana da existência é, em última análise, de caráter bastante subjetivo, e não difere em nada da teoria idealista de Fichte. [23] Já vimos o labirinto de absurdos em que inevitavelmente se encontrará, quem leva essa teoria a sério e não tem medo de tirar todas as conclusões finais dela. E agora vamos analisar mais de perto a teoria materialista da experiência.

De acordo com essa teoria, a Natureza é, antes de tudo, a soma dos fenômenos. Mas como as coisas-em-si são a condição necessária dos fenômenos – em outras palavras, como os fenômenos são causados pelo efeito de um objeto sobre um sujeito – somos obrigados a reconhecer que as leis da Natureza não têm apenas um significado subjetivo, mas também um significado objetivo, ou seja, que as relações mútuas de idéias no sujeito correspondem – quando não se está em erro – às relações mútuas entre as coisas fora de alguém. Naturalmente, Conrad Schmidt dirá que esta é uma “filosofia de identidade” e que considera os “elementos dos fenômenos coisas-em-si”. Ele está errado. Para evitar que ele caia em maior erro, pedirei a meu oponente que relembre a figura geométrica com cuja ajuda Spencer tentou facilitar a seus leitores a compreensão do “realismo transformado”. Imaginemos um cilindro e um cubo. O cilindro é o sujeito, o cubo é o objeto. A sombra do cubo sobre o cilindro é uma representação. A sombra não se parece muito com o cubo, cujas linhas retas estão dobradas no cilindro, e cujas superfícies planas estão convexas. No entanto, qualquer mudança no cubo provocará uma mudança correspondente em sua sombra. Podemos supor que algo semelhante ocorre na formação das representações. As sensações causadas no sujeito pelo efeito de um objeto sobre ele são, ao contrário deste último, como são diferentemente do sujeito, mas a cada mudança no objeto ali corresponde uma mudança em seu efeito sobre o sujeito. Esta não é de forma alguma a filosofia grosseira e vulgar da identidade que Conrad Schmidt nos atribui. Esta teoria da experiência, que tem a Natureza como ponto de partida, nos permite evitar tanto as inconsistências do kantianismo quanto os absurdos do idealismo subjetivo.

Pode-se levantar que o “realismo transformado” de Herbert Spencer é uma coisa, e o materialismo é outra. A falta de espaço me impede de desenvolver aqui a principal distinção entre estas duas doutrinas. Tudo o que posso dizer neste artigo – aliás, o suficiente para o meu propósito – é o seguinte: A teoria do conhecimento de Spencer – dentro das fronteiras de  que estou fazendo uso dela aqui – é apenas um desenvolvimento adicional das idéias dos materialistas franceses do século XVIII. [24]

Sem ti não há eu‘ (‘ohne Du kein Ich‘), disse o velho FH Jacobi. De minha parte, direi: sem ti não há eu que esteja livre de certas dores de consciência muito fortes. Aqui está um exemplo convincente: se nenhum Herr Conrad Schmidt existisse como coisa-em-si; se ele fosse apenas um fenômeno, isto é, uma representação existente apenas em minha consciência, eu jamais me perdoaria por minha consciência ter gerado um doutor tão inábil no campo do pensamento filosófico. Mas se um verdadeiro Herr Conrad Schmidt corresponde à minha representação, então eu não sou responsável por seus equívocos lógicos; minha consciência está limpa, e isso é um bom negócio em nosso “vale de lágrimas”.

