Extração de Mais-Valia, Repressão da Sexualidade e Catolicismo na América Latina

Por Otto Maduro, Ph.D., via Encontros com a Civilização Brasileira, traduzido por Marcos Augusto Gonçalves e transcrito por Luca Uras.

Publicado originalmente na revista Encontros com a Civilização Brasileira, No. 3, de setembro de 1978. Otto Maduro é professor-assistente da Universidade de Los Andes, Mérida, Venezuela. Este Trabalho, que ora traduzimos, foi apresentado no Seminário Cultura, Religião e Prática Social na América Latina, realizado em Bogotá, de 22 a 26 de outubro de 1977.

I ㅡ INTRODUÇÃO

Iniciemos estas reflexões com uma suspeita: o último reduto, o mais sólido e importante, da funcionalização conservadora do cristianismo contemporâneo, reside na moral sexual oficial das principais igrejas e seitas cristãs. Do contrário, por que o persistente tabu a respeito, inclusive nos ambientes latino-americanos mais avançados, cristão e ateus igualmente?

O delineamento desta suposição provém da experiência militante do autor ㅡ na Venezuela ㅡ durante onze anos de trabalho com grupos de jovens católicos de setores médios e populares e grupos de sacerdotes e religiosas, igualmente desses setores. Desde o primeiro semestre de 1977, o autor engajou-se ㅡ desta feitas nos andes venezuelanos ㅡ num trabalho de auto-investigação em meios análogos, colaborando no delineamento de uma averiguação sociológica sobre a realidade e a vivência da família e a sexualidade. Ainda que o quadro sistemático e o processamento de dados dessa averiguação não se encontrem concluídos, o trabalho realizado até agora nesse sentido (e que tende, entre outras coisas, a confrontar a suposição anterior com a realidade sócio-cultural da religião em questão) parece sugerir que mantenhamos as proposições contidas neste texto de discussão.

II ㅡ QUESTÕES PRÉVIAS

Estas linhas pretendem e esperam ser uma contribuição de um sociólogo venezuelano da religião à definição de um tipo particular de política de mudança social. Na realidade, somos de opinião de que toda política de mudança social ㅡ com pleno conhecimento ou não ㅡ se define pelos próprios setores sociais no quais se apóia e pelo modelo de sociedade que lhe serve de orientação. O tipo particular de política de mudança que propomos, busca apoiar-se nas classes populares do continente e aponta para a construção de comunidades nacionais independentes, socialistas e autogestionadas.

Pensamos, igualmente, que a viabilidade de uma política de mudança social implica no prévio conhecimento dos fatores, tanto coadjuvantes quanto obstaculizadores, que podem afetar a realização dos objetivos correspondentes; somente tal conhecimento pode fundar a “redução de obstáculos” e a “maximização de elementos coadjuvantes” que requer todo plano eficaz de desenvolvimento sócio-econômico e político-social.

Este trabalho busca, simplesmente e sobretudo, discernir e destacar a importância de um tipo particular de obstáculos para a realização da política de mudança social com a qual nos identificamos. Para nos situarmos na perspectiva ㅡ que também fazemos nossa ㅡ de quem nos tem solicitado esta contribuição, digamos que aqui propomos um ponto para um referencial de análise de relação entre cultura, religião e prática social na América Latina de hoje em dia, e isto, em função de fixar, a partir de uma orientação sociológica, políticas de mudança social que centrem sua atenção sobre as práticas populares.

Neste sentido, esboçaremos aqui algumas relações socialmente significativas dos três “fatores” que se seguem, considerando-os como relativamente autônomos:

  1. uma certa religiosidade de importante impacto nas massas populares do continente;
  2. uma certa percepção da sexualidade promovida e/ou reforçada por algumas instituições religiosas na América Latina; e
  3. uma prática política caracterizável como submissa, secundária e descontínua.

O esboço teórico destas relações, pretendemos realizá-lo desde uma ótica parcial, parcializada, conjuntural e provisória que se alimenta de uma perspectiva teórica peculiar (uma sociologia crítica da religião inspirada no marxismo e aberta à problemática de Willhelm Reich, Ronald Laing e do feminismo radical anglo-latino), e que aponta para um objetivo sócio-político específico (discernir alguns dos elementos sócio-religiosos que dificultam a incorporação crescente, constante e crítica dos setores populares latino-americanos à luta por sua própria libertação e, em conseqüencia, colaborar para o delineamento de políticas setoriais para a mudança social, centradas ㅡ no caso ㅡ na dinâmica do campo religioso).

