O capital. Crítica da economia política.

Por Gastón Caligaris, via El Capital. Crítica de la economía política, traduzido por Bruno Rodrigues.

Nota do tradutor: Em 2018, a Universidade de Buenos Aires promoveu um evento em homenagem ao bicentenário do nascimento de Karl Marx. Esse evento reuniu vários acadêmicos marxistas, cada um ficou responsável por apresentar, de forma sucinta (em no máximo 10 minutos), um texto de Marx. Gastón ficou incumbido de apresentar o Livro I de O capital. Esse foi o texto apresentado. O link para o texto original é: El Capital. Crítica de la economía política | Caligaris | Hic Rhodus. Crisis capitalista, polémica y controversias (uba.ar). A apresentação oral deste texto pode ser encontrada no Youtube: 03- Gastón Caligaris – La Posta Marxianas – “El Capital, Tomo 1” (youtube.com). Gastón Caligaris é doutor em ciências sociais pela Universidade de Buenos Aires e faz parte de um coletivo chamado Centro para la Investigación como Crítica Práctica (CICP), que há anos vem produzindo um trabalho muito original, desenvolvendo a obra de Marx de uma maneira impressionante. Os textos desse grupo podem ser encontrados no site do coletivo: CICP – Centro para la Investigación como Crítica Práctica – (cicpint.org). Essa tradução é uma tentativa de fazer esse grupo mais conhecido por aqui. Agradeço a Gastón, que gentilmente permitiu a publicação dessa tradução.

O capital. Crítica da economia política. 1867. Marx passa quase 25 anos o escrevendo. “Sacrifiquei saúde, felicidade e família” para terminar essa obra, escreve a Meyer naquele mesmo ano. E continua: “Rio-me das pessoas pretensamente ‘práticas’ e de sua sabedoria. […] Mas eu me consideraria realmente como não prático se morresse sem haver terminado meu livro”. (Marx, 1983, 158 [Marx, 2020, 199]) De que se trata esse livro, essa crítica prática a que Marx dedicou toda sua vida? Trata-se de nós, de nosso ser social e de nossa consciência, de nossa subjetividade política e das potencialidades revolucionárias deste modo de produzir a vida social. Vejamos. 

Marx começa pela análise da mercadoria, sem mais justificativa de que esta é a forma em que se apresenta a riqueza nesta sociedade. Algo é mercadoria se, além de ser útil, pode ser trocada, isto é, se tem valor. Por que uma mercadoria tem valor? Porque é o produto de um trabalho organizado de maneira privada, autônoma e reciprocamente independente a respeito de quem vai consumir tal produto e, portanto, independente a respeito de todos os outros trabalhos que produzem o resto das mercadorias. Marx descobre por este caminho que nesta sociedade a organização da divisão do trabalho social – isto é, a alocação da capacidade total de trabalho que dispõe a sociedade às distintas formas concretas úteis de trabalhar – não se efetua através de relações diretas entre as pessoas, mas sim através da troca de mercadorias. Que a mercadoria é ela mesma essa relação social, uma relação social coisificada. Que a mercadoria é a portadora da organização da participação individual na unidade da vida social. Que a mercadoria é um fetiche: um produto do ser humano que se enfrenta a ele como algo alheio e que o domina. Finalmente, que iniciar a análise pela mercadoria era começar a análise pela subjetividade humana alienada na mercadoria (Marx, 1999, 43-102 [Marx, 2013, p. 111-158]).

Como o caráter social do trabalho privado só se pode manifestar na unidade do processo de troca, as mercadorias devem erigir uma delas como seu equivalente geral, uma única mercadoria que sirva de expressão do valor de toda e qualquer mercadoria. O exercício da relação social passa, por conseguinte, por trocar mercadoria por dinheiro e dinheiro por mercadoria: M – D – M. Mas esta mesma circulação de mercadorias nos põe diante de um movimento contraposto: dinheiro que se troca por mercadoria para trocar-se novamente por mais dinheiro: D – M – D’. É o dinheiro funcionando como capital. As diferenças formais nos colocam diante da diferença de conteúdo: em um caso, se começa com um não-valor de uso para o possuidor e se termina com um valor de uso para este, a finalidade é o valor de uso, o consumo, a satisfação de uma necessidade pessoal; no outro, se começa com dinheiro e se termina com mais dinheiro, é dizer, com o mesmo ponto de partida incrementado, a finalidade é o mais-valor, a satisfação do processo de autovalorização do valor. O capital atua como um sujeito automático (Marx, 1999, 103-202 [Marx, 2013, 159-241])