Nosso doutor irrefragabilis declara que ele não é kantiano, mas que é cético em relação a Kant. Mas nunca afirmei que ele possa se tornar um verdadeiro adepto de qualquer tipo de sistema filosófico; sempre disse que ele prefere um caldo de ecletismo. No entanto, seu ecletismo não o impediu de travar uma luta contra o materialismo, enquanto fazia uso de argumentos emprestados dos kantianos. Aliás, é assim que os ecléticos sempre se comportam: eles lutam com uma doutrina com a ajuda de argumentos emprestados de outra, aos quais contrapõem argumentos emprestados da primeira. No entanto, Herr Bernstein, a quem o miserável artigo do Doutor Schmidt deu um “impetus imediato” (pobre Herr Bernstein!) foi tão longe quanto Kant em seu retrocesso. É verdade, ele chegou a Kant apenas “até um certo ponto”. Mas os paroquianos sempre puxam ao padre, como diz o provérbio russo. O discípulo eclético “puxa” ao professor eclético. Em todo caso, é notável que os artigos de Conrad Schmidt façam com que alguns leitores se sintam inclinados a retornar a Kant, e não a qualquer outro filósofo.

Finalmente, passarei à conclusão altamente colérica do artigo de Herr Conrad Schmidt.

Afirmei que a burguesia está interessada em ressuscitar a filosofia de Kant porque espera que ela os ajude a aquietar o proletariado. É com sua habitual elegância de estilo que Conrad Schmidt me responde:

Independentemente da opinião que tenhamos sobre o intelecto da burguesia, eles não são tão estúpidos a ponto de abrigar “esperanças” tão absurdas. Que esquematismo sem limites; que falta de toda e qualquer crítica e qualquer atitude original e vívida em relação à realidade se esconde por trás de tais dispositivos de construção [etc., etc.].

Permita-me interromper o doutor enraivecido e fazer-lhe várias perguntas:

  1. A burguesia está interessada em ‘edificar’ o proletariado e combater o ateísmo, que está se espalhando cada vez mais nessa classe?
  2. Será que eles precisam de uma arma espiritual forte para essa ‘edificação’ e essa luta contra o ateísmo?
  1. O kantianismo não foi considerado uma arma mais adequada para esse fim, e não é considerado como tal até hoje? [25]

Conrad Schmidt está evidentemente muito pouco familiarizado com a história da filosofia. Caso contrário, estaria ciente de que o kantianismo foi aclamado, quando surgiu, como a melhor arma para a luta contra o materialismo e outras doutrinas “chocantes”. Carl Leonhard Reinhold – aquele primeiro vulgarizador do kantianismo – já via como um dos principais méritos desse sistema ‘obrigar os cientistas da natureza a abandonar suas infundadas reivindicações de conhecimento’. [26] Ele escreveu esse ateísmo, que agora está tão difundido:

… sob o disfarce de fatalismo, materialismo e espinozismo… é apresentado por Kant como um fantasma que ilude nossas mentes, com uma eficácia fora do alcance de nossos teólogos modernos, que se empenham em expor o Diabo; se ainda houver fatalistas, ou se eles aparecerem no devido tempo, serão pessoas que ignoraram ou não entenderam a Crítica da Razão Pura. [27]

Que estupidez! Não, acredite, não é a burguesia que é marcada, a este respeito, pela estupidez:

Se eu, como todos aqueles indiretamente atacados por Plekhanov, estava inclinado à filosofia de Kant na imitação da burguesia [diz Herr Schmidt], então é surpreendente que estejamos interessados precisamente em sua teoria do conhecimento, ou seja, naquela parte da filosofia de Kant que, de qualquer forma, não tem nada em comum com os interesses práticos da burguesia.

A isto responderei nas palavras de Reinhold, como citado acima: ou você ignorou a Crítica da Razão Pura, ou não conseguiu compreendê-la.

Kant, que, como se pode imaginar, tinha uma melhor compreensão de sua própria teoria do conhecimento do que Conrad Schmidt, diz o seguinte no Prefácio da segunda edição de sua Crítica da Razão Pura:

Assim, não posso sequer fazer a suposição de Deus, liberdade e imortalidade, como os interesses práticos de minha mente exigem, se não privar o raciocínio especulativo das suas pretensões a insights transcendentais…. Devo, portanto, abolir o conhecimento, para criar espaço para a crença.