Uma hipótese guia esse esboço, e podemos formulá-la do seguinte: A presença significativa de um certo tipo de prática social submissa, secundária e descontínua em certos setores populares latino-americanos se acha continuamente favorecida e reforçada por uma percepção individual-coletiva da sexulidade, vista como central, isolada e pecaminosa, percepção que encontra uma importante fonte de produção, reprodução, difusão e sacralização na prática cotidiana das mais importantes instituições religiosas do continente.

III ㅡ PROPOSIÇÕES TEÓRICAS

Já nos anos 40, nos EUA, alguns estudos sobre a “personalidade autoritária” (Adorno e. a.) revelaram uma correlação significativa entre as atitudes políticas autoritárias e certos padrões de percepção da sexualidade própria e alheia. Desde de então ㅡ como sugeriu Reich frente ao fascismo ㅡ, as diversas ditaduras que têm detido o poder na América Latina, ilustram abundantemente essa correlação. Com efeito, Franco e Salazar, da mesma forma que Pinochet e Videla, desenvolveram uma orientação autoritária de seus governos que inclui uma clara intenção de impor uma rígida repressão da sexualidade da população, apelando, além disso, para uma legitimação religiosa de suas estratégias político-sexuais. Casualidade? O problema não é nada simples, muito menos secundário. Tentemos a seguir uma possível fundamentação teórica da hipótese que anima este trabalho.

