Raça, etnia, negro, preto ou gênero humano? Conceitos, leitura de mundo e reflexo nas formas de pensar, ser e interagir

Por Iael de Souza[1]

Enquanto indivíduos que fazem parte de uma sociabilidade (totalidade social), querendo ou não, somos obrigados a tomar posição perante as situações concretas vividas, ainda mais quando se é um(a) educador(a), caso da autora. Tal posicionamento reflete a determinação de classe, tenha-se ciência disso ou não. Algo a ser ressalvado. No entanto, importante alertar que um contingente significativo de indivíduos está preso a uma falsa consciência (às aparências, às sombras, como no Mito da Caverna, de Platão), às ilusões acerca da realidade, incapazes de apreender a concretude de suas próprias condições materiais de existência, acreditando fazer parte de uma classe e segmento social ao qual, em essência, não pertence.


Além de educadora, para garantir minha reprodução dependo da venda da força de trabalho (assalariamento). Logo, faço parte daqueles que são explorados, dominados e sofrem diferentes tipos de opressão, assim como ocorre com toda a classe trabalhadora, embora haja diferenciações na intensidade e nas formas de exploração, dominações e opressões devido ao lugar ocupado na divisão social-técnica-hierárquica do trabalho, além de outras particularidades relacionadas à sexo, sexualidade, cor, “raça”, “etnia”.

Descrevo-me, portanto, como trabalhadora assalariada, membro da classe que vive da venda de sua força de trabalho (física e mental) como condição de reprodução e manutenção; explorada, dominada e oprimida pelo sistema capital e suas personas; heterossexual/cisgênero, branca; consciente de que faço parte da classe trabalhadora (independente do lugar que ocupo na divisão social-técnica-hierárquica do trabalho e da remuneração obtida) e que como classe da perspectiva do trabalho tenho como tarefa revolucionária primordial contribuir na agitação, propaganda e organização da classe trabalhadora e das camadas populares para reabsorver e reassumir o poder político-social a fim de superar o modo de produção capitalista, o Estado, a propriedade privada, o valor de troca, a sociabilidade de mercado e as classes sociais (exploração, dominação e opressão de seres humanos por seres humanos), construindo e fundando um novo modo de vida e sociabilidade.

Na construção dessa organização, é preciso enfrentar as questões do nosso tempo, que repõem e atualizam aquelas que tiveram continuidade no processo histórico-social e tornam ainda mais complexa e hercúlea a organização da classe trabalhadora, cada vez mais metamorfa e metamorfoseada pelas reestruturações produtivas do sistema capital e estágios do modo de produção capitalista. É preciso enfrentar os problemas que minam a unidade e solidariedade dessa classe trabalhadora segmentada em setores, fragmentada pelas novas estratégias do capital e dividida pelas particularidades que a cega para enxergar aquilo que compõe sua universalidade e unidade comum.

O educador que se posiciona na perspectiva do trabalho e da classe trabalhadora não pode negligenciar os debates e questões candentes de seu tempo. No presente e atual conjuntura brasileira, em que discursos homofóbicos, misóginos, racistas, preconceituosos, de ódio são propagados por aquele que ocupa o cargo de presidente da República, incitando práticas de violências noticiadas pelos jornais – como o caso do menino Miguel, em Recife, morto por negligencia da patroa de diarista; o espancamento de Moise Mugenyi, na praia da Barra da Tijuca; o assassinato de Marcelo Arruda, guarda municipal e tesoureiro do PT (Partido dos Trabalhadores) em Foz do Iguaçu, para citar alguns exemplos – mais do que nunca é preciso intervir através de análises e reflexões capazes de reconstruir as mediações (e não apenas interpretações, represetanções) da realidade, conectando a objetividade dos fatos à estrutura da totalidade social, expondo as determinações reflexivas entre particularidade e universalidade, a fim de que se possa apropriar do movimento e das contradições do real, apreendê-lo e intervir de modo o mais adequado e eficiente possível, contribuindo para a criação das condições objetivas e subjetivas para superá-lo.

Assim sendo, não é por ser branca que não posso e não irei me posicionar frente às práticas racistas, às várias formas de violências infringidas contra as pessoas por questões econômico-sociais, sexistas, de sexualidade e todas as outras formas de opressão possíveis e inimagináveis. Ao contrário, como lembra Angela Davis, “numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, independente da cor de nossas peles, pois, em última instância (frise-se), o aspecto econômico-social torna-se o fator predominante, sendo mesmo capaz de artificialmente produzir “branquiamentos[2]”, o que nos remete à sentença de Lucy Parsons:

“Há alguém tão estúpido”, perguntou Parsons em 1866, “a ponto de acreditar que essas afrontas têm […] se acumulado sobre o negro por ele ser negro?” “De forma alguma. É porque ele é pobre. É porque ele é dependente. Porque ele é mais pobre enquanto classe do que seu irmão branco nortista, escravo do salário” (DAVIS, 2016, p. 159).

 Ser branco não significa ser a personificação encarnada do colonizador, já que a brancura do branco se define por sua classe (trabalhadora ou capitalista), condição de classe (hierarquicamente falando) e por sua origem geográfica (europeia ou não). “Lugar de fala”, como esclarece Guilherme Terreri/Rita Von Hunty (“Lugar de fala e a confusão que se faz” …, Tempero Drag, dezembro 2021), não é um dado proibitivo do discurso, mas sim um dado analítico, evidenciando de onde ele vem, e não aquele discurso que pode ou não ser dito. Nenhuma fala é neutra, carregando consigo classe, sexo, sexualidade, “raça”, cor, etc. É importante que ao ouvir alguém se pronunciando perguntemos “quem” está falando, de “qual lugar”, identificando as origens de quem fala. Também é necessário precisar se se fala a partir da episteme (teoria do conhecimento, conhecimento científico, partindo de um método de análise, reflexão e proposição), da sophia (vivência, experiência) ou da doxa (senso comum, crença, opinião). Se por “lugar de fala” é entendido que só fala quem viveu e experimentou, não há espaço para a episteme e se fica apenas na sophia alimentando a doxa, o que empobrece e prejudica a apreensão do problema em suas múltiplas determinações e concretude.

É por isso que mesmo sendo branca discorrerei sobre “raça” e “cor”, porque, ainda que não fale pela sophia, como educadora estarei embasada na episteme como forma de desconstruir a doxa historicamente fabricada, criando conceitos que até hoje guiam as pessoas em sua forma de pensar, agir e interagir com os outros, demonstrando que tal discussão não é apenas acadêmica, mas essencial para transformar nossas práticas (a mudança começa pela mudança daquele que vê), uma vez que

a linguagem tende a preestruturar o pensar e o agir. O significado de uma palavra ou expressão “é o que ela faz, ou seja, o efeito que ela produz em seus ouvintes… Um nome pode determinar a natureza da resposta que lhe é dada em virtude das associações que o uso desse nome evoca” (Keith Baird, jovem especialista afro-americano do Conselho de Educação de Nova York. In: Revista Ebony 23, p. 46 a 54, novembro de 1967. Disponível em: Quilombohoje).

Embora seja a existência quem determina a consciência, na dialética entre o real (a prática social) e o pensamento abstrato, faz-se a apropriação do movimento contraditório da realidade pelo concreto pensado, que ao nomear o mundo, conceituando-o e categorizando-o, permite a intelecção de sua objetividade pelos sujeitos, que passam a comunica-lo para os demais, alterando e transformando o modo de pensar, ser e interagir das pessoas entre si e com o mundo. Logo, a existência, ponto de partida é desvendada no ponto de chegada pelo trabalho da reflexão crítica que busca retotalizar as mediações que perfazem as relações entre os objetos, apreendendo como se efetiva sua objetividade.

Uma outra forma de sociabilidade necessita de indivíduos que se norteiem por outros valores, criados em contraposição àquilo que é (o real), capacitando-os e criando as condições para que direcionem suas ações ao que deve ser.

Sobre “raça”…

Alguns autores relacionam o aparecimento da raça com a escravidão moderna (acumulação primitiva de capitais e sistema colonial). Entrementes, na Antiguidade Clássica, egípcios, sumérios, babilônios, assírios, hindus, persas, hebreus, cretenses, fenícios, gregos, macedônios e romanos tinham em comum o trabalho escravo. Uma das diferenças significativas entre o “escravismo patriarcal” (MAESTRI, 1994) da Antiguidade Clássica para o “escravismo moderno” da acumulação capitalista é que o primeiro não fazia distinção de cor ou fenotípica, como passa a ocorrer nas Américas e Antilhas com a escravidão colonial.

Consoante Peter Wade (2017, p. 49), o termo raça surge entre os séculos XIII e XVII no contexto europeu. Nesse período, fazia menção à religião, ao comportamento e ao meio ambiente, já que eram os critérios mais relevantes à época para conceituar a diversidade humana. Ainda segundo o autor, embora a etimologia da palavra seja incerta, há registro de seu uso no século XIV em Itália e Espanha, sendo empregada para discernir estirpe e linhagem de cavalos e vacas. O vocábulo só será utilizado na língua inglesa no século XVI.

 Até o século XVIII o termo “raça” codificava um racismo religioso (judeus, muçulmanos e cristãos), de pureza/limpeza (exclusão de pessoas judias e muçulmanas) de sangue, cuja importância atinge seus píncaros no século XVII e pelas determinações do meio ambiente (determinismo geográfico), provocando alterações no biofísico. Uma noção de raça mais próxima ao que conhecemos se estabelece na segunda metade do século XVIII e se formaliza no decorrer do século XIX e início do XX.

A biologia e a antropologia serão as áreas da ciência da natureza que irão contribuir para a constituição da ideia de raça no século XIX, criando as condições para o desenvolvimento do “racismo científico” e do determinismo racial.

