Os usos da palavra “judeu” 

Por Alain Badiou, traduzido por Lucas Azevedo Maksud e Estevam Peixoto.

O texto abaixo consiste em um excerto da introdução de Circonstances 3: Portées du mot “juif”, uma coletânea publicada em 2005, na França, reunindo texto políticos de Alain Badiou relativos a questões como as da identidade judaica, do antissemitismo e do estatuto do Estado de Israel. Apesar de mudanças importantes terem ocorrido – tanto na Europa, quanto no resto do mundo – nesses últimos dezenove anos, como a ascensão da extrema direita e do próprio antissemitismo, é certo que as reflexões e críticas trazidas por Badiou aqui continuam atuais e potentes. 

“Como resultado, a solução legítima para o conflito no Oriente Médio não é a terrível constituição de dois estados cercados por arame farpado. A solução é a criação de uma Palestina democrática e secular, subtraída de todos os predicados […]”

Nas últimas décadas, a situação intelectual na França tem sido marcada por incansáveis discussões acerca do status que se deve conceder à palavra “judeu”.

Sem dúvidas, isso se deve à suspeita, baseada em alguns fatos incontestáveis e outros controversos, de “retorno” do antissemitismo. No entanto, em algum momento ele já desapareceu? Ou deveríamos pensar na questão de a natureza de suas formas, de seus critérios, de sua inscrição no discurso terem se alterado consideravelmente nos últimos trinta anos? Vamos recordar que no fim dos anos setenta, após o atentado contra a sinagoga da rua Copérnico, o primeiro-ministro, Raymond Barre, distinguiu, com toda tranquilidade, entre as vítimas judias que estavam presentes no culto e os “franceses inocentes” (sic) que estavam somente de passagem no momento. Além de distinguir benevolentemente os judeus dos franceses, o bom Raymond Barre pareceu querer dizer que um judeu, cegamente escolhido como alvo, devia ser, de alguma forma, culpado de algo. Foi dito que foi um deslize de linguagem. Em vez disso, essa notável análise revelou a subsistência de um subconsciente racialista vindo direto dos anos trinta. Hoje, no que diz respeito ao uso da palavra “judeu”, essa segurança para a discriminação seria inconcebível ao nível do Estado, o que só pode ser motivo de alegria. As calculadas provocações antissemitas e a falsa ingenuidade discriminatória, como o negacionismo da existência de câmaras de gás e do massacre dos judeus da Europa pelos nazistas, estão hoje restritas à extrema direita. E é verdade dizer que, se é inexato dizer que o antissemitismo desapareceu, é justo sustentar que suas condições de possibilidade foram transformadas, porque não está mais inscrito numa espécie de discurso natural, como o era na época de Raymond Barre. Nesse sentido, Le Pen é, na França, o guardião, um tanto cansado, do antissemitismo histórico que era aceito como opinião bem comum nos anos trinta. Em suma, a sensibilidade aos novos atos e inscrições antissemitas seria um componente essencial no diagnóstico de “retorno” do antissemitismo, de tal modo que esse retorno seria, em grande medida, apenas uma redução considerável e positiva no limiar da opinião pública, que não tolera mais esse tipo de provocação racialista.

Mais adiante, voltaremos à gênese do novo tipo de antissemitismo, articulada sob os conflitos no Oriente Médio e a presença em nosso país de vastas minorias de trabalhadores de origem africana e de religião muçulmana. Por enquanto, basta dizer que a existência desse tal antissemitismo não está em dúvida, e o zelo de alguns em negar sua existência, geralmente em nome da causa palestina ou das minorias trabalhadoras na França, é extremamente prejudicial. Sendo assim, não me parece também que a natureza dos dados quantitativos, amplamente disponíveis, devam suscitar um alerta geral completamente novo, entendido que, no que diz respeito a essas questões, a vigilância é um imperativo que não admite interrupção.