  1. A produção e reprodução de uma sociedade qualquer só é possível mediante a relação entre seres humanos corpóreos. O conjunto dos corpos humanos viventes constitui a primeira e indispensável ‘base material’ para a existência de uma sociedade. Assim, o primeiro e indispensável meio de produção social, constitui o corpo humano vivente, o único entre os meios de produção que é constante em toda sociedade. Mas igualmente, o corpo humano vivente é o primeiro, o único constante e indispensável entre os meios de comunicação e reprodução de qualquer sociedade humana. Mais ainda, a capacidade humana de transformar suas próprias condições de existência ㅡ capacidade baseada na possibilidade do eu (Mauss) e da consciência crítica (Freire) ㅡ é uma capacidade que só pode efetuar-se mediante o corpo, i.e., mediante a concretização material da transformação através de uma ação na qual o corpo ㅡ novamente ㅡ é o primeiro e insubstituível meio de produção, reprodução e comunicação. Do mesmo modo, a capacidade da sociedade de atuar sobre si mesma e modificar suas orientações (Touraine) é uma capacidade que se efetua sempre (mas não de maneira exclusiva e direta, geralmente) através dos corpos humanos viventes, mediante eles. Podemos sustentar então que, enquanto condição necessária, constante e insubstituível da produção e reprodução de toda a sociedade, o corpo é o primeiro e principal meio de produção (individual e social), o primeiro e principal elemento das relações sociais de produção.
  2. Aparentemente, estas reflexões carecem de pertinência (e inclusive consistência) dentro de uma reflexão sociológica. Acontece, não obstante, que o corpo humano é uma realidade sócio-cultural, e não apenas uma realidade biológico-natural. Com efeito, o corpo humano é sempre um corpo situado e tratado socialmente: no seio de uma estrutura social, em uma posição particular, em uma fase histórica específica, nos limites de uma posição particular, em uma fase histórica específica, nos limites de uma determinada cultura, etc. Em outras palavras, ainda reafirmando que o corpo humano é condição necessária, constante e insubstituível da produção e reprodução de toda sociedade é preciso sublinhar que ㅡ como o restante dos meios de produção e reprodução ㅡ o corpo humano é diferencialmente tratado e utilizado segundo as diversas estruturas, posições, fases e ideologias sociais. Ou seja, o corpo humano é um meio social de produção, reprodução e comunicação. Sem pretender de maneira alguma que o corpo humano seja apenas isto, é, não obstante, a este título que pretendemos seu tratamento como objeto de análise sociológica, não apenas enquanto elemento material de práticas sociais ‘objetivas’, mas igualmente enquanto objeto ‘simbólico’ de certas práticas culturais (subjetivas) ligadas às estruturas sociais.
  3. A relação social fundamental que define a sociedade capitalista é a chamada apropriação da mais-valia (Marx). A extração de mais-valia é uma expropriação da força de trabalho (dos trabalhadores) em troca dos meios de reprodução (salário) dessa mesma força de trabalho, a fim de mantê-la a serviço da produção do capital (dos proprietários dos meios de produção). Ora, a força de trabalho é uma capacidade corporal dos seres humanos viventes, é inseparável do corpo. A expropriação da força de trabalho é, por fim, a expropriação de um meio social de produção, o corpo. O corpo passa assim ㅡ no capitalismo e enquanto meio de produção ㅡ a ser mais um entre os meios de produção apropriados privadamente pela minoria dominante. Dito de outro modo, a extração de mais-valia é expropriação do corpo, e a acumulação de capital, expropriação maciça dos corpos de toda uma população.
  4. O capitalismo, como sistema de dominação social baseado na extração de mais-valia, parece ser o primeiro sistema cuja lei tendencial de desenvolvimento pressiona automaticamente à expansão constante e crescente (qualitativa e quantitativa, sócio-cultural e geograficamente) de seu domínio. Isto é o que alguns economistas (Sweezy, Baran, Dobb, Mandel) têm verificado como implicação da lei (capitalista) da queda tendencial da taxa de lucros. O fenômeno do imperialismo (em todos os seus sentidos e aspectos) seria então no capitalismo um traço central do sistema, e não ㅡ como em outros modos de produção ㅡ um fenômeno periférico ou acidental. Dentro desta ordem de idéias, podemos supor que no capitalismo reside ㅡ também ㅡ uma tendência estrutural à expropriação constante e crescente do corpo, posto que esta expropriação é inerente à relação capitalista fundamental: a extração de mais-valia. Um dos aspectos mais importantes desta tendência é a redução dos corpos humanos viventes à condição única e exclusiva de meios sociais de produção de mais-valia. Assinalamos, entretanto, que a efetivação de qualquer lei tendencial de uma sociedade está sujeita às condições da luta de classes, e que ㅡ portanto ㅡ a luta dos setores oprimidos (objetivamente interessados em deter a efetivação das leis tendenciais inerentes ao sistema de dominação) pode obstaculizar em diversos graus a realização das tendências e orientações dominantes.