Não, e novamente não! [28] A burguesia está longe de ser estúpida! Mais algumas palavras antes de concluir.

Conrad Schmidt me acusa de recorrer “às mais arbitrárias combinações de ideias para minar a credibilidade política daqueles que se permitem pensar de forma diferente de Plekhanov na esfera da filosofia”.

Isto está três vezes errado:

  1. Tudo o que foi dito acima mostrou de forma suficiente que as ‘combinações de ideias’ às quais ‘recorri’ não são de forma alguma ‘arbitrárias’.
  2. Em minha polêmica, sempre procurei a verdade e pouco me preocupei com a credibilidade política de qualquer pessoa. É de forma altamente ‘arbitrária’ que Conrad Schmidt interpretou o que ele leu de minha essência.
  3. Em meus artigos, que tanto irritaram nosso Herr Doutor, defendi, não o “ponto de vista de G Plekhanov”, mas o de Engels e Marx. A única coisa que G Plekhanov pode reivindicar e de fato o faz é uma compreensão correta desse ponto de vista. Eu defendo e continuarei sempre a defender esse ponto de vista com ardor e convicção. E se alguns leitores “derem de ombros” por eu ser tão ardente em uma polêmica que se preocupa com as questões mais importantes do conhecimento humano e, ao mesmo tempo, lidar com os interesses mais vitais da classe trabalhadora – na medida em que é muito prejudicial para essa classe alimentar-se do que Engels chamou de caldo de ecletismo do pobre – então eu darei os ombros na minha vez e direi: tanto pior para tais leitores.

Notas

As notas são de Plekhanov, exceto as dos editores de Moscou desta edição do trabalho, que são anotadas como “Editor”, ou MIA, as quais estão devidamente anotadas.

  1. “A filosofia que um homem escolhe depende do tipo de homem que ele é”. – Editor.
  1. Literalmente: “Para a Cidade de Roma e para o Mundo”. Originalmente usada para abrir proclamações romanas, posteriormente usadas em alocuções papais; aqui é usada ironicamente: ‘A todos e a vários’. [MIA]
  1. Ver Georgi Plekhanov, ‘Conrad Schmidt Versus Karl Marx e Frederick Engels’, Selected Philosophical Works, Volume 2 (Moscou, 1976), pp 379-97 – MIA.
  1. Estas palavras estão em inglês no original – Editor.
  2. Ver Georgi Plekhanov, ‘Conrad Schmidt Versus Karl Marx e Frederick Engels’, Selected Philosophical Works, Volume 2 (Moscou, 1976), p 381 – Editor.
  1. Jacobis Werke, Volume 2, p 308.

7 Como não consegui obter as obras de Schulze, estou citando a Geschichte der deutschen Philosophie de Zeller (Munique, 1873), pp 583-84.