Tratando-se a circulação de mercadorias de um processo de troca de equivalentes, a valorização do valor só pode ser explicada mediante a compra de uma mercadoria cujo valor de uso seja ser fonte de mais valor do que ela mesma possui. E essa mercadoria é a força de trabalho, que é oferecida pelo indivíduo que é livre no duplo sentido de estar liberado de toda relação de dependência pessoal e de estar liberado dos meios de produção. O resto das mercadorias, em consequência, deixam de aparecer como simples produtos do trabalho para revelarem-se como produtos do trabalho sob o comando do capital. Já não se trata, portanto, da produção de valores de uso com a mediação da produção de valor, mas do inverso, da produção de valor com a mediação da produção de valores de uso. O capital enquanto sujeito automático se apresenta como a relação social alienada através da qual se organiza e se realiza a produção social (Marx, 1999, 203-276 [Marx, 2013, 241-303]).

Se entre direitos mercantis iguais decide a força, o trabalhador isolado não pode senão sucumbir diante do capitalista, condenando-se a vender mal sua própria força de trabalho e, portanto, desgastá-la prematuramente, atrofiá-la, e inclusive, no limite, destruí-la de modo definitivo. A necessidade do capital de preservar sua única fonte de mais-valor segue seu curso por meio da constituição dos vendedores de força de trabalho como classe e pela luta de classes pela compra e venda da força de trabalho. As relações políticas que constituem a luta de classes se revelam como a forma concreta necessária em que se realizam as relações econômicas que constituem a acumulação de capital (Marx, 1999, 277-378 [Marx, 2013, 305-383]). 

Limitado pela extensão da jornada de trabalho, o capital se afirma como sujeito automático que é transformando o processo de trabalho com vistas a produzir mais mais-valor mediante o aumento da produtividade do trabalho que barateia as mercadorias que entram no consumo do trabalhador. A cooperação simples, a divisão manufatureira do trabalho e a grande indústria são modos de produzir esse mais-valor relativo. Em todos os casos, se opera um processo de socialização do trabalho, de transformação do papel do capitalista e do trabalhador, e de transformação nos atributos produtivos dos distintos órgãos do trabalhador coletivo. Sob a grande indústria, enquanto modo mais potente de produção de mais-valor relativo, o capital produz uma diferenciação crescente na subjetividade produtiva da classe trabalhadora. A uma parte, o capital a condena à degradação mais absoluta, convertendo-a em população trabalhadora supérflua. Outra parte é degradada a ser um apêndice vivo da maquinaria. Finalmente, outra parte tem seus atributos produtivos vinculados ao controle científico das forças naturais e à organização de massas crescentes do trabalho social expandidos pelo capital (Marx, 1999, 379-693 [Marx, 2013, 385-640]).

A reprodução em escala ampliada do capital mostra que as e os trabalhadores saem do processo reproduzidos como tais, que a sua força de trabalho é comprada com o produto de seu próprio trabalho, que seu processo de consumo é somente para reproduzir-se como trabalhadores para o capital. Em suma, tanto fora como dentro do processo de trabalho as e os trabalhadores somos atributos do capital. Mas [a reprodução ampliada do capital] também mostra que a renovação incessante da produção de mais-valor relativo traz consigo a crescente socialização do trabalho e a consequente capacidade para organizar conscientemente o caráter social do trabalho por parte da classe trabalhadora. O capital socava assim as suas próprias bases determinando a classe trabalhadora como o sujeito de sua superação revolucionária. O modo de produção fundado na incapacidade dos seres humanos para organizar conscientemente, e, portanto, livremente, seu processo de vida social produz o modo de produção dos indivíduos conscientes, e, portanto, livremente associados. Como diz Marx, a socialização e o controle consciente do caráter social do trabalho “atingem um grau em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. Arrebenta-se o entrave.” (Marx, 1999, 953; 695-967 [Marx, 2013, 832; 641-844]).

Referências bibliográficas

Marx, Karl (1983 [1867]) “Carta a S. Mayer del 30 de abril de 1867”, en Karl Marx y Friedrich Engels, ‘Cartas sobre ‘El Capital’. La Habana: Editora Política. [ed. brasileira: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cartas sobre o capital. Tradução: Leila Escorsim. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2020.]

Marx, Karl (1999 [1867]) El Capital. Crítica de la economía política. Tomo I. Vol. 1, 2 y 3. México: Siglo XXI. [ed. brasileira: MARX, Karl. O capital: Crítica da economia política. Livro I. Trad: Rubens Enderle. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2013.]

 

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