  5. Como todo sistema social de dominação, também o capitalismo (enquanto estrutura estruturante das práticas sociais) tende a produzir, reproduzir e difundir modelos culturais (i. e., “ideologias”) capazes de complementar, reforçar e inclusive substituir a coerção pelo consenso social para a dominação (Gramsci). A fim de favorecer o assentimento subjetivo dos membros da sociedade ao sistema imperante, a fim de provocar a reprodução ‘espontânea’ das relações sociais dominantes, a fim de reduzir a arriscada imposição constante pela força de um modo peculiar de produção social, o capitalismo exerce um ‘violência simbólica’ (Bourdieu) que consiste na imposição de modelos culturais adequados à extração de mais-valia. Assim, o capitalismo provoca e favorece a produção de uma imagem alienada de si e do próprio corpo em todos os indivíduos e grupos sob sua dominação. Para dizê-lo de outro modo, a extração social de mais-valia, como relação social dominante, implica não só na expropriação objetiva do corpo (no trabalho assalariado), mas igualmente na expropriação subjetiva do corpo.
  6. O que em outros sistemas sociais pode ser acidental (a expropriação constante e crescente, objetiva e subjetiva, do corpo), é no capitalismo lei tendencial do próprio sistema. Neste sentido, talvez Weber tivesse mais razão do que ele mesmo pensava ao sugerir uma certa correlação entre puritanismo e capitalismo. Com efeito, o puritanismo encerra uma concepção do próprio corpo que o reduz quase exclusivamente a um meio de produção de mais-valia e que efetua uma expropriação do corpo para fazê-lo propriedade do senhor, de algum modo representado no patrão da fábrica. A expropriação da sexualidade é, nesse sentido, uma técnica ㅡ não a única ㅡ, mas talvez a mais importante, uma modalidade da expropriação objetiva e subjetiva do corpo, tendencialmente implicada pela extração de mais-valia, técnica cujo paradigma podemos encontrar ㅡ precisamente ㅡ no puritanismo calvinista.
  7. Toda expropriação da sexualidade é expropriação do corpo. Por ‘sexualidade’ entendemos a experiência e a percepção das pulsões-físicas e/ou psíquicas ㅡ orientadas para o prazer sexual (não só genital), assim como a experiência e percepção do corpo ㅡ próprio e/ou alheio ㅡ como meio físico de comunicação erótico-afetiva. Assim entendida, a expropriação da sexualidade consistiria então no processo (pessoal e social) de imposição subjetiva e/ou objetiva de um modo de experiência e de percepção tal que ㅡ através dessa imposição ㅡ o corpo, suas pulsões e relações sexuais, aparecem (conscientemente ou não) como subordinados a um sistema fixo de normas exteriores, anteriores e superiores à pessoa e à comunidade. Toda expropriação da sexualidade (ao menos tacitamente) implica na ameaça de punição (natural, social e sobrenatural) para qualquer tentativa de reapropriação da mesma, i.e., para qualquer violação do sistema de normas instituinte da expropriação como tal. Naquilo que aqui nos concerne, sublinhamos que uma multiplicidade de modos de expropriação da sexualidade é possível (e tais modos coexistem socialmente hoje). O que nos interessa neste ponto é destacar os traços centrais de todo modo de expropriação da sexualidade, a fim de tornar mais clara nossa hipótese de que o modo de produção capitalista convoca e provoca o desenvolvimento de um modo de expropriação da sexualidade, e de que esta expropriação favorece e reforça a extração social de mais-valia enquanto relação social definidora do capitalismo.
  8. A expropriação da sexualidade não é, entretanto, sempre e somente “funcional” para o capitalismo. A princípio, ‘eu’ sou ‘meu corpo’ ㅡ e não que ‘eu’ tenha um corpo distinto de ‘mim’ ㅡ, mas na medida em que sofro uma expropriação (psico-social) de minha sexualidade ㅡ e portanto do meu corpo ㅡ, nessa mesma medida, se criam as condições para que ‘eu’ me torne esquizofrênico (Laing), i.e., para que meu ‘eu’ e ‘meu corpo’, a norma e o desejo, cindam-se conflitivamente. Na mesma medida em que a esquizofrenia implica, de alguma maneira, numa diminuição da capacidade de comunicação, de produção social e ㅡ portanto ㅡ de reprodução ou transformação de si e do meio social, nessa mesma medida, as potencialidades psico-patogênicas da expropriação da sexualidade podem fazer desta última ㅡ também ㅡ um elemento “disfuncional” para o desenvolvimento capitalista (e não menos para sua transformação radical). De fato, alguns autores (Deleuze, Guattari, Foucault) têm destacado a correlação estatística significativa entre o desenvolvimento capitalista e esquizofrenia.