  1. Zweite Einleitung in die Wissenschaftslehre“, que apareceu primeiro no Philosophischen Journal de 1797 e depois fez parte do Volume 1 do Works de Fichte.
  2. Kants Werke, Volume 10 (edição de von Hartenstein), pp 577-78.
  3. Grundriss der Geschichte der Philosophie, Parte 3 (Berlin, 1880), p 215.
  4. Geschichte der deutschen Philosophie, p 436.
  5. Ibid, p 514.
  1. Kants Werke, Volume 8, p 432.
  1. Kritik der reinen Vernunft, ‘Der transzendentalen Elementarlehre’, Parte 1, ‘Der transzendentalen Aesthetik’, Seção 1.
  1. Kritik der reinen Vernunft, ‘Elementarlehre’, Livro 2, Capítulo 2, Seção 3B, Segunda Analogia: Comprovação.
  2. Meu caro amigo, aconselho-o, portanto, antes de mais nada, a passar pela escola da lógica – Editor.
  3. Die Welt als Wille und Vorstellung, Volume 1 (Leipzig, 1873), p 516. É supérfluo acrescentar que eu vejo as “revelações” de Kant sob uma perspectiva diferente da de Schopenhauer.
  4. “Mas, como fenômenos, eles não podem existir de e por si mesmos, mas somente em nós”. (Kant)
  5. Système de la Nature, Parte 2 (London, 1781), p 127.
  6. A propósito, meus artigos anteriores continham citações de muitos materialistas, mostrando que Conrad Schmidt tem uma ideia totalmente falsa da “essência” da filosofia materialista. Em sua resposta, Conrad Schmidt chamou os materialistas que citei de “iluministas”. Isso é muito astuto, se não pedante, porque os leitores não familiarizados com a história da filosofia podem se perguntar por que o Sr. Plekhanov teria se referido aos iluministas quando a discussão era sobre os materialistas! Para tranquilizar tais leitores, devo acrescentar que eu estava citando Holbach, ou, mais precisamente, os autores do Système de la Nature, entre os quais estavam tanto Diderot quanto Helvétius. Quanto a Holbach, o Système de la Nature é frequentemente referido como um código do materialismo (ver Lange, History of Materialism, Volume 1 (Segunda Edição), p 361). Quanto a Helvétius, este Iluminista foi um dos mais talentosos e originais materialistas que já viveram. Quem não conhece estes dois Iluministas não está familiarizado com o estágio mais alto e mais notável do desenvolvimento do materialismo do século XVIII.
  1. Système de la Nature, Parte 2, pp 91-92. É interessante comparar esta passagem com o que Herbert Spencer tem a dizer: “Assim somos levados à conclusão de que aquilo de que somos conscientes como propriedades da matéria, mesmo até seu peso e resistência, não são senão estados subjetivos produzidos por agentes objetivos que são desconhecidos e incognoscíveis…” (The Principles of Psychology, Volume 1, Parte 2, Capítulo 3 [The Relativity of Feelings – Editor], § 86, [p 206 – Editor])
  2. Système de la Nature, Parte 2, p 109.
  3. “O sistema da experiência não é nada além de pensar acompanhado por um senso de necessidade”. (Fichtes Werke, Volume 1, p 428) É evidente que a teoria kantiana da experiência é subjetiva apenas na medida em que questiona a aplicabilidade das categorias às coisas-em-si-mesmas. Mas como as coisas-em-si são vistas por Kant como a causa de nossas percepções, essa teoria – como já repeti tantas vezes – apresenta uma contradição gritante.
  4. Em seu esforço para se dissociar da “filosofia vulgar da identidade” da matéria e do pensamento, Plekhanov se engana aqui, como em alguns outros lugares, quando afirma que as sensações são “bem diferentes” dos objetos que as causam; isto é uma concessão ao agnosticismo. Como resultado, Plekhanov foi acrítico em relação a Herbert Spencer, afirmando que este último tinha desenvolvido a teoria dos materialistas franceses, enquanto na realidade ele era um agnóstico e um adepto da religião – Editor.
  5. Obviamente a burguesia não tem necessidade de abordar o kantianismo diretamente com os trabalhadores. É suficiente para que essa filosofia se torne a moda, fornecendo assim a algumas pessoas o pretexto para espalhar entre a classe trabalhadora as conclusões finais que dela derivam.
  6. Briefe über die Kantische Philosophie, Volume 1 (Leipzig, 1790), p 114.
  7. Ibid, p 116.
  8. Deve-se ter em mente que o interesse pela “parte” prática da filosofia de Kant está cada vez mais ganhando vantagem sobre o interesse em sua parte teórica, em círculos interessados por essa filosofia.

[1] Senhor, cavalheiro (N. do Tradutor).

[2] Teoria, doutrina (N. do Tradutor).

[3] “Compreender segundo as letras” (N. do Tradutor).

[4] “O que é posto dentro de mim” (N. do Tradutor).

[5] Em si mesmo e por si mesmo (N. do Tradutor).

[6] Ser (N. do Tradutor).

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