A partir desses fatos históricos é possível induzir (e não deduzir) que a distinção, superioridade/inferioridade, discriminação, preconceitos e a culminância desse processo com a estruturação de uma organização social (a sociabilidade capitalista, moderna) baseada na ideia de superioridade racial advém de tempos remotos, originado na dominação do ser humano por outro ser humano, quando aqueles que são vencidos nas guerras tornam-se escravos dos vencedores, ou no momento em que um ser humano é escravizado por outro devido à dívidas, ou então, ao perder os instrumentos e meios de produção, que passam a ser concentrados e centralizados por poucos, reduzindo o indivíduo a servo daqueles que detêm tais instrumentos e meios (servidão) ou vendedor de sua força de trabalho física e/ou mental (tornando-se mercadoria) em troca de salário para poder obter os meios necessários à sua própria reprodução enquanto força de trabalho.

Isso demonstra que as desigualdades entre os seres humanos aparecerem concomitante às condições (propriedade privada, vencedores e vencidos, endividados, etc.) que proporcionam a dominação, exploração e as variadas formas de opressão de uns sobre todos(as) os(as) outros(as). O fato dessa dominação, exploração e opressão tornar-se uma escravidão racializada e embasada na cor da pele e nos traços fenotípicos é historicamente determinada pelo processo de acumulação primitiva de capitais iniciada pelos países europeus e o avanço expansionista de sua dominação pela colonização dos demais continentes, colocando-se como referência e modelo de civilização e humanidade, um falso universal em relação a todas as particularidades, legitimando-as ou classificando-as como não pertencentes àquilo que se entende por “humano”.

Entrementes, toda a ideologia pseudocientífica das “raças” humanas é desvelada e se desfaz quando retomamos, historicamente, o modo como se deu o povoamento do que hoje conhecemos como os continentes do planeta Terra. (Re)descobre-se o que de fato une a todos os seres humanos, que é o gênero, o “homo”, o verdadeiro universal, e a grande ironia histórica de que o continente africano engendra, enquanto protoforma, nosso DNA, nossa ancestralidade e nosso gênero. Daí a importância de conhecer e se apropriar da história como condição para destruir as ideologias e ficções criadas por aqueles que dominam e produzem o conhecimento científico, que não é A teoria da Pangeia (era Paleozoica, cerca de 200 milhões de anos) e do povoamento da Terra é uma comprovação científica de que cada representante da espécie humana é membro do gênero humano. Os continentes estavam unidos num único bloco (pangeia). O movimento das placas tectônicas – milhões de milhares de anos (descoberta da década de 1960, pelo geólogo canadense John Tuzo Wilson, conhecida como Teoria da Tectônica de Placas) – contribuiu para a configuração continental atual. Os continentes e oceanos ficam sob esses blocos rochosos rígidos em movimento (Deriva Continental, teoria de Alfred Wegner, meteorologista alemão, de 1915). Descobriu-se que na primeira movimentação, a pangeia dividiu-se em duas partes: Laurásia (continentes que correspondem ao hemisfério norte) e Gondwana (continentes do hemisfério sul), porém, posteriormente, com as respectivas movimentações, há cerca de 65 milhões de anos esses dois blocos continentais começaram a se dividir e foram se separando, até formar a configuração atual dos continentes.

Do coração da África, a cerca de 1 milhão de anos, os grupos de Homo Habilis começam a explorar outros territórios, como a Ásia e a Europa, embora uma migração de proporção significativa tenha sido datada há 80 mil anos.  Deve-se considerar que o processo de separação dos continentes foi lenta e gradual, sendo a distância entre eles, inicialmente, pequena, permitindo as migrações desses grupos de hominídeos por toda a terra. A datação desse povoamento da Terra pelos seres humanos é feita através dos fósseis encontrados nos diferentes continentes, além de semelhanças geológicas, climáticas, de biomas, etc.. Mais recentemente, com o avanço das ciências naturais, também foram dadas contribuições pela genética via decifração do DNA. Mediante a análise do estudo de três cientistas geneticistas – David Reich, Eske Willerslev e Mait Metspalu – foi possível inferir que uma grande migração, acontecida entre 80 mil e 50 mil anos, levou ao povoamento de todo o mundo.

Com base nesses dados é possível sentenciar que todo indivíduo, todo ser humano é única e universalmente membro do gênero humano (homo = gênero / sapiens = espécie), como também comprovam os estudos encomendados pela UNESCO a eminentes cientistas das ciências da natureza entre os anos 1950 e 1960 (pós II Guerra Mundial e a tragédia do nazismo alemão, pautado na pseudoteoria racial e na eugenia da raça ariana), donde se concluiu que “as diferenças entre os grupos humanos não são determinadas geneticamente e as evoluções sociais e culturais são independentes das constituições inatas” (CAMPOS. “Não existe raça, mas racismo”. Escola Brasileira de Psicanálise – EBP, s/d).

Reiterando os resultados obtidos pelos cientistas convocados pela UNESCO, em 1972, nos Estados Unidos, na Universidade de Harvard, foram realizados testes genéticos e moleculares analisando proteínas no sangue de diferentes populações.

Os resultados não mostraram diferenças significativas do ponto de vista molecular para separar as raças humanas. Estudos subsequentes ajudaram a verificar que a sequência base (as unidades que compõem a informação genética) no DNA humano é 99,9% idêntica, o que esvaziou completamente o argumento de encontrar um parâmetro confiável para definir raças. Esses dados foram importantes para apoiar a igualdade dos seres humanos do ponto de vista científico, imparcial e rigoroso (BOVE. “Racismo: como a ciência desmantelo a teoria…”. BBC, 12 de julho de 2020).

É lícito ressalvar a parte final da sentença: “igualdade dos seres humanos do ponto de vista científico, imparcial e rigoroso”. Geneticamente, os seres humanos são a espécie mais uniforme do planeta. Como diz Lessa (1996, p. 91), apoiado em Lukács:

O desenvolvimento que vai da mais simples às mais complexas formas de sociabilidade tem uma mesma base genética. Ao contrário do que ocorre com os animais, onde novas formas de interação com o ambiente requerem novas determinações genéticas, no mundo dos homens o desenvolvimento da sociabilidade é independente da base genética (ainda que esta independência tenha um limite preciso: sem reprodução da vida não há ser social).

As características fenotípicas específicas apresentadas pelos indivíduos invariavelmente estão ligadas à adaptação dos mesmos aos diferentes ambientes geográficos, climáticos, naturais, correspondendo a uma pequena porcentagem de genes distintos, que proporcionam as variações na aparência física, cor da pele, dentre outras. No geral, apesar das diferenças, singularidades e particularidades, o que temos em comum é o fato de pertencermos ao gênero humano.

Hoje, quando se fala sobre “gênero” não se reporta ao gênero humano, mas sim a outra significação, atribuída ainda no século XX, relacionada a homem/mulher/trans. No entanto, ao nos referir aos seres humanos, independente de que seja homem ou mulher, do sexo masculino ou feminino, das diferenças fenotípicas e de cor, de classe, etc., identificamos aquilo que os unifica, os universaliza, sendo a unidade da diversidade, traduzida no fato de que cada um de nós se constrói enquanto indivíduo, enquanto singularidade, em relação mediada com a herança legada pelas gerações que nos antecederam. Somos parte de um todo, de uma totalidade que nos transcende (trans-histórica), que é anterior a nós, como confirmam nossos genes. Somos membros do gênero humano, de seres naturais/sociais que interagem com a natureza de forma consciente, finalística (teleologia), elaborando e sistematizando aprendizados sobre o mundo, posteriormente transmitidos e assimilados por aqueles que os sucedem, acumulando conhecimentos que possibilitam a complexificação da vida social, das sociabilidades humanas, das individualidades e o desenvolvimento das forças produtivas.

 O grande problema é que a sociabilidade capitalista, com o seu culto ao indivíduo e ao individualismo, à liberdade individual e a autonomia do indivíduo desterrou da vida cotidiana e da consciência individual a compreensão de que os indivíduos se constituem através do social, por meio do social, do conjunto do patrimônio histórico-cultural decantado pelas várias gerações humanas e, por isso mesmo, é preciso pensar, agir, sentir, interagir tendo por base a relação dialética, a determinação reflexiva entre indivíduo e sociedade, individual e social, singularidade e universalidade.

A questão é que “na sociedade de classes já não é possível uma unidade em torno de valores e necessidades comuns a todos os membros da sociedade” (BARROSO, 2010, p. 61). Os valores, interesses e necessidades sócio/humano/genéricos são negligenciados, e o referencial que passa a nortear as relações humanas são os valores, interesses e necessidades particulares, individuais[3]. As relações não se pautam em reciprocidade, em solidariedade, em bem comum, em vida boa para todos(as), no coletivo – condição para a humanização dos seres humanos –, mas sim num artificialismo, numa falta de transparência, no imediatismo dos resultados e na busca da satisfação dos interesses individuais. Desaprendemos a conviver. A forma atual das relações é a colisão. Entramos em relação colidindo, o tempo todo, com os outros.

É vital e urgente retomar os valores, interesses e necessidades sócio/humano/genéricos para responder e superar, de modo adequado e eficiente, a tensão entre particularidade e generalidade humana posta no interior das ações cotidianas, uma vez que todas as situações de conflito, e mesmo os conflitos sociais, comportam a escolha entre alternativas pelos indivíduos, que somente poderão escolher de modo mais apropriado se se parametrarem pelos valores, interesses e necessidades sócio/humano/genéricos, trans-históricos[4], acionando as condições que objetivem a continuidade da humanização da totalidade dos seres humanos. Afinal, como esclarece Lessa (1996, p. 92), “uma parte significativa das relações sociais são determinantemente moldadas, na sua imediaticidade, pela relação mais ou menos conscientemente construída do indivíduo para com o gênero”.

É por isso que sustentamos o resgate e reposição do gênero humano e dos valores, interesses e necessidades sócio/humano/genéricos como condição de superação definitiva do ideológico conceito de raça.