O que serve de ponto de partida para esta coleção, a razão de sua existência, não é a evidência dos antissemitismos antigos e novos. É um debate de escopo mais geral, ou melhor, um debate que deve ser resolvido de forma preliminar, mesmo entre aqueles que concordam em não tolerar a menor alusão antissemita. A questão afinal é se a palavra “judeu” constitui ou não um significante excepcional no campo geral da discussão intelectual pública, excepcional a ponto de ser lícito fazê-la desempenhar o papel de um significante último, até mesmo sagrado. É claro que o processo de erradicação das formas de consciência antissemita não pode ser abordado da mesma maneira, ou com a mesma subjetividade, se pensarmos que elas são essencialmente distintas de qualquer outra forma de racialismo discriminatório, como os sentimentos antiárabes ou o confinamento dos negros às suas atividades comunitárias, ou se pensarmos que, certamente dadas em historicidades distintas, e irredutíveis entre si, todas estas formas apelam, no entanto, a reações do mesmo tipo: igualitárias e universalistas. Ou ainda, essa repugnância compartilhada pelo antissemitismo deve ser diferenciada de um certo filosemitismo que proclama, não só que atacar os judeus como tais é uma vilania criminosa, mas que devemos instalar a palavra “judeu”, e a comunidade que a invoca, numa posição paradigmática relativamente ao campo dos valores, das hierarquias culturais ou da avaliação da política do Estado.

Digamos que, com relação ao antissemitismo antigo ou novo e ao processo de sua erradicação, há uma luta entre dois caminhos, sendo que a questão em jogo é nada menos do que saber o que pode realmente ser um universalismo contemporâneo e e se ele é compatível com qualquer transcendência comunitária ou nominal.

No entanto, está claro que, hoje, uma forte corrente intelectual, marcada por publicações bem-sucedidas e impacto significativo na mídia, sustenta que há, de fato, uma espécie de transcendência comunitária no destino do nome “judeu”, de modo que nada pode tornar esse destino comensurável, nos registros da ideologia e da política, ou mesmo da filosofia, com outros nomes que são ou foram expostos a avaliações conflitantes.

O argumento fundamental obviamente se refere ao extermínio dos judeus da Europa pelos nazistas e seus cúmplices. Esse extermínio sem precedentes é um paradigma para o elemento ideológico de vitimização que forma a artilharia de campanha do moralismo contemporâneo. Somente ele sustenta a necessidade moral, legal e política de excluir a palavra “judeu” de qualquer uso comum de predicados de identidade e de instalá-la em uma espécie de sacralidade nominal. A imposição gradual da palavra “Shoah” para designar o que seu mais eminente historiador, Raul Hilberg, chamou, com sóbria precisão, de “a destruição dos judeus da Europa”, pode ser vista como um estágio verbal dessa vitimização. Por meio de uma notável ironia, acabamos aplicando ao nome “judeu” o que os cristãos primeiramente voltaram contra os próprios judeus, ou seja, que “Cristo” era um nome que valia mais do que qualquer outro nome. Hoje em dia é comum ler que “judeu” é de fato um nome que excede aos nomes comuns. E parece ser aceito que, como um pecado original invertido, a graça de ter sido uma vítima incomparável é transmitida não apenas aos descendentes e aos descendentes dos descendentes, mas a todos aqueles que se enquadram no predicado em questão, mesmo que sejam chefes de estado ou de exército que estejam oprimindo severamente aqueles cujas terras foram confiscadas.

Outro caminho para esse tipo de transcendência fictícia é o histórico. Ele afirma estabelecer que o “problema judeu” define a Europa pelo menos desde o Iluminismo, de modo que há uma continuidade criminosa entre a ideia que a Europa tem de si mesma e o extermínio nazista, que se apresentou como a “solução final” para esse problema. Haveria também uma continuidade entre esse extermínio e a hostilidade da Europa em relação ao Estado de Israel, conforme evidenciado pelo apoio constante da Comunidade Europeia aos palestinos – apoio que, em minha opinião, é muito inconsistente, mas vamos em frente. A Europa ficaria furiosa porque a “solução final” foi derrotada, no último ato, pelo surgimento repentino de um “Estado judeu” como resultado da guerra. Uma consequência de tudo isso seria uma desconfiança legítima em relação a todas as coisas árabes, porque do apoio aos palestinos leva-se ao questionamento do Estado de Israel, desse questionamento, por sua vez, leva-se ao antissemitismo e do antissemitismo chega-se finalmente ao extermínio – em suma, tal lógica teria de ser considerada boa.

Gostaria, na medida do possível, de documentar uma posição totalmente irreconciliável com as afirmações acima; apresentarei uma posição que é declaradamente minha. Nessas questões, e levando em conta as paixões que inevitavelmente surgem em toda disputa sobre o poder de uma nomeação coletiva, é melhor declarar imediatamente que se está falando apenas por si mesmo ou, mais precisamente, em seu próprio nome.

