Reflexões sobre a dialética material do visível e do invisível no capitalismo

Por Carlos Rivera-Lugo, traduzido por Alysson Leandro Mascaro

“O sujeito colonizado e o sujeito capitalista não vêem saída para sua condição. Vivem nestes tempos de uma espécie de foraclusão do sujeito, sob a qual até a possibilidade de desejo e negação foi castrada como tal. A visão capitalista do mundo sob o neoliberalismo tornou-se uma espécie de pesadelo eterno, do qual parece impossível que nos despertemos. O fetichismo torna-se assim mais destrutivo porque o sujeito torna-se invisível aos desejos estruturantes e totalitários do outro, o capitalista. Ele se torna masoquista e pretende que aceitemos submissamente esse destino de uma subalternidade eterna e nos divirtamos mesmo no sofrimento que ele produz.”


As duas faces do fetichismo

A categoria do fetichismo ocupa um lugar central na crítica de Marx à economia política do capitalismo. O que Marx chama de fetichismo da mercadoria propõe que vejamos a realidade sob o capitalismo como um duplo processo de estruturação empírica da produção social e de estruturação da subjetividade para a ocultação ideológica das relações sociais de produção, bem como da dominação ou, se preferir, da sujeição, como, por exemplo, no caso do direito. É a dialética material entre o visível e o invisível que pressupõe o desdobramento da contradição que está em seu seio.  Dentro dela estão presentes as condições específicas de sua existência.

O mesmo conceito de sujeito sofre uma ambiguidade que é reveladora de uma cisão constitutiva: por um lado, o sujeito com liberdade para protagonizar o deslindar de suas circunstâncias; e, por outro lado, o sujeito submetido às determinações e significados impostos por outro. É essa outra dialética material que ocorre no capitalismo, neste caso, entre o sujeito constitutivo e o sujeito constituído.

É importante entender, no entanto, que o fetichismo não é um fenômeno reduzido ao mundo das ideias ou à esfera da consciência. É parte da realidade material fundamental do capitalismo e de sua reprodução ampliada. A parte não pode ser entendida isoladamente, mas apenas em relação à totalidade dentro da qual ela se desdobra, independentemente das dificuldades que nossa finitude humana apresenta ao apreender aquilo que conceituamos como totalidade. Só conseguimos compreendê-lo a partir da demonstração fática de sua existência e consequências.

O Um se divide em dois. O fetichismo tem duas faces: a materialização concreta das relações sociais e de poder determinadas historicamente, e a mistificação delas como essencial ou natural.  São, no fundo, as duas faces da forma da mercadoria, embora também da forma do valor, que por sua vez incidem sobre o trabalho, seja em sua faceta como trabalho vivo ou como trabalho abstrato. A partir dessa dialética material do visível e do invisível, por sua vez, se potencia uma dialética material da força. Se constitui uma situação de força. Todas as categorias, leis e lógicas do capital não são neutras, como pensaram alguns da esquerda, mesmo os marxistas. Isso inclui não apenas as mercadorias e o trabalho, mas também o valor e o dinheiro, sem esquecer o Estado e o direito. São formas sociais e políticas fetichizadas. Eles constituem a subjetividade capitalista. Negá-las ou ignorá-las custou derrotas e oportunidades perdidas à esquerda. O abandono atual do ideal da revolução está intimamente relacionado a esta falta de compreensão de que não pode haver liberação completa sem superar estas formas de produção e de governança fetichizadas que estão atrás das ilusões reformistas que prevalecem hoje como a única maneira possível de mudar e transitar para uma nova sociedade.

Nunca, até a sociedade capitalista, se dependeu tanto desse grau de fetichização, que estabeleceu a necessidade de articular um processo de subjetivação e produção de um sujeito de acordo com ele. Por subjetivação, entendemos o processo de se tornar um sujeito concreto, com uma subjetividade definida.  Por trás da mercadoria e até do valor como formas fetichizadas e imbricadas de objetivação social, está o processo de subjetivação que deu origem à subjetividade fetichizada, o que Marx chamava anteriormente de alienação. As mercadorias não se valorizam nem circulam ou se trocam por si só: elas precisam de sujeitos portadores de uma subjetividade particular, capitalista, e que vivem sob relações sociais concretas, capitalistas. Como bem reconhece o direito, nascemos e morreremos como sujeitos, mesmo sujeitos jurídicos, e nos relacionamos como sujeitos que fazem parte de processos de produção e troca, bem como de relações patrimoniais.

As forças produtivas são personificadas por aqueles que representam o capital e o trabalho. É uma relação social contraditória que constitui uma estrutura de vínculos desiguais de poder.