Sobre etnia…

Conforme evidenciado, embora “raça” seja uma ficção – um conceito ideológico ao qual se atribui estatuto de cientificidade, atendendo aos interesses e necessidades dos países imperialistas/colonialistas do século XVIII e XIX, que assim justificam sua dominação, opressão e exploração como “missão civilizatória” ou “fardo do homem branco” –, mesmo após o reconhecimento de sua inoperância no que concerne aos seres humanos, deitou raízes no senso comum, na cultura popular e no imaginário social. Canções, como O Canto das Três Raças, de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte, da década de 1970,  eternizam a ideia de brancos (europeus), negros (africanos) e amarelos

Das “raças” e suas classificações, originou-se uma hierarquização social e cultural entendida como inata, essencialmente biologizante (relação intrínseca entre o biológico e as qualidades psicológicas, morais, intelectuais e culturais), produzindo, como consequência, o racismo (naturalização da dominação, opressão e exploração pelos brancos impregnada na estruturação societária capitalista) e o racialismo (classificação dos indivíduos e grupos por raças, resultando em tratamentos desiguais).

O interessante é que os brancos não são racializados. O termo “raça” se aplica apenas aos não brancos, isto porque ser branco, em tese, é uma norma(lidade) humana, ainda que seja, na verdade, um falso universal. Para Almeida (2021, p. 78), “o ser branco é uma grande e insuperável contradição: só se é ‘branco’ na medida em que se nega a própria identidade enquanto branco, que se nega ser portador de uma raça. Ser branco é atribuir identidade racial aos outros e não ter uma. É uma raça que não tem raça”.

Ainda para Almeida (2021, p. 64), “é o racismo que cria a raça e os sujeitos racializados”, já que “pessoas racializadas são formadas por condições estruturais e institucionais”, de modo que o racismo moderno (século XVII ao XX) é parte estruturante do sistema capital e da sociabilidade capitalista, logo, é um racismo estrutural.

O racismo perdura mesmo após a deslegitimação científica do conceito de raça, impregnando as práticas e relações sociais. De todo modo, a fim de combate-los (raça e racismo) léxicos substitutos entram em cena, como é o caso de etnia[5], identidade cultural e multiculturalismo, formas mais sofisticadas de exercer a dominação, aparentando formas de respeito às diferenças. Todavia, para Kabengele Munanga (2004), professor da USP, trata-se da reformulação e manutenção do racismo, ou uma nova forma de racismo, um racismo novo, pautado no politicamente correto, porque usa denominações aceitáveis. Através delas, racistas e antirracistas erguem a mesma bandeira, lastreada no respeito das diferenças culturais e na construção de uma política multiculturalista.

Um bom exemplo é a política do apartheid, na África do Sul, de 1948. Oficialmente, foi definida como um projeto político de desenvolvimento separado, baseado no respeito às diferenças étnicas ou culturais dos povos sul africanos. Em nome do respeito às diferenças e às identidades culturais o racismo se perpetua nos países da Europa Ocidental contra os imigrantes de países árabes, africanos e demais países periféricos.

O multiculturalismo, por sua vez, é cunhado pela Fundação Ford. Como esclarece Magnoli (2009, p. 89-90):

No fim da década de 1960, a Fundação Ford estava diante de um cenário de crise política que se agravou ao longo do primeiro mandato de Nixon, quando as coalizões sociais articuladas no movimento pelos direitos civis voltaram-se para a luta contra a Guerra do Vietnã. O núcleo dirigente da Fundação interpretou a radicalização dos protestos como um sintoma de funcionamento defeituoso do pluralismo político e formulou o conceito de multiculturalismo como uma ferramenta para restabelecer a normalidade nas engrenagens da democracia.

Coalizões sociais que se articulam e passam a criar bandeiras universais, unindo diferentes segmentos sociais da classe trabalhadora através do reconhecimento dos objetivos comuns, são uma ameaça explosiva à manutenção da ordem e da paz, essenciais para a operacionalidade e funcionamento relativamente harmonioso da sociabilidade de mercado e suas regras, como também à segurança e proteção da propriedade privada dos meios de produção. Por isso, uma maneira de evitar tal articulação e unidade por parte dos explorados, dominados e oprimidos de todas as cores, sexo, sexualidade e segmentos de classe é pulverizando-os, fragmentando-os mediante a criação de organizações e movimentos específicos que centralizem suas reivindicações e esforços na luta pelos seus interesses particulares.

Tanto é assim que o multiculturalismo se transforma numa tendência de pensamento após a Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância realizada em Durban, na África do Sul, em 2001, com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos e promovida pela ONU. O fato de organismos multilaterais internacionais encamparem e disseminarem tal ideologia é sintomático aos efeitos nocivos do sistema capital neoliberal, cujas privatizações, cortes nos gastos sociais, desregulamentações trabalhistas – precarizando ainda mais as condições de trabalho e vida da classe trabalhadora por todo o globo – intensificaram ainda mais os conflitos, tensões e problemas sociais nos diferentes continentes, necessitando de antídotos para amenizar as consequências perversas da hiperexploração dos indivíduos que vivem da venda da sua força de trabalho. A miséria, o desemprego, as incertezas, inseguranças, o medo, o ódio e diferentes formas de ressentimento pelas perdas sociais e econômicas, principalmente na camada didaticamente nomeada de “classe média”, cria as condições para o afloramento de práticas e ações violentas, racistas, xenofóbicas, misóginas, nazifascistas, culpabilizando o outro (geralmente, pobre – preto e branco –, preto-a, desempregado-a, desalentado-a, etc.) por todos os problemas sentidos e vividos.

Daí a importância de se pregar, usando todos os meios disponíveis (primando pelo midiático e educacional), a “tolerância” e o “respeito à diversidade” como forma de manter o status quo, o que demonstra como tal conceito e slogan têm uma funcionalidade essencial para os sociais-liberais. A impressão que se tem é que todos os problemas podem ser amenizados, ou mesmo equacionados, por intermédio da cultura, que passa a ser “um atributo essencial, imanente e ancestral de cada grupo” (MAGNOLI, 2009, p. 92). Desta feita, o multiculturalismo separa os seres humanos em etnias, e cada vez mais menos os indivíduos sociais se sentem e enxergam, no seu em-si, como membros do e pertencentes ao gênero humano (para si). A cultura torna-se instrumento para todo tipo de preconceito racial.

A ilusão criada é de que os conflitos, tensões e problemas sociais podem ser superados pelos indivíduos através da incorporação da tolerância em suas atitudes, comportamentos, interações e relações. Vê-se como as “psicologias individuais e de grupos, a ‘batalha para os corações e os espíritos’ merecem (…) dedicação exclusiva” (GEORGE, 2003, p. 104) e podem servir para nutrir tanto a tolerância quanto o ódio e a violência intergrupos.

No primeiro caso, ilustrativa é a análise de Duarte (2008, p. 15):

O apelo à consciência dos indivíduos, seja por meio das palavras, seja por meio dos bons exemplos dados por outros indivíduos ou por comunidades, constitui o caminho para a superação dos grandes problemas da humanidade. Essa ilusão contém uma outra, qual seja, a de que esses grandes problemas existem como consequência de determinadas mentalidades. As concepções idealistas da educação apoiam-se todas em tal ilusão. Essa é a razão da difusão, pela mídia, de certas experiências educativas tidas como aquelas que estariam criando um futuro melhor pela preparação das novas gerações. Assim, acabar com as guerras seria algo possível por meio de experiências educativas que cultivem a tolerância entre crianças e jovens. Nessa direção, a guerra entre Estados Unidos e Afeganistão, por exemplo, é vista como consequência do despreparo das pessoas para conviverem com as diferenças culturais, como consequência da intolerância, do fanatismo religioso. Deixa-se de lado toda uma complexa realidade política e econômica gerada pelo imperialismo norte-americano e multiplicam-se os apelos romântico ao cultivo do respeito às diferenças culturais.

Já no segundo, fica-se com as ponderações realizadas por George (2003, p. 104): “Encaminhadas de maneira conveniente, essas psicologias (individuais e de grupos) podem contribuir para criar um clima favorável para a hostilidade entre os grupos”. A seleção das vítimas não seria “preocupação de ninguém a não ser das próprias ‘vítimas’. Elas mesmas se escolherão pelos critérios de incompetência, incapacidade, pobreza, ignorância, preguiça, criminalidade”, racismo, xenofobia, misoginia, homofobia “e assim por diante; quer dizer, elas se encontram no grupo dos pobres” (GEORGE, 2003, p. 89). Outrossim,

o instrumento psicológico mais útil para esses objetivos é a “política de identidade”. (…) Seria ideal que os indivíduos, onde quer que venham a se encontrar, passassem a se identificar estreitamente com um subgrupo étnico, sexual, linguístico, racial ou religioso, em detrimento de sua nacionalidade, de sua identificação com uma classe social ou profissional de seu país, e em detrimento mais ainda de sua identificação como membro da “espécie humana”. Cada indivíduo deveria se sentir pertencente, antes de tudo, a um grupo bem definido, e apenas em seguida como trabalhador, membro de uma comunidade, como pai, como cidadão de uma nação ou do mundo. (…) De quem estamos falando? De negros, brancos, amarelos, mestiços; homossexuais de ambos os sexos, das feministas, dos falocratas; dos judeus, cristãos, hindus e dos muçulmanos fundamentalistas e partidários da supremacia; e também de grupos profissionais vulneráveis e menosprezados, como motoristas de caminhão e policiais. Cada um terá o seu jornal, a sua revista, a sua rádio, o seu espaço na televisão, a sua página na Internet, e todos estarão, acima de tudo, preocupados em defender os seus “direitos”. “Direitos” que deverão ser concebidos não apenas de forma negativa (por exemplo, o direito de não sofrer perseguições, violência ou discriminação), mas também de forma positiva (ou seja, o direito a um tratamento particular em nome de erros passados ou presentes, reais ou imaginários), até que se atinja o direito de desfrutar de um Estado separado. Já que praticamente todos os grupos identificáveis do planeta foram vítimas um dia ou outro, em maior ou menor grau, de um outro grupo ou simplesmente de condições históricas e/ou geográficas particulares, os clamores que se erguerão deverão criar um barulho tão ensurdecedor, que nenhuma outra chamada às armas poderá ser entendida. O objetivo é reforçar a fragmentação, ressaltar as diferenças entre os grupos e criar guetos, quer se fundamentem ou não nos fatos ou nas tradições. Contrariamente às ideias aceitas, a maior parte das identidades, e em particular as chamadas “identidades étnicas”, têm raízes históricas bem frágeis e, na maior parte dos casos, são de criação recente. Identidades são mais ou menos como Deus: mesmo que não existam, são extremamente poderosas, a ponto de pessoas até se matarem em nome delas. O meio mais rápido para se criar um forte e belicoso sentido psicológico de separação é garantir que um número suficientemente grande de membros do grupo X seja humilhado ou morto por membros do grupo Y ou acredite que foram cometidas certas barbaridades ou impostas humilhações. Embora tais tensões não sejam sempre fáceis de se manipular, o mundo contemporâneo fornece vários exemplos de circunstâncias em que diferenças étnicas ou religiosas duvidosas vieram à tona e se alastraram com sucesso. Ódio acirrado entre grupos e conflitos em andamento podem agravar tendências racistas existentes, e as provocações tornam os grupos mais inclinados à violência (GEORGE, 2003, p. 104 e 105).