Obviamente, o ponto principal é que não posso aceitar de forma alguma a ideologia de vítima. Expliquei claramente minha posição sobre esse ponto no meu pequeno livro “Ética”, em 1999. O fato de os nazistas e seus cúmplices terem exterminado milhões de pessoas que eles chamavam de judeus não me parece dar nova legitimidade ao predicado de identidade em questão. Evidentemente, para aqueles que, em geral por razões religiosas, sustentam que esse predicado registra uma aliança comunitária com a transcendência arquetípica do Outro, é natural pensar que as atrocidades nazistas funcionam de alguma forma para validar, em um paradoxo terrível e surpreendente, a eleição do “povo” que esse predicado, segundo eles, reúne. Além disso, seria necessário explicar como e por que o predicado nazista “judeu”, tal como foi usado para organizar a separação, depois a deportação e a morte, coincide com o predicado subjetivo sob o qual a aliança é selada. Mas para qualquer um que não entre na fábula religiosa em questão, o extermínio faz com que os nazistas sejam julgados de forma absoluta e sem direito a recurso, sem de forma alguma estabelecer qualquer valor suplementar para as vítimas, a não ser uma profunda compaixão. De passagem, afirmo que a verdadeira compaixão não se preocupa nem um pouco com os predicados em nome dos quais a atrocidade foi cometida. Dessa forma, é ainda mais equivocado pensar que uma atrocidade confere um mais-valor a um predicado. Tampouco uma atrocidade pode funcionar para proporcionar qualquer tipo de respeito especial a qualquer pessoa que hoje espera se abrigar sob tal predicado e exigir um status excepcional. Em vez disso, a partir desses massacres ilimitados, deveríamos tirar a conclusão de que toda introdução declamatória de predicados comunitários no campo ideológico, político ou estatal, seja criminalizando ou santificando, leva ao pior.

Deixe-me acrescentar uma nota de cunho mais afetivo. É completamente intolerável ser acusado de antissemitismo por alguém pelo simples motivo de não se concluir (devido ao fato do extermínio), quanto ao predicado “judeu” e sua dimensão comunitária e religiosa, que esta receba alguma valorização singular – uma anunciação transcendente! – nem que as exigências israelenses, cuja natureza colonial é óbvia e banal, sejam especialmente toleradas. Eu proponho que ninguém mais aceite esse tipo de chantagem política, seja na esfera pública ou privada.

Uma variação abstrata de minha posição consiste em apontar que, do apóstolo Paulo a Trotsky, passando por Espinosa, Marx e Freud, o comunitarismo judaico somente sustentou o universalismo criativo na medida em que houve novos pontos de ruptura com ele mesmo. É evidente que o equivalente atual da ruptura religiosa de Paulo com o judaísmo vigente, da ruptura racionalista de Espinosa com a Sinagoga, ou da ruptura política de Marx com a integração de parte de sua comunidade de origem à burguesia, é uma ruptura subjetiva com o Estado de Israel, não com sua existência empírica, que não é nem mais nem menos impura do que a existência de qualquer outro estado, mas com sua reivindicação identitária de ser exclusivamente um “estado judeu” e com a forma como, frequentemente, obtém privilégios a partir dessa reivindicação, especialmente quando se trata de passar por cima da lei internacional. Os países ou estados realmente contemporâneos são sempre cosmopolitas, perfeitamente indistintos em sua configuração identitária. Eles assumem a completa contingência de sua constituição histórica e a consideram válida somente sob a condição de não cair em um predicado racialista, religioso, ou, mais geralmente, “cultural”. Na verdade, a última vez em que um estado estabelecido na França achou que deveria chamar a si mesmo de “Estado Francês” foi sob Pétain e a ocupação alemã. Os estados islâmicos certamente não são modelos mais progressivos do que foram as várias versões da “nação árabe”. Parece que todos concordam com o fato de que o Talibã não representa um caminho para a modernização do Afeganistão. Uma possível democracia moderna é, portanto, uma que leve em conta todos, independente de seus predicados. Como a Organisation Politique coloca em relação às leis francesas reacionárias contra trabalhadores sem documentos: ‘Quem quer que seja que esteja aqui, é daqui’. Não há razão aceitável para dispensar o Estado de Israel dessa regra. Às vezes é feita a alegação de que esse seria o único estado ‘democrático’ da região. Mas o fato desse estado se apresentar enquanto um ‘estado judeu’ é diretamente contraditório. Sobre essa questão, podemos apenas dizer que Israel é um país arcaico em sua autorrepresentação.