O sujeito-processo do capitalismo

Desde tenra idade, Marx tinha no centro de seu pensamento o que se relacionava com a produção de subjetividade na sociedade capitalista e, embora o marxismo tendesse a abandonar essa reflexão, especialmente no stalinismo e também durante o primeiro estágio do estruturalismo althusseriano, havia quem quisesse retomar o tema da estruturação da subjetividade como algo central no marxismo. Há, por exemplo, Herbert Marcuse, Ernesto “Che” Guevara, Alain Badiou e o próprio Althusser a partir de sua relação com Lacan.

Marx nos fala inicialmente de um sujeito dividido entre circunstâncias objetivas sob as quais suas condições de sobrevivência são ditadas por outro e o fruto de seu trabalho também é apropriado por aquele outro; e as condições subjetivas nas quais o sujeito é parte de suas próprias circunstâncias e protagonista dentro delas, seja por causa de sua inconsciência e passividade, ou seja por causa de sua consciência e atividade. Como a derrota das revoluções e rebeliões do proletariado europeu de 1848-1849 demonstrou, embora a luta de classes fosse o motor da história, esta foi caracterizada mais pelas tentativas da burguesia para esconder a realidade social de sua exploração e dominação, ou por reprimir violentamente a luta proletária contra ela, enquanto o proletariado se esforçou para compreender plenamente as causas ocultas e abertas de sua situação e para organizar-se, quase tateando, para lutar batalhas campais e sangrentas das quais tornou-se derrotado devido à superioridade do poder militar do inimigo de classe. Marx conclui que não basta que sejam dadas condições objetivas, a existência de condições subjetivas também é imperativa, incluindo uma soma significativa de forças organizadas em favor da revolução. A dialética material objetiva não é suficiente, se não é acompanhada pela subjetiva. Somente assim emergem na dialética material da força. Por isso, ele apontou que a próxima revolução deveria encontrar seu próprio “princípio organizador” desse sujeito coletivo de fora do Estado e do terreno econômico onde o capitalista tem um equilíbrio de forças a seu favor. A Comuna de Paris de 1871 parecia que representa esse novo “princípio organizador” e se bem ele foi finalmente derrotado, Marx compreendeu que a forma comuna e sua subjetividade constituem-se numa referência importante para uma revolução comunista futura.

Muito particularmente, Marx identifica tanto o valor e o trabalho como constitutivos de uma subjetividade contraditória. Portanto, não deveria surpreender que ele falasse de que “o valor se torna sujeito de um processo”, o de produção e troca. O valor se torna um sujeito-processo. Quanto ao trabalho, será seu caráter social que o tornará sujeito. É uma subjetividade dividida entre seu papel subordinado no processo de produção social e os impulsos contrários à ordem capitalista que fazem o trabalhador romper com a submissão esperada. Aqui também estamos diante de um sujeito-processo.

Assumindo esse quadro dividido de objetividade-subjetividade que é a luta de classes, também pareceria ser caracterizada por uma divisão significativa além dos dois campos históricos: o capitalista e o proletário. Isso ocorre especialmente quando a produção sai de um local fixo em uma fábrica e passa para a sociedade toda como uma oficina expandida de produção, como é o caso hoje. Desse modo, é potenciado um processo de proletarização efetiva, em sentido amplo, de toda uma série de laços e identidades sociais desconhecidos anteriormente como parte da luta de classes.  Falo de relações raciais, de gênero e sexuais; também dos professores e mestres até os alunos, muitos dos quais são obrigados a trabalhar para pagar por seus estudos e subsistência; também aludo às lutas dos povos coloniais e dos povos e comunidades indígenas, entre outros. Por isso, hoje se fala de lutas de classes para coletar essa constelação plural .

Da mesma forma, toda uma série de formas associativas é promovida, dentre as quais se destacam o movimento social e a comunidade, como novas formas ordenadoras de relações sociais e políticas. São também formas constitutivas de uma subjetividade muito diferente, mais autonormada e autogovernada.

A última década da vida de Marx representa uma exploração teórica dessas novas formas associativas, como a comuna e as lógicas alternativas que elas representam. Ele abandonou os dois últimos volumes do Capital para se concentrar no estudo dessas outras lutas constitutivas e processos de subjetivação, como o dos povos coloniais, o dos negros contra a escravidão nos Estados Unidos e a luta das mulheres, bem como a etnologia. Assim, propôs-se implodir a identidade do sujeito construído pelo pensamento econômico e político moderno em torno do europeu branco. O trabalho como subjetividade assume uma nova cisão constitutiva ante o aprofundamento maior que Marx empreende sobre a contradição sob a modernidade capitalista. Ao contrário de Hegel, Marx queria incorporar aqueles até então considerados sujeitos sem sua própria história.