Vale repetir, transcrevendo aqui, a última frase da citação: “Ódio acirrado entre grupos e conflitos em andamento podem agravar tendências racistas existentes, e as provocações tornam os grupos mais inclinados à violência”. Não é o que se vive no tempo presente com o fanatismo do movimento bolsonarista, que vai muito além de Bolsonaro, expressão de múltiplas formas de ressentimentos dos segmentos da classe capitalista dos últimos 14 anos, manifestados pelos variados marcadores sociais, como racismo, homofobia, misoginia, dentre outros? Agravam-se tendências racistas existentes na própria constituição da estrutura societária, como também faz vir à superfície outras, imanentes ao modo de vida capitalista, imersas e ocultadas quando o ódio e ressentimento de classe não é alimentado, como é o caso das atitudes e comportamentos protofascistas, protonazistas.

Também é lícito frisar que as políticas de identidade, ou políticas afirmativas – relativas, conforme se costuma propagar, às minorias “excluídas” e “marginalizadas”[6], defendendo a ideia de justiça corretiva e justiça distributiva  – individualiza, isola, fragmenta, localiza e torna concorrentes os grupos ditos minoritários em relação à disputa e aprovação de políticas “públicas”-estatais, criando rivalidades que inviabilizam as alianças e a unidade da diversidade em torno da verdadeira identidade universal, que é a identidade de classe, comum a todos(as), já que são, independente de sexo, sexualidade, cor, “etnia”, “raça”, escolaridade, local onde reside, lugar que ocupa na divisão social-técnica-hierárquica do trabalho, trabalhadores(as) assalariados(as), portanto, explorados(as), dominados(as) e oprimidos(as).

É ainda George (2003, p. 106) que identifica outras duas vantagens notáveis das políticas de identidade:

  1. a) em primeiro lugar, exacerbando todos os tipos de tensões no interior das comunidades, ela cria as condições que dão origem aos conflitos internos e às guerras civis. Mesmo quando essas tensões não chegam tão longe quanto à guerra aberta, elas mantêm as facções em ódio mútuo, e longe dos verdadeiros atores da cena mundial, que se tornam praticamente invisíveis; b) em segundo lugar, ela neutraliza a solidariedade (…); dificulta ou impossibilita as alianças nacionais ou internacionais e afasta o recurso à política autêntica.

Em suma, arremata a autora:

A política de identidade desperta a violência; reduz a solidariedade diante das vítimas dessa violência, que se tornam estranhas, produtos de uma essência diferente da sua e da minha. A discriminação e a opressão atingindo grupos determinados fortalecem o sentido de identidade e, deveriam, por causa disso, ser discretamente encorajadas. O sentimento de injustiça leva a vítima a escolher a sua própria vítima (GEORGE, 2003, p. 115).

Essa nova roupagem do velho racismo, utilizando os conceitos de etnia, cultura e slogans como “diversidade cultural”, “respeito às diferenças”, “multiculturalismo”, acaba servindo para fomentar a quebra da luta pela emancipação humana, colocando em seu lugar a inofensiva e institucionalizada luta pela cidadania e participação política nos marcos jurídico-legais do Estado de Direito burguês. Estruturas e causas são substituídas por fragmentos e contingências. O cidadão é o indivíduo cindido numa vida pública e outra privada, incapacitado de ser um ser humano integral. Na primeira forma de vida é igualado formal e juridicamente aos demais de forma abstrata, por meio da letra das leis, interpretadas de modo variado consoante a quantidade de dinheiro que se possui e pode dispender. Já na segunda, não é mais igual aos demais, as desigualdades sociais são sentidas de maneira crônica no cotidiano dos espaços de socialização, o que ele é depende do lugar que ocupa na divisão social-técnica-hierárquica do trabalho, terminando por condicionar suas escolhas entre alternativas e suas condições materiais e espirituais de existência. Assim sendo, as desigualdades sociais são reproduzidas e mantidas.

Falar em etnias e relações étnico-raciais, portanto, é outra maneira de eclipsar o racismo estrutural e emular a formação de novos grupos sociais, de novas identidades culturais, afastando, em proporção geométrica, os indivíduos sociais da consciência do seu em si (sua espécie) e para si (gênero humano), produzindo uma outra variação da alienação, que é a da falta de consciência de que a “generalidade humana e a individualidade são dois polos de um mesmo processo: a reprodução social” (LESSA, 1996, p. 92) e que só se reconhecendo no processo do desenvolvimento histórico do fazer-se e tornar-se ser social dos seres humanos, constituindo as sociabilidades humanas complexas, originando as individualidades, “o ser humano pode se reconhecer em sua própria história e se elevar ao seu ser-para-si” (LESSA, 1996, p. 89).

Lembremos da assertiva feita inicialmente de que uma nova sociabilidade necessita do engendramento de um novo ser humano, orientado por outros valores que não os da organização societária capitalista, justamente para poder se contrapor a eles, combate-los e superá-los, colocando em seu lugar novos valores, interesses e necessidades, mais elevados, porque sócio/humano/genéricos, trans-históricos. Para que as condições objetivas para isto sejam criadas, é imprescindível e urgente que se encontre meios de materializar tais valores em nossas práticas sociais, nos diferentes espaços que frequentamos e nos quais nos relacionamos. Por exemplo, nas escolas. Ao invés de estimular e reproduzir, através das atividades educativas, a concorrência e competição entre os estudantes, reforçando o egoísmo, o individualismo, o não compartilhamento de informações, desenvolver ações educativas de caráter transformador, que promovam a solidariedade, a cooperação, a partilha de conhecimento como condição para superação dos problemas e desafios lançados, de modo que tais valores sejam conscientemente internalizados, passando a nortear as relações sociais desses indivíduos nos diferentes lugares onde travam interação, estabelecendo e provocando, nos outros com quem socializam, contrapontos e reflexões, mas, principalmente, sendo semente para interpelação e intervenção nessas mesmas relações e realidade, evidenciando que outras formas de relações sociais e de produção (auto-organização, coletividade) são possíveis e mesmo desejáveis.

Este talvez seja um passo importante para a tomada de consciência da relação individual e social, individualidade e coletividade, de que os indivíduos, para desenvolverem sua individualidade, suas potencialidades, capacidades e mesmo descobri-las, necessitam do outro, do que ele sabe e partilha, uma vez que o ser humano é modelo para outro ser humano e tudo o que foi produzido e objetivado antes de nós contribui para que sejamos o que somos hoje, no presente. Como diz George (2003, p. 106), “no lugar de perguntarem o que podem fazer, é necessário que os indivíduos se preocupem sobretudo com o que eles são. A globalização econômica e política prosseguirá sem impedimento enquanto as pessoas continuarem psicologicamente cegas ao que se passa”.

Conquanto, ao invés de difundir e trabalhar com o conceito de etnia, identidades culturais, multiculturalismo, ou com slogans tais como “diversidade cultural” e “respeito às diferenças”, por tudo o que foi dito até aqui é extremamente vital resgatar e objetivar em ações práticas a concepção objetiva, porque histórica, de que o indivíduo é parte e membro do gênero humano, e que em suas práticas sociais cotidianas, ao escolher entre as alternativas postas, ainda que limitadas por sua condição de classe, econômico-social, estará fazendo escolhas, traduzidas em atos, entre valores, necessidades e interesses particulares e valores, necessidades e interesses sócio/humano/genéricos, sendo essencial pautar-se pelos mais elevados, que são os genéricos, porque levam em consideração o que é melhor, mais apropriado e adequado para produzir o bem comum e a vida boa para todos os seres humanos.

Colocar os interesses e necessidades do gênero humano como condição de valoração e orientação das escolhas individuais, particulares é ultrapassar o imediatismo e o presenteísmo das realizações egoísticas, um enfrentamento humanizador frente a uma vida cotidiana alienante e desumanizadora, é fazer da consciência do seu em si o seu ser para si, pensando nas consequências causais de suas ações à médio e longo prazo, avaliando como impactam a vida das demais pessoas. Como bem retratado por Lessa (2014, p. 36. Os parênteses são meus):

(…) é uma nova relação com o aqui e agora que expressa uma necessidade que não é espontânea. As demandas da vida cotidiana passam por um novo filtro e são avaliadas em uma nova escala valorativa. O que tem enorme importância na vida cotidiana alienada é [sempre parcialmente] substituído por outras necessidades e outros valores. A vida não pode ser mais predominantemente impulsionada pelas demandas que emergem do aqui e agora – ela deve ser impulsionada pela manutenção e desenvolvimento da relação do indivíduo com a história. (…) Não é possível o enriquecimento do indivíduo que advém de uma relação mais rica com a humanidade e com sua história sem que se expresse, também, no plano afetivo, no desenvolvimento de sua capacidade de sentir o mundo. (…) é uma relação do indivíduo consigo próprio que requer e possibilita a autoconsciência inerente à postura que se contrapõe às alienações cotidianas: a vida não vai ser mais determinada, no imediato e com a mesma intensidade, pelas demandas cotidianas. O que o indivíduo decidiu fazer de sua vida passa a jogar um peso bem maior. A reflexão e consciência do que se faz [e por que se faz)] passa a ser dele “uma segunda natureza”: a vida não vai ser levada pela vida (“deixa a vida me levar, vida leva eu”, como diz Zeca Pagodinho), mas será conduzida pelo indivíduo no limite em que isso for possível.