  9. Toda expropriação do corpo ㅡ incluída, portanto, toda expropriação (subjetiva ou objetiva) da sexualidade ㅡ favorece e reforça a expropriação política da capacidade humana de rebelião e transformação da ordem social estabelecida. Com efeito, se meu corpo já não é ‘meu’, se minhas pulsões, relações e atividades foram domesticadas ao ponto de orientar-se ‘espontaneamente’ a subordinar meu corpo a um sistema inquestionável de normas (exteriores, anteriores e superiores a mim e à minha comunidade), então será um tanto mais fácil que eu subordine a uma Autoridade meus impulsos rebeldes, minhas relações com grupos radicais e minha capacidade de atividade política transformadora. No caso do capitalismo, esta domesticação será tanto mais eficiente quanto mais for possível ao processo de expropriação (subjetiva e objetiva) de meu corpo e de minha sexualidade conseguir reduzir-me a um simples meio social de produção de mais-valia. Há que concluir, então, que tanto os processos de expropriação da sexualidade, quanto as tentativas de sua reapropriação (inclusive certas tentativas aparentemente ‘patológicas’ e ‘frustradas’, como a histería, a glossalália, o mutismo, o carnaval, etc.) são ambos atos políticos ㅡ ao menos em parte ㅡ e de sentidos opostos.
  10. Pois bem, o que poderíamos denominar de expropriação puritana da sexualidade, parece caracterizar significativamente ㅡ ainda hoje ㅡ a prédica e a ação da maioria das igrejas e seitas cristãs na América Latina. A Igreja Católica, em que pese não constituir o paradigma dessa expropriação (paradigma realizado bem melhor, talvez, pelas Testemunhas de Jeová e algumas seitas protestantes), nos servirá de ponto principal de referência no ulterior desenvolvimento desta hipótese. Isto por dois motivos principais (sem contar o motivo subjetivo de nossa própria condição de católico): (a) porque o catolicismo constitui ㅡ desde o século XVI ㅡ a religião quantitativa e qualitativamente ‘dominante’ na América Latina; e (b) porque ㅡ em que pese seus matizes ㅡ o catolicismo não escapa da participação ativa e significativa no processo de expropriação puritana da sexualidade, sobretudo a partir do mesmo século XVI.
  11. Antes de tentar uma definição dos traços mais significativos da expropriação católica do corpo e das formas de como ela contribui para a reprodução de uma sociedade baseada na extração de mais-valia, façamos alguns importantes esclarecimentos prévios. Em primeiro lugar, é preciso (teórica e politicamente) insistir sem descanso no caráter histórico do processo que levou o catolicismo europeu, sobretudo a partir do século XVI, a constituir-se cada vez mais em uma instituição caracterizada por uma tentativa crescente de expropriação (político-religiosa) da sexualidade de seus fiéis. Em outros termos, essa tentativa, não a vemos como ‘inerente’ ao catolicismo, mas ㅡ sociologicamente ㅡ como o complexo resultado parcial das condições históricas do desenvolvimento da Europa a partir do século XVI. Ao mesmo tempo, é conveniente chamar atenção sobre o fato de que esse processo (presente em todo cristianismo europeu e não apenas, nem principalmente, no catolicismo) coincidiu com  o processo de desenvolvimento do capitalismo enquanto modo de produção dominante na Europa. Vale a pena recordar que esse desenvolvimento capitalista implicou, dentre outras coisa, (a) na diminuição progressiva do poder da Igreja como aparato ideológico central do feudalismo europeu (Gramsci); (b) no deslocamento paulatino da família como instituição econômica central da mesma sociedade; e (c) na exigência econômica crescente de se concentrar toda a energia humana disponível na produção de mais-valia (Marx). A nosso ver, todos estes processos acham-se intimamente inter-relacionados entre si e com a expropriação puritana da sexualidade, incluída aqui a expropriação católica do corpo. Em segundo lugar, há que se ter permanentemente presente que o processo de expropriação católica do corpo (confrontado, como todo processo de dominação social, com as lutas dos ameaçados), nunca foi um processo linear nem 100% vitorioso; antes pelo contrário, em que pese ser um processo que conseguiu impor-se significativamente, a expropriação católica do corpo ㅡ na América Latina como na Europa ㅡ tem sido um processo lento, difícil, contraditório, cheio de idas e vindas, cujo resultado se reveste de características e implicações diferentes segundo os sexos, as épocas, as regiões, as classes, as culturas, etc.