Partindo de uma abordagem diferente, vou generalizar a afirmação. Vou dizer que a infiltração de qualquer predicado de identidade no interior de um processo central para a determinação da política leva ao desastre. Essa deveria ser, como já falei, a real lição a ser tirada do nazismo. Já que foram sobretudo os nazistas que, antes de qualquer outra pessoa, e com um zelo raro de se seguir adiante, tiraram todas as consequências de transformar o significante ‘judeu’ em uma exceção radical – era, afinal, a única maneira que eles tinham de dar alguma consistência, em seu massacre industrial, para a predicação simétrica ‘ariano’, a vacuidade particular pela qual eles eram obcecados.

Uma consequência mais imediatamente relevante é que o significante ‘palestino’ ou ‘árabe’ não deve ser mais glorificado do que é permitido para o significante ‘judeu’. Como resultado, a solução legítima para o conflito no Oriente Médio não é a terrível constituição de dois estados cercados por arame farpado. A solução é a criação de uma Palestina democrática e secular, subtraída de todos os predicados e na qual, na escola de Paulo – que declarou que, do ponto de vista universal, não haveria mais ‘judeu ou grego’ e que ‘a circuncisão é nada e a não-circuncisão é nada’ – mostraria que é perfeitamente possível a criação de um lugar nessas terras em que, de um ponto de vista político e independentemente da continuidade apolítica dos costumes, não haja ‘nem árabe nem judeu’. Isso sem dúvida demandaria um Mandela regional.

Por último, não está em questão a tolerância com injúrias antijudaicas, proferidas em nome da culpa colonial e dos direitos palestinos, que circulam entre organizações e instituições que são de alguma forma dependentes de termos identitários como ‘árabe’, ‘muçulmano’, ‘Islã’… Esse antissemitismo não poderia ser confundido com um progressismo que se contenta com pouco. Além disso, nós já conhecemos a história. No final do século XIX, na França, certas organizações ‘marxistas’ de trabalhadores, notavelmente da escola de Jules Guesde, não viram nada de errado no antissemitismo vulgar que era amplamente difundido à época. Eles pensavam que as questões relativas ao antissemitismo, notavelmente a questão de Dreyfus, não diziam respeito à classe trabalhadora e que se ocupar delas distrairiam das principais contradições entre burguesia e proletariado. Porém, logo ficou óbvio do que se tratava a preocupação com as ‘principais contradições’: em 1914, Jules Guesde, em nome de um nacionalismo tacanho e do ódio aos ‘Boches’1, se juntou aos que promoveram a carnificina militar. Uma dialética pela outra, será lembrado que o correto tratamento da contradição principal, na maioria das vezes, consiste em se assumir publicamente a responsabilidade para lidar com uma contradição ‘secundária’. Hoje, alguns entre nós estão visivelmente tentados, em nome da contradição fundamental entre Norte e Sul, ou entre povos árabes e o imperialismo estadunidense, em encontrar desculpas para transformar a oposição (legítima) às empreitadas do Estado de Israel em antissemitismo franco e aberto, o que é intolerável e não deve ser tolerado. Ainda mais quando as ações de israelenses progressistas, que constantemente provam rara coragem, vêm sendo cruciais para o avanço da situação na Palestina.

É verdade que, para qualquer um que queira erradicar tal antissemitismo circunstancial, ajudaria se o Estado de Israel não fosse mais referido enquanto ‘estado judeu’ e que houvesse um acordo geral de que deve haver uma separação estrita entre, de um lado, usos religiosos, costumeiros e privados de um predicado de identidade – tanto de palavras como ‘árabe’ e ‘judeu’ quanto como ‘francês’ – e do outro lado, seus usos políticos, que são sempre danosos.

1 Nota do tradutor: termo usado para se referir a soldados alemães. No presente caso, referente ao contexto de conflito entre França e Alemanha entre o final do século XIX e início do século XX.

Lucas Azevedo Maksud: Doutorando em Filosofia (UFMG). Email: maksudlucas@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4450923139234704. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9679-7610. Estevam Peixoto: Mestrando em Economia (CEDEPLAR/UFMG). Email: estevamolipe@gmail.com. Lattes:  http://lattes.cnpq.br/6996557775303978.

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2 comentários em “Os usos da palavra “judeu” ”

  1. Olá, sou um leitor acadêmico, mas sou leigo no assunto e muitos conceitos e opiniões ficaram um pouco difícil de entender. Cheguei a conclusão superficial de que a Europa vive uma contradição histórica.

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