Ao colocar o gênero humano como prioridade em sua vida, influenciando suas decisões e ações, os indivíduos vão elevando sua consciência e compreendem que garantir as condições para o desenvolvimento de todos(as) é pressuposto para o desenvolvimento de cada um, das individualidades, dado que só assim poderão ser, realmente, ricas e diversas. “A contraditoriedade entre o genérico e o particular”, a tensão ineliminável entre ambos presente nos conflitos sociais “é um elemento fundamental na elevação à consciência, em escala social, do ser genérico dos homens (LESSA, 1996, p. 96).

É necessário identificar as necessidades genéricas, plasmá-las em formas sociais que sejam visíveis nas mais diversas situações, para que se tornem, de fato, operantes na cotidianidade. Valores como justiça, igualdade, liberdade, etc., surgem a cada período histórico como expressões concretas, historicamente determinadas, das necessidades genérico-coletivas postas pelo desenvolvimento da sociabilidade. Certamente, por serem expressões concretas, históricas, das necessidades humano-genéricas, o conteúdo desses valores se altera com o passar do tempo. Tais mudanças introduzem novos problemas nesse complexo, mas não alteram o fato de que tais valores são centrais na elevação à consciência, em escala social, da contradição singular/universal, gênero/indivíduo; e que, por sua vez, a elevação do patamar de consciência da contradição indivíduo/gênero influencia decisivamente na identificação mais precisa das necessidades genéricas historicamente surgidas (LESSA, 1996, p. 97).

É mais do que urgente e preciso que no lugar de igualdade de oportunidades (dar mais a quem tem menos) se lute por igualdade de condições (dar tudo cada vez mais a todos-as), para isso outros valores devem orientar nossa forma de pensar e ler o mundo, de senti-lo, no intuito de que se possa desenvolver relações sociais e produtivas de outra qualidade, superando o imaginário social racista reproduzido e reforçado pela maioria das instituições sociais (dado que o racismo é estrutural), inclusive as escolares, como alerta Almeida (2021, p. 71):

Já no século XX, na esteira do Estado Novo, o discurso socioantropológico da democracia racial brasileira seria parte relevante desse quadro em que cultura popular e ciência fundem-se num sistema de ideias que fornece um sentido amplo para práticas racistas já presentes na vida cotidiana. No fim das contas, ao contrário do que se poderia pensar, a educação pode aprofundar o racismo na sociedade.

A prova científica e rigorosa alcançada na segunda metade do século XX de que “raça” humana não existe não bastou e não foi suficiente para desfazer as crendices populares e representações que povoam o imaginário social racista de uma estrutura social racista que acaba por legitimar práticas sociais também racistas. O combate ao racismo exige posturas e práticas antirracistas, as quais poderão ser potencializadas caso os indivíduos sociais tomem consciência e apreendam o que de fato são (no seu em-si e para-si) enquanto seres sociais: parte e membros do gênero humano, o que se dá mediante o confronto mediado pelos conflitos sociais, cujas respostas exigem a escolha entre valores, interesses e necessidades sócio/humano/genéricos ou valores, interesses e necessidades particulares, imediatistas, individuais e individualistas.

Sobre negro/preto…

Qual é a designação mais adequada: negro ou preto? Na prática, influencia para se evitar o racismo ou, independente da terminologia usada, o racismo persiste? Tudo indica que a segunda alternativa é a verdadeira, pois, como demonstrado, o racismo é estrutural, sendo reforçado e reproduzido por todas as instituições sociais da sociabilidade capitalista. Então, não é preciso se preocupar com isso, por que não muda o fato de que tais pessoas, negras ou pretas, serão racializadas? Mas as palavras não nos auxiliam a comunicar e dar voz ao mundo, traduzindo-o? Se assim for, palavras inadequadas não podem mudar o significado e comprometer a compreensão sobre a própria realidade e a história?

Para Achile Mbembe, filósofo e historiador camaronês, “o conceito de escravo tende a se fundir com o de negro até estes se tornarem uma coisa só” (VALENTIM. “Negro ou Preto?…” Mídia Ninja, 2020). Não por outra razão, Richard Moore, “dono de uma livraria no Harlem e autor de O Nome “Negro” – sua origem e mal uso, diz que a palavra ‘Negro’ é tão ‘saturada’, tão ‘poluída’ com os estereótipos do homem branco, que ‘não há nada a ser feito, a não ser se livrar dela’” (JUNIOR. “O que há em um nome?…” QUILOMBHOJE, s/d).

Ao transportarem os africanos para as Antilhas e Américas os colonizadores europeus arbitrariamente os marcavam como “pretosmouros”, “mouros”, “negrinhos” e “negros”. “Dentro de um curto espaço de tempo, a palavra portuguesa negro (sem maiúscula) tornou-se o substantivo-adjetivo inglês “Negro” (JUNIOR. “O que há em um nome?…” QUILOMBHOJE, s/d). Porém, tanto no português quanto no inglês, seja “negro” (com minúscula) ou “Negro” (com maiúscula), a palavra é traduzida com o significado de “preto”.  Keith Baird discorda que a palavra “negro” seja sinônimo de “preto”. Em sua réplica, diz: “‘Negro’ não significa simplesmente ‘preto’, que seria o oposto simples, direto, de ‘branco’. Falamos sobre um ‘homem branco’ ou um ‘Cadillac branco”; podemos falar, como muitos infelizmente fazem, de um ‘homem negro’, mas nunca de um ‘Cadillac negro’” (JUNIOR. “O que há em um nome?…” QUILOMBHOJE, s/d).

A questão é que o significado das palavras vai sofrendo mutações no decorrer da história humana pela incidência de novas condições e circunstâncias histórico-sociais que acabam contribuindo para a ressignificação delas, como é o caso da palavra “negro”. Para o cientista político Cristiano Rodrigues, “a diferença no uso dos termos tem a ver com questões geracionais. Os movimentos negros, Movimento Negro Unificado (MNU), Cadernos Negros, passaram a adotar e reafirmar o sentido do termo negro na década de 1970” (“Negro ou Preto?…” Estado de Minas Gerais, 25 de janeiro de 2020), positivando-o para despojá-lo de todas as aplicações negativas para as quais foi usado, de modo que se tornasse motivo de orgulho. “No auge do Movimento Negro, se identificar como negro representava orgulho e identidade e era uma forma de exaltar a raça e a cor da pele, dissociando da imagem negativa que por muitos anos foi transferida ao aspecto de ser negro” (“É preto ou negro?…” IDBR – Instituto Identidades do Brasil, s/d). Esse movimento de ressignificação também contou com a participação crucial da música e da literatura.

Outro fator para a continuidade do uso do termo “negro” é que alguns órgãos e instituições governamentais, como o caso do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), refletindo a estrutura racista da sociabilidade capitalista e evidenciando o racismo estrutural, utilizam-no para o levantamento de dados em suas pesquisas. Para o IBGE, a categoria “negro” comporta “pessoas autodeclaradas como pretas e pardas”, já que os “negros” “representam mais de 56% da população brasileira” (“Preto ou negro?…” UOL, 25 de agosto de 2021).

Para o antropólogo Messias Basques, em termos de censo, “importa pouco se há categoria negro, preto ou pardo, pois lembra que são todos sujeitos racializados; ‘não-brancos’” (“Preto ou negro?…” UOL, 25 de agosto de 2021). Consoante suas palavras:

Estão em grupos sociais mais vulneráveis, em uma hierarquia de relações que os contrapõe aos brancos, que recebem um legado histórico de privilégio por não serem vítimas de desigualdades de raízes históricas do escravismo e da escravização de pessoas de ascendência africana e indígena (“Preto ou negro?…” UOL, 25 de agosto de 2021).

Já para a jornalista e pesquisadora Rosana Borges, “a categoria ‘negro’, do ponto de vista sociológico e demográfico, é importante para pensar esse Brasil não-branco e como essas pessoas sofrem por serem não-brancas. Esse marcador é fundamental e é importante” (“Negro ou Preto?…” Estado de Minas Gerais, 25 de janeiro de 2020).

Constata-se, portanto, que as justificativas são variadas. Cabe tomar uma posição a respeito delas. Seria fundamental que para isso se tivesse como pressuposto o fato de que todo indivíduo social é parte/membro do gênero humano e é graças a ele que se faz enquanto individualidade, através das conquistas e possibilidades herdadas desse mesmo gênero humano ao longo da história humana. Infelizmente, isso não acontece, porque a sociabilidade capitalista inculca, reforça, reproduz outros valores, privilegiando o imediato, o particular, em detrimento do médio e longo prazo, do universal e do coletivo, o que é preciso combater para que sejamos capazes de empreender atitudes e comportamentos antirracistas, cultivando outros valores, interesses e necessidades pautados no que diz respeito ao sócio/humano/genérico como critério parametrador de nossa forma de pensar, ser e interagir, desracializando as relações sociais e produtivas e eliminando, de uma vez por todas, todas as formas de marcadores sociais.

Enquanto isso não acontece, dado que depende de uma organização política-social da classe trabalhadora e seus segmentos, bem como da retomada do controle dos meios de produção da riqueza social pelos próprios(as) produtores(as) livremente associados(as), uma escolha deve ser feita. Negro(a) ou preto(a)? Acredito que o peso histórico da negatividade do termo “negro” é incomensuravelmente maior do que a positividade de sua ressignificação pelos movimentos negros nas diferentes esferas e instituições da vida social. São centenas de anos contra algumas décadas, e o estrago feito no imaginário social e na cultura popular criaram raízes profundas, as quais ainda não se conseguiu arrancar e extirpar para que deixe de influenciar as representações que os indivíduos constroem da realidade. Para além das representações, é preciso auxiliá-los na construção das mediações.