  12. Já assinalamos que um primeiro traço discernível nesta expropriação católica do corpo dos fiéis é que ela consiste, permanente e fundamentalmente (ainda que não exclusivamente), numa expropriação da sexualidade. Com efeito, tudo parece sugerir que a ‘puritanização’ do cristianismo europeu ㅡ simultânea à conquista e colonização da América ㅡ levou gradualmente o catolicismo a instituir a sexualidade como centro da pastoral eclesiástica e, portanto, a tratar de instaurar uma concentração das energias pessoais e coletivas dos fiéis na sexualidade (ao menos de maneira imediata). Assim, a ‘moral sexual’ passou de um estatuto ‘periférico’ e secundário na ação pastoral da Igreja, à ocupação do núcleo central dessa mesma ação, e ㅡ na mesma medida em que esta ação foi eficaz ㅡ a moral sexual tornou-se, pouco a pouco, força centrípeta da atenção dos fiéis. Este processo que coincidiu ㅡ por outro lado ㅡ com a monopolização da pregação =. da confissão e da teologia por parte das ordens religiosas celibatárias, foi facilitado por uma crescente uniformização dos manuais de confissão, monopolizados, igualmente, por estas ordens. Ora, podemos presumir que esta concentração da moral sexual teve por companheira (produzindo-a ou coadjuvando-a) uma dispersão das preocupações políticas. Se a moral sexual (aparentemente apolítica e individual) passou então a ocupar o lugar principal, é necessário concluir que isto tenha se dado às custas da redução a um lugar secundário dos elementos de ética social (política e coletiva) que o catolicismo herdou da tradição e das lutas da época da conquista e colonização da América.
  13. Um segundo traço significativo da expropriação católica da sexualidade dos fiéis, consiste na instauração da sexualidade como dimensão individual e isolada do resto da personalidade e da comunidade. Com efeito, a confissão católica ‘moderna’ institucionaliza a sexualidade como uma problemática não mais apenas centralizada, mas como uma problemática que requer uma atenção específica e individualizada. ‘Minha’ sexualidade não tem nada a ver com a história, com a economia, com a política, exceto na medida em que eu devo regulá-la segundo normas (anteriores, exteriores e superiores a mim e à minha sociedade) que a Igreja dita à sociedade. O confessor me prescreve aquilo que devo ou não devo fazer com ‘minha’ sexualidade, mas confirmando constantemente o caráter individual e isolado da sexualidade mesma. Este processo de seccionamento e individualização da sexualidade, que encontra suas ‘razões’ doutrinais em São Paulo e no neo-platonismo de Santo Agostinho, bloqueia as possibilidades ㅡ digamo-lo assim ㅡ de se “politizar a sexualidade e erotizar a política”. Em outras palavras, a expropriação católica da sexualidade dos fiéis, ao sacralizar esse seccionamento e individualização da sexualidade (já por demais colocada como centro), dificulta ㅡ quando não impede ㅡ o exame crítico por parte dos fiéis do sistema de normas e da moral sexual católica. Deste modo, este traço da ‘sexualidade católica moderna’ contribui para manter o fiel despreocupado da política, separado (subjetivamente, mas também então politicamente) das lutas da comunidade, e incapacitado para colocar em questão sua própria situação subjetiva e objetiva.
  14. Um terceiro traço importante do ‘puritanismo católico’ é a concepção da sexualidade, basicamente, como uma energia maligna que deve ser reprimida. Na realidade, uma investigação como a que alimenta estas proporções teóricas, mostra que ㅡ para imensa maioria dos fiéis católicos hoje ㅡ “o pecado” é, principal e quase exclusivamente, “algo sexual”. De fato, achamos que este traço da moral católica oficial ‘moderna’ constitui a consumação da expropriação católica do corpo através da expropriação da sexualidade. ‘Meus’ desejos não são na realidade meus nem são ‘bons’: são a tentação do demônio, exercida sobre e contra mim, e meu dever é rechaçar ao demônio (meus desejos) sob pena de castigo eterno. Bem, nos parece claro que tal idéia contribui de vários modos para a reprodução do sistema de extração de mais-valia (a par dos modos já citados): se o Mal está na sexualidade, a estrutura social não poderá ser julgada senão, em suma, como um ‘mal’ de menor importância; se o Mal é sobrenatural (o demônio), a luta ㅡ individual ㅡ contra o Mal, não poderá e nem há que liberar-se no terreno das relações sociais; se a luta principal dos indivíduos é a luta contra o pecado (i.e., os desejos e atos sexuais proibidos), não há então sentido em desviarmos nossa atenção e energia para a luta contra a extração de mais-valia (que não é, ademais, ‘o’ Pecado, mas, simplesmente, ‘um’ pecado venial); e, finalmente, poderíamos pensar que esta concepção contribui para a reprodução do sistema de extração de mais-valia mediante a imposição de um esquema autoritário, repressivo e alienante como esquema central de organização da personalidade, esquema perfeitamente coerente, adequado e funcional para o desempenho das tarefas familiares, escolares, econômicas, políticas, jurídicas, militares e culturais de uma sociedade autoritária como a que se baseia na extração de mais-valia.