A foraclusão do sujeito

A contradição existe apenas como uma cisão concreta entre o objetivo e o subjetivo. Consiste em um processo de negação/afirmação, ou seja, uma dialética material totalizante em que a afirmação do novo é planteada como a possibilidade ou impulso subjacente da negação. É nesse contexto que o desejo emancipatório emerge no sujeito. No entanto, como temos provado pela experiência histórica, é um desejo que a realidade, sempre marcada pela contradição, não pode satisfazer plenamente, portanto se depreende daí o desejo como uma cadeia sem fim dentro de uma  trincheira de luta sem fim para quebrar com a repetição do mesmo.

Agora, ao se falar da subjetividade, é bom esclarecer que ela é algo que transcende o mundo interior da consciência, mesmo como o senso do moral ou eticamente sensível, da justiça mesma. Além está o inconsciente, que faz do sujeito uma entidade contraditória. O inconsciente é subjetividade produtiva e política, além de historicidade. É o lugar de onde a ideologia se desdobra. O inconsciente é a área muito íntima da qual a compreensão de nossa realidade é ideologizada ou fetichizada, embora muitas vezes ajude a iludir essa compreensão.

O fetichismo, tanto da mercadoria quanto do valor e do trabalho, representa uma transformação específica do desejo humano como resultado da visão de mundo da burguesia. Sendo assim, somos sujeitos do trabalho, não apenas como uma realidade externa, mas também interna. Por esse motivo, afirma-se que o proletário é o sujeito do inconsciente.  A produção social não apenas produz bens – e necessidades – mas também sujeitos que os produzem e os consomem. É o sujeito-processo do valor e do trabalho, ao qual o discurso capitalista se refere como o homo economicus. Por essa razão, para Marx, a libertação do sujeito não se reduz a acabar com uma alienação abstrata do trabalho, mas exige o fim da forma da mercadoria e da forma do valor, para que, por sua vez, o ser humano possa ser emancipado da forma burguesa do trabalho. A alienação está em sua forma estruturante. Somente com sua eliminação pode ocorrer uma ruptura com a repetição.

No entanto, o que acontece se o fim da alienação como tal não for possível e fomos filhos e filhas de Sísifo, com uma dialética material em que o resultado de nossas ações é algo novo que, ao mesmo tempo, preserva algo do antigo, já que não há uma fora da contradição, em uma espécie de Aufhebung hegeliano? E se a grande lição do mito de Sísifo e, como tal, da história das lutas proletárias, é que você precisa saber como abraçar a contradição e forçar a desdobramento da potência sua, mesmo que seja conflituoso – como é ao fim toda verdade – já que nossa historicidade contraditória não tem fim? E se só pudermos conhecer a realidade externa do capitalismo, mas que, no entanto, o real do capitalismo incorporado em nosso inconsciente não é racionalmente conhecível, mas apenas demonstrável através dos sentidos ou sensações despertados pelas nossas experiências? Talvez por essa razão, vemos nestes tempos uma multiplicação de atos autonormados.   No ato autonormado é que a nova possibilidade do sujeito encontra solo para reconfigurar nossa significação da experiência e, portanto, do real.

O sujeito colonizado e o sujeito capitalista não vêem saída para sua condição. Vivem nestes tempos de uma espécie de foraclusão do sujeito, sob a qual até a possibilidade de desejo e negação foi castrada como tal. A visão capitalista do mundo sob o neoliberalismo tornou-se uma espécie de pesadelo eterno, do qual parece impossível que nos despertemos. O fetichismo torna-se assim mais destrutivo porque o sujeito torna-se invisível aos desejos estruturantes e totalitários do outro, o capitalista. Ele se torna masoquista e pretende que aceitemos submissamente esse destino de uma subalternidade eterna e nos divirtamos mesmo no sofrimento que ele produz.

A intelligentsia da esquerda parece em grande parte inscrita como uma força produtiva no chamado mercado do conhecimento, sob a episteme moderna do saber-poder. Como sujeito, faz parte do processo social da produção capitalista e de sua reprodução ampliada, o que compromete sua capacidade e desejo de liderar ações contestatórias e antissistêmicas. Sua subjetividade não vai além da subjetividade capitalista e, em alguns casos, apenas propõem de fato a atualização do sistema atual. No entanto, o pensamento revolucionário deve subverter o existente e construir o novo.

O discurso capitalista deve ser deixado com urgência. E isso só é alcançado dissociando-nos das formas fetichizadas da mercadoria, do valor e do trabalho. É necessário articular uma compreensão do sujeito que possa enfrentar os dois lados do fetichismo através do empoderamento de um desejo que não se satisfaz com meras conquistas imediatas e sem substância, em termos sistêmicos ou estruturais, mas que tem sua emancipação de toda dominação pelo outro como horizonte.


* Carlos Rivera-Lugo é militante, investigador e professor do direito em Porto Rico e no México. Seu livro Crítica à Economia Política do Direito foi publicado no Brasil pela Editora Idéias e Letras em 2019. 


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