Não sou simpatizante do colorismo, o qual afirma que a cor da pele determina os graus de preconceito sofrido por uma pessoa, já que o fator do branqueamento artificial demonstra que, em última instância, a condição econômica (condições materiais de existência) é determinante, como argumentado por Lucy Parsons, embora numa sociabilidade estruturalmente racista, indubitavelmente, as relações sociais sejam atravessadas pelos preconceitos e discriminações da cor de pele, como é possível testemunhar nas situações do cotidiano.

Ainda assim, trazendo uma outra reflexão de Richard Moore, “preto é uma designação de cor solta que não está conectada com a terra, história e cultura. Enquanto eu reconheço como um passo em frente na direção de se livrar do termo ‘negro’, acho que é necessário dar o passo seguinte” (JUNIOR. “O que há em um nome?…” QUILOMBHOJE, s/d). Nessa perspectiva, preto teria uma carga menos negativa, mesmo assim, ainda não seria o mais apropriado.

Por outro lado, como frisa Almeida (2021, p. 67): “(…) uma pessoa não nasce branca ou negra, mas torna-se a partir do momento em que seu corpo e sua mente são conectados a toda uma rede de sentidos compartilhados coletivamente, cuja existência antecede a formação de sua consciência e de seus afetos”. Logo, o racismo conforma a subjetividade dos sujeitos[7] assujeitados, de modo que

pessoas negras podem reproduzir em seus comportamentos individuais o racismo de que são as maiores vítimas. Submetidos às pressões de uma estrutura social racista, o mais comum é que o negro e a negra internalizem a ideia de uma sociedade dividida entre negros e brancos, em que brancos mandam e negros obedecem. Somente a reflexão crítica sobre a sociedade e sobre a própria condição pode fazer um indivíduo, mesmo sendo negro, enxergar a si próprio e ao mundo que o circunda para além do imaginário racista. Se boa parte da sociedade vê o negro como suspeito, se o negro aparece na TV como suspeito, se poucos elementos fazem crer que negros sejam outra coisa a não ser suspeitos, é de se esperar que pessoas negras também achem negros suspeitos, especialmente quando fazem parte de instituições estatais encarregadas da repressão, como é o caso de policiais negros (ALMEIDA, 2021, p. 68).

Também deve-se considerar que “assim como o privilégio faz de alguém branco” (o branqueamento artificial), “são as desvantagens sociais e as circunstâncias histórico-culturais, e não somente a cor da pele ou o formato do rosto, que fazem de alguém negro” (ALMEIDA, 2021, p. 77). Um ponto interessante a ressaltar, porque contraditório, é que mesmo aquele indivíduo que tem a cor branca pode vir a “sentir na pele” o que vive e sente alguém que é preto, isto porque os brancos dos países periféricos não têm o “sangue puro”, em sua ascendência (árvore genealógica familiar) e ancestralidade (porções genéticas herdadas de gerações anteriores e possíveis origens geográficas, decodificadas pelo DNA), uma vez que “sempre haverá um índi(gena) ou um negro em sua linhagem para lhe imprimir algum ‘defeito’” (ALMEIDA, 2021, p. 79), o que se denomina de one drop rule (regra de uma gota de sangue). A esse respeito, nos diz ainda Almeida (2021, p. 79): “o pavor de um dia ser igualado a um negro é o verdadeiro fardo que carrega o homem branco da periferia do capitalismo e um dos fatores que garante a dominação política, econômica e cultural dos países centrais”.

Apesar de tudo, após esse panorama de algumas das muitas contradições e polêmicas que envolvem o assunto, sendo coerentes com a ontologia dos seres sociais, temos de superar ambas as classificações terminológicas, porque nosso respaldo é a história do tornar-se humano dos seres humanos e da necessária tomada de consciência de que só nos fazemos enquanto indivíduos e individualidades através da complexificação da socialização e da vida social, ao nos apropriar e sistematizar o patrimônio histórico-cultural acumulado e decantada pelas várias gerações que nos antecederam no desenvolvimento do processo histórico-social. Essa consciência é condição para o resgate e reposição, atualizada, dos valores, interesses e necessidades sócio/humano/genéricos, trans-históricos, capazes de destruir e superar todas as formas de marcadores sociais: étnicos, culturais, raciais, sexuais, de sexualidade, de classe.

Os nós – impasses e contradições a enfrentar: para não finalizar…

O modo de combate aqui defendido e proposto é uma tarefa de proporções hercúleas, porque contra-hegemônica, enfrentando todos os tipos de resistência, provenientes dos mais variados setores (direita, intelectuais, movimentos sociais, estudantes, educadores, instituições educacionais, dentre outros). No entanto, não é impossível. Lembremos o que enfatiza Fischer (2020, p. 149 e 151) “se quisermos avançar, estamos obrigados a redescobrir o desejo de ganhar e a confiança de que podemos ganhar (…) até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável”.

Ainda que a classificação por “raça” dos seres humanos não se aplique, sendo inapropriada e inoperante, frente ao racismo estrutural vivenciado no cotidiano é preciso problematizar e discutir sobre as razões de seu uso nas ciências sociais em determinados períodos históricos e como passa a influenciar a forma de pensar, sentir e interagir dos indivíduos sociais, constituindo as subjetividades e conformando o imaginário social racista reproduzido pela cultura popular. Todo o trajeto feito neste artigo deve ser refeito quando se for inquerido sobre o assunto/temática. É preciso desenvolver toda a análise e reflexão aqui expostas, independente do espaço onde se esteja (no bar, na escola, na casa de amigos ou parentes, no clube, na igreja, no sindicato, etc.), preocupando-se, tão somente, em adequar a linguagem e discurso em consonância com o tipo de público para que o conteúdo seja assimilado e compreendido.

Nessa direção, o alerta de Almeida (2021, p. 57) é mais do que procedente: “Em um mundo em que a raça define a vida e a morte, não a tomar como elemento de análise das grandes questões contemporâneas demonstra a falta de compromisso com a ciência e com a resolução das grandes mazelas do mundo”. A raça pode não existir, mas o racismo persiste, manifestado em atitudes, comportamentos e posicionamentos racistas, além das relações raciais que aprofundam as desigualdades sociais. Como diz Wade (2021, p. 81), “o racismo e a discriminação contra aquelas pessoas até então referidas como membros de grupos raciais continuam na mesma intensidade ou têm até aumentado”, ainda que a utilização do termo “raça” esteja em extinção na literatura e seja rejeitado em várias áreas científicas.

O mesmo procedimento adotado para analisar e discutir o conceito de “raça” deve ser aplicado aos demais assuntos/temáticas, como etnia, negro, preto para que se possa construir e chegar à conclusão de que tais denominações corroboram para esmaecer da consciência dos indivíduos sociais o que eles efetivamente são: parte e membros do gênero humano. Se uma pessoa de trinta e poucos anos naufragasse e conseguisse chegar até uma ilha remota, ela certamente conseguiria sobreviver, porque, na realidade, não estaria sozinha, mas acompanhada com o conhecimento acumulado pela humanidade, que lhe foi transmitido ao longo do seu processo de socialização e mesmo escolarização (independente se tenha apenas o ensino fundamental, ou tenha concluído a educação básica, ou mesmo se conseguiu ou não cursar uma graduação qualquer). Ela carrega consigo a sociedade, os saberes e conhecimentos de milhares de milhões de indivíduos, os quais lhe permitirão sobreviver em qualquer lugar. Esse é um exemplo bem elucidativo do que é ser parte/membro do gênero humano e como/quanto a produção desse gênero auxilia no desenvolvimento da nossa individualidade e individuação, das nossas habilidades e capacidades.

O problema é que esse tipo de reflexão e análise: histórica, materialista e dialética, não é facilmente apreendida, não é alcançada de imediato, exige esforço, tempo e “paciência do conceito”, no dizer de Hegel. Geralmente, as pessoas não gostam do que dá trabalho, preferem o caminho do menor esforço e que apresente menos dificuldades. Ademais, para enfrentar as questões práticas da vida cotidiana, que exigem respostas imediatas, muitas vezes temos que lançar mão de algumas táticas para conseguir realizar a estratégia. Essas são as contradições experimentadas por aqueles(as) que tomam ciência do que são e do que a realidade efetivamente é. Assim, talvez num primeiro momento, ter-se-á de utilizar o termo “preto” em contraposição ao “negro” (apesar dos esforços de ressignificação dos movimentos negros da década de 1960 e 1970) como mediação para criar as condições subjetivas para poder, na sequência, avançar para além dele.

Outras questões táticas dizem respeito aos impasses e contradições das políticas de identidade (identidade cultural, diversidade cultural, etnias, etc.) e/ou afirmativas (relativas as minorias que, de fato, nada têm de minoria). Novamente, no campo do imediato, não há dúvida de que é preciso amenizar o sofrimento dos que sofrem (caso dos que estão passando fome. Hoje, mais de 33 milhões de brasileiros-as), mas com a clareza de que isso não erradica o problema, pois a raiz dele não é tocada, nem arrancada. Isto significa que garantir um auxílio pecuniário emergencial ou uma cesta básica mensal não alterará o fato de que milhares de milhões de seres humanos continuarão sendo explorados(as), dominados(as), oprimidos(as), sofrendo com preconceitos, discriminações, racismos, racialismos e toda sorte de opressões. Talvez alguns dos trabalhos comunitários, sociais realizados pelos Panteras Negras, nos Estados Unidos, como o “café da manhã para crianças” (HAMPTON, 2020, p. 115 a 125) seja um bom ponto de partida para nossa reflexão de como amenizar o sofrimento e miséria das pessoas e, ao mesmo tempo, ir politizando-as para que se mobilizem, organizem e lutem para transformar essa realidade desumanizadora, atacando a raiz dos problemas sociais, descobrindo, na prática da auto-organização e da luta, a capacidade que têm de se autogovernar.