  15. Não obstante, como assinalou um sociólogo francês da religião (Verscheure), é preciso, por um lado, saber distinguir os ‘códigos’ produzidos e difundidos por uma instituição social, e, por outro, a ‘apropriação’ desses códigos pelo (heterogêneo) público desta mesma instituição. Dito de outro modo, os efeitos de uma ‘ideologia’ (como a moral oficial católica) não são predeterminados pela estrutura ou pelo conteúdo dessa ideologia como tal, nem se pode realizar previsões acerca de tais efeitos. Assim, é presumível que os efeitos de um código institucional possam variar significativamente ㅡ em grau e sentido ㅡ segundo as descontinuidades sócio-culturalmente significativas que se encontrem presentes no heterogêneo público de uma instituição. Neste sentido, pensamos que a moral católica oficial nem sempre tem conseguido, no mesmo grau e do mesmo modo, efetuar aquela expropriação do corpo dos fiéis para a qual tende estruturalmente. Entretanto, achamos que a resultante da ação religiosa católica na América Latina, mediante a pregação dessa moral, pode resumir-se ㅡ ainda hoje e de modo geral ㅡ em um efeito significativo e predominante de reprodução do sistema de extração de mais-valia.
  16. Um dos ‘efeitos conservadores’ mais importantes desta tentativa católica de expropriação do corpo dos fiéis, dentro de nosso ponto de vista, consiste no ‘familiarismo católico’ (por demais machista), ideologia cuja gênese (e desenvolvimento) é suficientemente complexa para que tratemos aqui de sua análise. Digamos simplesmente que entendemos como familiarismo um modelo cultural segundo o qual toda a energia pessoal deve concentrar-se na construção e reprodução das relações intra-familiares (e não, por exemplo, na atividade sócio-política); em sua modalidade ‘capital-machista’, o familiarismo tende a impor à mulher uma concentração total de sua energia nas relações intra-familiares, enquanto orienta o homem a uma concentração parcial (i.e., do ‘resto’ de energia não utilizável na produção de mais-valia) nessas mesmas relações. Seguindo aqui as mais importantes pensadoras do feminismo anglo-latino contemporâneo (Falcon, Halimi, Belotti, Irigaray, Mitchell, Millet, etc.), pensamos que os efeitos do familiarismo machista ㅡ e, por conseguinte, da moral católica ‘moderna’ ㅡ são muito mais profundos e devastadores do lado feminino de nossa sociedade. Com efeito, se a mulher aparece ㅡ ao mesmo tempo ㅡ como mais ‘religiosa’, mais familiar, menos politizada e menos profissionalizada, isto não se dá pela ‘natureza’ nem pela ‘casualidade’, mas por conta de uma opressão histórico-social, objetiva e subjetiva, sofrida pelas mulheres. Objeto sexual, socialmente definida de modo fundamental e quase exclusivo como mãe (real ou potencial), a mulher padece ainda hoje de uma expropriação de sua sexualidade e de seu corpo duplamente mais intensa em sua relação com a do homem; e redobrados também são aqueles ‘efeitos conservadores’, no que toca a expropriação do corpo feminino. Esta situação assimétrica da mulher em relação ao homem, com a conseqüente despolitização radical da mulher, se encontra plenamente expressa na modalidade católica da expropriação puritana do corpo dos fiéis.
  17. À guisa de conclusão provisória destas proposições teóricas, poderíamos sugerir que a contribuição mais importante do catolicismo oficial contemporâneo para a reprodução do sistema de extração de mais-valia reside na expropriação subjetiva do corpo dos fiéis operada pela moral sexual católica ‘moderna’. Ou seja, temos a impressão de que não é tanto através da pregação da resignação dos pobres, do sacro caráter da propriedade privada e do poder, do anticomunismo, do reformismo elitista, etc., em outras palavras, que não é tanto através da pregação explicitamente politizada e politizável que a Igreja funciona como subsistema reprodutor do sistema de extração de mais-valia, mas que tal função é operacionalizada ㅡ melhor e sobretudo ㅡ através da despolitização efetiva dos fiéis, despolitização efetuada por uma moral cujos traços (alienação do corpo, centralização, seccionamento, individualização e repressão da sexualidade; autoritarismo, familiarismo e machismo) e constituem como o sustentáculo mais importante ㅡ e mais refratário a inovações ㅡ de uma religião historicamente reorganizada e funcionalizada para preservar o sistema de extração de mais-valia. Em outras palavras: a moral sexual católica ‘moderna’ parece ser a fonte central de conservação religiosa do status quo em sociedades como a latino-americana, ao cumprir a função reprodutora de reestruturar a ‘economia libidinal’ (Lyotard, Remy, Hiernaux) dos fiéis ㅡ e sobretudo das massas populares ㅡ em plena correspondência estrutural com a ‘economia política’ da sociedade capitalista e dependente que é a nossa.