Também está na ordem no dia a questão relativa às interdeterminações entre raça e classe. Para Almeida (2021, p. 185), saber se na luta contra a desigualdade se deve dar prioridade à classe ou à raça é um falso dilema. Como diz Hampton (2020, p. 153):

(…) nunca negamos o fato de que há racismo na América, mas dissemos que o subproduto, o que decorre do capitalismo, resulta ser o racismo. Que o capitalismo vem primeiro e depois vem o racismo. Que quando eles trouxeram escravos para cá, o fizeram para ganhar dinheiro. Então, primeiro veio a ideia de que queriam fazer dinheiro, então os escravos vieram com esse objetivo. Isso significa que o capitalismo tinha que [vir antes]; em termos históricos, o racismo tinha que vir do capitalismo. Tinha que haver o capitalismo primeiro e o racismo foi um subproduto dele.

Entende-se, assim, porque capitalismo e racismo são e estão interdeterminados,  imbricando-se/interseccionando-se[8], como também o fato de o racismo ser estrutural à sociabilidade capitalista. Daí a importância de não tratar o racismo como “uma questão lateral, que pode ser dissolvida na concepção de classe”, pois a classe é morfologicamente diversa, variando a situação concreta (condição de vida e trabalho) dos(as) trabalhadores(as) assalariados(as) ou desassalariados(as) conforme a posição que ocupam (ou deixam de ocupar, passando a sobreviver de bicos ou trabalhos intermitentes, temporários) na divisão social-técnica-hierárquica do trabalho, definida, dentre outros fatores, por questões raciais. Enfatiza Almeida (2021, p. 185): “são indivíduos concretos que compõem as classes à medida que se constituem concomitantemente como classe e como minoria nas condições estruturais do capitalismo. Assim, classe e raça são elementos socialmente sobredeterminados”.

Numa sociabilidade capitalista, de classes, a consciência de classe deve também abarcar a consciência do problema racial, afinal, o sistema capitalista é a protoforma do racismo, de modo que esse perpassa as classes. Novamente, é Almeida (2021, p. 187) quem faz os esclarecimentos necessários:

Historicamente, o racismo foi e ainda é um fator de divisão não apenas entre as classes, mas também no interior das classes. Nos momentos de crise, em que há aumento do desemprego e rebaixamento dos salários, o racismo desempenha um papel diversionista bastante importante, pois os trabalhadores atingidos pelo desemprego irão direcionar a sua fúria contra as minorias raciais e sexuais, que serão responsabilizadas pela decadência econômica por aceitarem receber salários mais baixos, quando não pela “degradação moral” a que muitos identificarão como motivo da crise. O racismo será, portanto, a forma dos trabalhadores brancos racionalizarem a crise que lhes trouxe perdas materiais e lidarem com as perdas simbólicas (…) impostas pelas vitórias da luta antirracista e pela mínima representatividade alcançada pelas minorias raciais.

Apesar de classe e raça se sobredeterminar, interdeterminar, imbricar, não é menos verdadeiro o fato de que “o sofrimento ao qual o povo negro está sujeito, aos quais os povos marrons estão sujeitos, aos quais quaisquer povos de cor ou povos de grupos minoritários ou povos pobres estão sujeitos” (SEALE, 2020, p. 147) revela que, em última instância (o que nunca é demais frisar, pois não é um determinismo mecânico, mas uma determinação reflexiva e dialética da materialidade das condições de existência sob o sistema metabólico do capital), o que unifica a todos, porque identifica a raiz dos variados modos e intensidade de sofrimentos, expondo aquilo que têm em comum: a exploração, dominação e as variadas opressões do sistema capital e suas personas, os capitalistas. Por isso, “os movimentos da classe trabalhadora podem superar divisões significativas para se unir em torno de questões como pobreza, corrupção e brutalidade policial” (MCCANNE, 2020, p. 233), porque, no final das contas, “o sofrimento não vê cor, (…) as vítimas do imperialismo, do racismo, do colonialismo e do neocolonialismo vêm em todas as cores e (…) estas vítimas precisam de uma unidade baseada em princípios revolucionários ao invés da cor de pele” (CLEAVER, 2020, p. 139).

Uma das maneiras de evitar a unidade dos trabalhadores(as)[9] é o culto da individualidade dos indivíduos, das suas singularidades e subjetividades, o que se materializa através da defesa da identidade cultural, ou étnica-racial. Esse novo formato do racismo – uma vez que numa “sociedade que se apresenta como globalizada, multicultural e constituída de mercados livres, ‘o racismo já não ousa se apresentar sem disfarces’ – passa “da destruição das culturas e dos corpos com ela identificados para a domesticação de culturas e de corpos” (ALMEIDA, 2021, p. 72). Nessa nova dinâmica, o grupo discriminado é enquadrado “em uma versão de humanidade que possa ser controlada, na forma do que podemos denominar um sujeito colonial. Em vez de destruir a cultura, é mais inteligente determinar qual o seu valor e seu significado” (ALMEIDA, 2021, p. 73).

As palavras de George (2003) ecoam mais uma vez, lembrando que as políticas de identidade contribuem para dividir a classe em grupos particulares, com dificuldade de articulação para desenvolver lutas em comum, terminando por disputar, concorrer e gladiar entre si, perdendo de vista o que realmente importa, aquilo que os(as) une enquanto classe trabalhadora: a venda de sua força de trabalho, tornando a todos(as) mercadorias. A diferença está na quantidade e intensidade das explorações e opressões, onde adentram outras determinações, como as raciais, de escolaridade, de sexo, de sexualidade, etc.. Ao separar a classe trabalhadora em grupos através da ênfase em suas particularidades, em sua identidade cultural, étnica-racial, fragmenta-se sua força e capacidade de luta.

Ter o povo pensando e agindo individualmente auxilia a classe dominante em sua exploração e opressão em todo o mundo e no geral, e na exploração, opressão e perpetuação do racismo contra o povo negro, em particular. Todas as leis e instituições da sociedade estão estruturadas para produzir o pensamento e a ação individual. Isso previne os povos oprimidos e explorados de enxergarem seus problemas como problemas coletivos (COX; MARSHALL, 2020, p. 112).

Não se está com isso afirmando que a luta do Movimento Negro Unificado, nas décadas de 1960 e 1970, para ressignificar o “negro” e positiva-lo perante o racismo vigente nas relações sociais e de produção capitalista não tenha valor. Não é isso! Talvez nos façamos entender melhor utilizando das palavras de Cleaver (2020, p. 143): “um amor imortal pelo povo negro que nega a humanidade de outros povos está condenado. Foi o amor imortal do povo branco por si mesmo que os levou a negar a humanidade dos povos de cor e que despojou os próprios brancos de humanidade”. Nunca é demais lembrar que “não temos cultura além da cultura nascida da nossa resistência à opressão (…). Nunca se fará o colonialismo ruborizar de vergonha esfregando perante seus olhos nossos pouco conhecidos tesouros culturais” (HARRISON, 2020, p. 109).

Temos a cultura dos oprimidos, dos explorados, dos dominados em contraposição à cultura dos opressores, exploradores, dominadores, que é apresentada e propagada como a cultura universal, sendo, na verdade, um falso universal. Temos, portanto, consecutivamente, a cultura essencialmente humana versus a cultura humana desumanizada, a igualdade (de condições) versus a diversidade cultural e respeito às diferenças (“não existe nem nunca existirá respeito às diferenças em um mundo em que pessoas morrem de fome ou são assassinadas por cor da pele” – ALMEIDA, 2021, p. 190 –, por seu sexo, por sua sexualidade, por ser pobre).

Um outro aspecto que deve ser ressaltado é sobre o mito e ideologia da democracia racial, devido, em grande parte, à Gilberto Freyre e sua obra Casa Grande e Senzala, parte do movimento da década de 1930 conhecido por pensamento social brasileiro, cuja preocupação era explicar a constituição e formação econômico-social brasileira em sua totalidade, isto é, considerando todas as suas dimensões: cultural, política, econômica, social, artística, criando uma identidade nacional. A década de 1930 corresponde à fase de acentuação da modernização e industrialização do Brasil, exigindo a “unificação nacional e a formação de um mercado interno”, desenvolvendo “toda uma dinâmica institucional para a produção do discurso da democracia racial, em que a desigualdade racial – que se reflete no plano econômico – é transformada em diversidade cultural e, portanto, tornada parte da paisagem nacional” (ALMEIDA, 2021, p. 107). “Trata-se de um esquema muito mais complexo, que envolve a reorganização de estratégias de dominação política, econômica e racial adaptadas a circunstâncias históricas específicas” (ALMEIDA, 2021, p. 179), pois o processo de modernização e industrialização exigia toda a força de trabalho disponível, absorvendo os trabalhadores(as) pretos(as), que passam a ser incorporados definitivamente à classe trabalhadora e popular urbana. A necessidade de corpos pela indústria, independente da cor – como também do lugar geográfico e, posteriormente, do sexo –, fez com que em 1951 fosse aprovada a lei Afonso Arinos, que transformava o preconceito e a prática da discriminação racial em contravenção penal.

Também é preciso discorrer sobre a tentativa absurda de fazer as pessoas acreditarem na existência de um racismo reverso. Sobre esse assunto, além de Rita Von Hunty (“Racismo Reverso, BBB e Outras Ficções”. Tempero Drag, 2019), temos a explanação de Almeida (2021, p. 53 e 54):

(…) é absolutamente sem sentido a ideia de racismo reverso. O racismo reverso seria uma espécie de “racismo ao contrário”, ou seja, um racismo das minorias dirigido às maiorias. Há um grande equívoco nessa ideia porque membros de grupos raciais minoritários podem até ser preconceituosos ou praticar discriminação, mas não podem impor desvantagens sociais a membros de outros grupos majoritários, seja direta, seja indiretamente. Homens brancos não perdem vagas de emprego pelo fato de serem brancos, pessoas brancas não são “suspeitas” de atos criminosos por sua condição racial, tampouco têm sua inteligência ou sua capacidade profissional questionada devido à cor da pele. (…) O termo “reverso” já indica que há uma inversão, algo fora do lugar, como se houvesse um jeito “certo” ou “normal” contra minorias – negros, latinos, judeus, árabes, persas, ciganos, etc. – porém, fora destes grupos, é “atípico”, “reverso”. O que fica evidente é que a ideia de racismo reverso serve tão somente para deslegitimar as demandas por igualdade racial. Racismo reverso nada mais é do que um discurso racista, só que pelo “avesso”, em que a vitimização é a tônica daqueles que se sentem prejudicados pela perda de alguns privilégios, ainda que tais privilégios sejam apenas simbólicos e não se traduzam no poder de impor regras ou padrões de comportamento.