IV ㅡ CONCLUSÕES ABERTAS

Como se pode notar, as idéias aqui expostas acham-se ainda num estágio bastante abstrato e embrionário. Essas proposições teóricas não querem ser ㅡ todavia ㅡ mais que simples sugestões para a análise e a intervenção inerentes a uma eventual política socialista de mudança social baseada nos setores populares latino-americanos, em sua trajetória, sua situação, suas necessidades e possibilidades.

Com efeito, a nível metodológico (em complexa relação com a investigação empírica e a intervenção política) estas proposições teóricas teriam que ser agora discutidas e reelaboradas, tratando de levá-las a proposições sociológicas empiricamente ‘refutáveis’ (Popper). Para tanto é necessário ‘operacionalizá-las’: levá-las a um conjunto de variáveis hipoteticamente relacionadas e construir os indicadores respectivos capazes de permitir uma certa mediação dessas variáveis e de suas correlações. Logo, a nível de investigação, é conveniente orientar-se para a verificação (ou refutação) da possibilidade explicativa diferencial das hipóteses pertinentes, tratando de determinar, então, até que ponto as mesmas não nos podem guiar com eficácia em setores distintos (por classe social, religião, idade, sexo, trajetória sócio-cultural, etc.).

Sobre a base de investigação concreta a realizar-se, é possível, entretanto, presumir uma investigação sócio-política, inspirada na opção que nutres estas proposições, deveria apontar para os seguintes objetivos setoriais: (a) descentrar a sexualidade a centrar as orientações sócio-políticas; (b) integrar a sexualidade à totalidade da pessoa e esta última à dinâmica de sua coletividade; (c) desculpabilizar a sexualidade e integrá-la em uma orientação liberalizadora e criativa; (d) romper o familiarismo mediante uma orientação comunitária e feminista… em poucas palavras: promover uma reapropriação humanista da sexualidade e da corporalidade. A metodização de um tipo de intervenção como este no âmbito da Igreja Católica latino-americana, nos parece sugerir, concretamente, uma ‘historização’ e ‘sociologização’ da moral dominante, denunciando suas conseqüencias a nível psico-somático, sócio-político e religioso-cultural; queremos dizer que uma crítica eficaz da expropriação subjetiva da sexualidade dos fiéis católicos deve basear-se então ㅡ dentre outras coisas ㅡ numa análise da gênese, estruturas, funções, funcionamento e efeitos da moral católica ‘moderna’.

De qualquer modo, é mister advertir explicitamente que a moral de que aqui falamos parece que principia a configurar-se historicamente ㅡ e inclusive na América Latina ㅡ como uma moral tendencialmente em vias de desaparecimento. A tendência que parece impor-se cada vez mais ampla e profundamente é uma ‘liberação reprimida’ da sexualidade (Marcuse), mais adequada ao consumo de massas do capitalismo monopolista que ao capitalismo primário de acumulação de mais-valia. Se não se tem isto em conta ㅡ ao menos como advertência conjetural ㅡ é possível que nossa crítica faça jus simples e puramente a outra contribuição para a readaptação funcional do capitalismo a uma nova fase de desenvolvimento; nova fase na qual as tentativas revolucionárias para alcançar a autêntica liberalização da sexualidade estão constantemente ameaçadas por um novo tipo de ‘recuperação’: a sexualidade de consumo e a psudo-liberalização catastrófica da mesma sexualidade.

Qual é então, nesse caso, a alternativa? Pensamos que ela é hoje inexistente. Mas nas lutas feministas, na rebelião dos jovens e nos combates operários e camponeses latino-americanos contra a opressão, podemos entrever alguns fragmentos dessa alternativa necessária. Sem dúvida, a história carece de um sujeito infalível que produza de si, em cada época, o melhor dos mundos possíveis. É a nós, mulheres e homens, jovens e adultos, operários, camponeses e intelectuais médios da sociedade contemporânea, a quem toca a responsabilidade de construir (subjetiva e objetiva, pessoal e coletivamente) essa alternativa,  ou  de construir (subjetiva e objetiva, pessoal e coletivamente) essa alternativa, ou de obstacularizar  sua construção. Com estas páginas tão-somente queremos provocar a discussão e a reflexão acerca de uma idéia que atrai poderosamente nossa atenção: a de que, ao que parece, não é possível realizar uma alternativa popular e socialista na América Latina, sem simultaneamente promover uma reapropriação de nossa sexualidade, e que esta reapropriação parece impossível sem a participação ativa, coletiva e crítica na liberação do catolicismo do lastro do puritanismo protoburguês. Oxalá seja fértil este desafio.

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