De fato, a vida dos brancos não corre risco por serem brancos, ao contrário do que acontece com os pretos, ainda mais se são pretos pobres. Os pretos ricos, caso tenham tempo, seja permitido e haja condições para se identificar, conseguem preservar suas vidas. Brancos não foram impedidos de frequentar as escolas públicas, como aconteceu com as pessoas pretas no Brasil através da prescrição da primeira lei de educação: Lei nº1, de janeiro de1837: “São proibidas de frequentar as escolas públicas: (…) os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”.

Por último, é necessário falar sobre a luta pela ocupação de postos, cargos, funções de representatividade pelas pessoas pretas e de como isto não significa, nem pode ser confundido, com poder real, isto porque “visibilidade negra não é poder negro”, pois “o fato de uma pessoa negra estar na liderança, não significa que esteja no poder”. A razão para isso é que “a representatividade é sempre institucional e não estrutural, de tal sorte que quando exercida por pessoas negras, por exemplo, não significa que os negros estejam no poder” (ALMEIDA, 2021, p. 110, 111 e 112). Mais do que isso, o fato de ter uma pessoa preta em postos, cargos, funções de reconhecimento e notoriedade econômica, política, cultural ou social não significa que estarão defendendo e zelando pelos interesses e necessidades das pessoas pretas e demais “minorias” marginalizadas, pobres, trabalhadoras, exploradas, oprimidas e empobrecidas, dado que sua subjetividade pode ter sido capturada e assujeitada aos interesses e necessidades daqueles que detêm a hegemonia política por ter a dominância econômica (geralmente brancos ou aqueles que passam por um processo de “branqueamento”), de modo que seus esforços, objetivos e lutas acabem caminhando para reforçar o sistema capitalista, buscando criar, por exemplo, um capitalismo negro (“Dizemos que não se combate o capitalismo com nenhum capitalismo negro” – HAMPTON, 2020, p. 119), um Estado negro, uma comunidade negra, um antirracismo de mercado, como diz Jones Manoel (“Identidade, identitarismo e a crítica marxista”. Jones Manoel, 2020), fazendo a manutenção das desigualdades socioeconômicas.

Estas são algumas das questões que geram impasses e estão permeadas por contradições de diversas ordens. Não há condições, dentro das limitações de formatação deste escrito, de explorar todas elas. Procurou-se abordar aquelas entendidas como candentes no tempo presente. Espera-se ter jogado luz à necessidade imprescindível de analisar e refletir sobre os conceitos, explorando suas raízes históricas, bem como as transformações ocorridas mediante as exigências impostas por novas condições, circunstâncias e determinações histórico-sociais para garantir a manutenção da hegemonia dos que dominam e da reprodução da sociabilidade capitalista e do sistema metabólico do capital. Daí a indubitável relevância na escolha e utilização dos conceitos, no cuidado para que sejam os mais adequados e apropriados possíveis para traduzir concretamente o real, uma vez que influenciam, ora direta ora indiretamente, na forma como compreendemos, pensamos, somos (é, está sendo e virá a ser) e interagimos entre nós e com o mundo. Não se trata de uma mera questão acadêmica. Precisamos organizar, sistematizar o que vivemos (o concreto pensado) para poder apreender o que estamos sendo, verificando se está de acordo com aquilo que verdadeiramente somos enquanto seres sociais, que ao produzir seus meios de produção/reprodução materiais/espirituais se reproduzem como indivíduos e gênero humano.

O processo de socialização e escolarização mediado pela sociabilidade capitalista produz, reforça e faz com que internalizemos certos valores, percebidos como sócio/humano/genéricos, quando, na verdade, não o são. Correspondem, efetivamente, a parâmetros norteadores necessários para a reprodução das relações sociais e de produção capitalistas, pautados na concorrência, na competição, no individualismo, na desigualdade, razão pela qual se emulam, nas relações travadas nos diversos espaços e ambientes que frequentamos, como é o caso das instituições escolares, atividades que promovem a disputa entre os indivíduos, com prêmios e punições para ganhadores e perdedores, reproduzindo as hierarquias, as distinções e divisões sociais, os estereótipos e marcadores sociais, as discriminações, bem como a quebra da possibilidade de solidariedade entre os indivíduos, de ver no outro sua continuidade e não sua limitação.

Enfim, não é possível concluir nem finalizar, porque há um longo e árduo trabalho a ser feito e caminho a ser percorrido. Entretanto, nesse caminhar e ao executar as ações e atividades interativas e educativas, é preciso ter como ponto de partida a premente necessidade de descontruir e desvelar os consensos fabricados – e que têm hegemonia sobre o senso comum –  em torno dos conceitos de etnia, identidade cultural, negro, preto, utilizando para isso a referência aos valores, interesses e necessidades sócio/humano/genéricos, resgatando e retomando o gênero humano como critério ético de valoração das ações e situações objetivadas e vividas pelos indivíduos sociais, o que não é prática social comum, mas uma prática contra-hegemônica e revolucionária, que precisa ser construída e propagada, pois só assim se poderá formar/educar um novo e outro ser humano para uma nova e outra forma de sociabilidade e organização social.


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Notas

[1] Professora adjunta da Universidade Federal do Piauí (UFPI), mestre em Ciências Sociais (UNESP/Marília), doutora em Educação (UNICAMP/SP). Lotada no curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC), Teresina, Piauí. Pesquisadora do NETSS (Núcleo de Estudos Trabalho, Saúde e Subjetividade), Unicamp/SP, Faculdade de Educação e do NESPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação e Emancipação Humana), da UFPI, Teresina. E-mail: iaeldeo@gmail.com

[2] Referente ao “pertencimento de classe explicitado na capacidade de consumo e na circulação social. Assim, a possibilidade de ‘transitar’ em direção a uma estética relacionada à branquitude, e manter hábitos de consumo característicos da classe média, pode tornar alguém racialmente ‘branco’” (ALMEIDA, 2021, p. 56). Já a branquitude pode ser definida como “uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantém e são preservados na contemporaneidade” (SCHUCMAN apud ALMEIDA, 2021, p. 75).

[3] Ver SOUZA, Iael de. A superação da cisão indivíduo/gênero – necessidades, interesses e valores sócio, humano, genéricos. Revista Trabalho Necessário, v. 17, nº 33, maio-agosto 2019.

[4] “(…) determinadas descobertas dos homens, por sua relevância para o enriquecimento da humanidade, não se perdem na história. São duradouras e trans-históricas, permanecendo como conquistas do gênero humano, sendo, por isso, valoradas positivamente como parte da riqueza humana historicamente produzida e podendo ser resgatadas pelos homens em momentos específicos como exigências éticas e políticas humano-genéricas” (BARROCO, 2010, p. 75-76).

[5] “Historicamente, a palavra etnia significa ‘gentio’, proveniente do adjetivo grego ethnikos. O adjetivo se deriva do substantivo ethnos, que significa gente ou nação estrangeira. É um conceito polivalente, que constrói a identidade de um indivíduo, resumida em: parentesco, religião, língua, território compartilhado e nacionalidade, além da aparência física. (…) Etnia refere-se ao âmbito cultural; um grupo étnico é uma comunidade humana definida por afinidades linguísticas, culturais e semelhanças genéticas. Essas comunidades geralmente reclamam para si uma estrutura social, política e um território” (SANTOS et. al., 2010, p. 122 e 124).

[6] Na verdade, não se trata de minorias, mas um contingente significativo que faz parte da maioria, fruto da excludência imanente do desenvolvimento desigual e combinado do modo de produção capitalista, logo, não excluídos a serem incluídos, pois o capitalismo não é capaz de incluir a todos(as), ainda mais quando se alimenta e reproduz devido a existência e manutenção das desigualdades sociais.

[7] O próprio professor Sílvio Almeida confessa que “mesmo sendo um homem negro, só (foi) ‘despertado’ para a desigualdade racial ao (seu) redor pela atividade política e pelos estudos” (ALMEIDA, 2021, p. 62). Nesse processo, foram os questionamentos às normas que produzem as normalizações que naturalizam as relações e práticas sociais que o tiraram do estado de “sono encantado do cotidiano”.

[8] “(…) as formas contemporâneas do racismo são produtos do capitalismo avançado e da racionalidade moderna, e não resquícios de um passado não superado. O racismo não é um resto da escravidão, até mesmo porque não há oposição entre modernidade/capitalismo e escravidão. A escravidão e o racismo são elementos constitutivos tanto da modernidade, quanto do capitalismo, de tal modo que não há como desassociar um do outro” (ALMEIDA, 2021, p. 183).

[9] A unidade incorpora por superação os particularismos (o que não significa negligenciá-los, ao contrário, trata-se de incorporá-los no projeto político-social de organização societária que se deseja concretizar).

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1 comentário em “Raça, etnia, negro, preto ou gênero humano? Conceitos, leitura de mundo e reflexo nas formas de pensar, ser e interagir”

  1. Este artigo traz uma reflexão muito interessante sobre a consciência de classe e a falsa consciência, que muitas vezes nos é imposta. É importante lembrar que, para garantir a nossa reprodução, dependemos da venda da força de trabalho, e isso nos une a todos os membros da classe trabalhadora. Minha pergunta é: de que maneiras podemos combatir a falsa consciência e a divisão social-técnica-hierárquica do trabalho?

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