Constitucionalismo contra a revolução

Por Rafael Khachaturian, via Legal Form, traduzido por Victor Guedes

A relação entre poder constituinte e sua fundação política é um dos problemas mais complexos da teoria política contemporânea. Basicamente, é a questão que nos permite analisar as bases legítimas de determinada ordem política e jurídica. Em sua forma mais geral, o paradoxo é o de que uma ordem constitucional vigente não poderia justificar suas próprias origens, pois, o espaço de legalidade que esta ordem impõe só se torna realidade em um momento extrajurídico de fundação a posteriori.

Embora essa questão da fundação apareça nos escritos de Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau, ela especialmente ressoa na “era da democracia”. Desde a Revolução Francesa, é possível argumentar que o poder constituinte emana do “povo”, que atua como seu alicerce e garantidor da ordem jurídica. No entanto, o paradoxo teórico permanece, agora no sentido de que se supõe que a constituição cria e é criada pelo povo. Mais uma vez, enfrentamos a difícil questão: se o povo é o criador da constituição, como pode [o povo] existir antes desse ato de fundação política? Por outro lado, se a constituição “cria” o povo, de onde vem e o que a torna legítima?

Recentemente, David Brooks tocou nessa questão de forma a fetichizar uma visão de constitucionalismo desprovida de poder constituinte. Contribuindo para o debate exagerado sobre a “crise” da liberdade de expressão no ambiente acadêmico, Brooks identifica duas linhas de pensamento em potencial que alunos contemporâneos poderiam tomar:

“A primeira seria nas revoluções – a francesa, russa, chinesa e todas as outras que desencadearam as paixões das massas em um esforço para derrubar a opressão – e a maneira como TODAS acabaram em um mar de sangue. A segunda seria no constitucionalismo. Destratamos os advogados, mas a lei é linda, é a prova viva de que podemos superar o tribalismo e a força-bruta – prova de que a estrutura civilizatória é um grande presente, pelo qual nossos ancestrais deram suas vidas.”[1]

Além do absurdo de comparar protestos em campus com revoluções históricas, Brooks contrasta constitucionalismo e revolução de uma forma que pressupõe que são fenômenos claramente distintos e não relacionados, e assim negligencia completamente a questão do poder constituinte. Uma linha grosseira é traçada entre violência e levante revolucionário da política procedimental que só se torna possível pela existência de uma ordem constitucional. Com efeito, Brooks camufla a pura ilegalidade da fundação americana por meio de sua distinção mitológica entre governança legal e “civilizada” e um terror revolucionário que inevitavelmente consome os seus próprios.

Este não é um ponto particularmente novo, pois Brooks está canalizando uma interpretação originalmente feita por Hannah Arendt em “Sobre a Revolução”[2]. Nesse trabalho, Arendt contrastou a violência e a política de massas das revoluções francesa e russa com sua relativa ausência durante a fundação revolucionária americana de 1776-88. Arendt sugeriu que enquanto os franceses e os russos estavam preocupados com a “questão social” – como as mazelas sociais e igualdade – as demandas dos americanos eram mais modestas. Eles (i.e. homens brancos livres e proprietários) buscavam igualdade legal e política, mas não estavam preocupados com demandas supostamente não políticas, como o alívio da fome ou a abolição do trabalho opressivo. Essas diferenças fundamentais também se refletiam teoricamente na questão crucial da soberania. Enquanto os franceses e os russos desejavam sacramentar o povo como o elemento central da soberania nacional, os americanos estavam muito mais preocupados com a durabilidade institucional e a longevidade do novus ordo seclorum[3] neo-romano que estavam transmitindo à posteridade.

Deixando de lado as idiossincrasias dessa interpretação, Arendt observou claramente que, longe de serem opostos, revolução e constitucionalismo estão intimamente ligados. Ao contrário do que Brooks queria que pensássemos, os americanos não estavam exclusivamente isentos do paradoxo da fundação, seja em virtude das condições sociais subjacentes à sua revolução ou pelo controle e moderação ostensivamente demonstradas pelos fundadores da nação. Em nenhum lugar isso fica mais claro do que na proeminência dos debates sobre a soberania popular que ocorreram durante esse período.

Tão cedo quanto o final da década de 1760, juristas americanos apresentavam justificativas para a revolução que apelavam à autoridade do povo, não à do Parlamento[4]. Como Bernard Bailyn observou em seu estudo clássico sobre a ideologia política da era Revolucionária, foi a crescente inviabilidade de coexistência de representações – representação doméstica em legislaturas estaduais ao lado de suposta representação Parlamentar e soberania no exterior – que forneceu justificativa adicional para os colonos reivindicarem o direito de pegar em armas[5]. Em 1777, o radical da Pensilvânia Thomas Young escreveu que o povo de Vermont é “o poder constituinte supremo, e seus Representantes imediatos são o poder delegado supremo; e assim que o poder delegado afasta-se das mãos do poder constituinte, uma tirania em algum grau se estabelece”[6]. Como demonstrado, a linguagem da soberania popular estava muito no ar na época da Revolução.

O problema da soberania e do constitucionalismo revolucionário reapareceu em grau ainda maior em 1787, durante e imediatamente após a Convenção de Filadélfia[7]. Inicialmente convocados para revisar os Artigos da Confederação[8], os federalistas avançaram o que o próprio James Madison[9] chamou de uma série de “proposições informais e não autorizadas” baseadas na noção de que o povo como um todo, e não os estados componentes da união, era a base real da autoridade política[10]. Como James Wilson, possivelmente o mais ferrenho defensor do poder constituinte no campo federalista, argumentou,

“[em] nossos governos, o poder supremo, absoluto e incontrolável permanece no povo. Como nossas constituições são superiores às nossas legislaturas; então as pessoas são superiores às nossas constituições. De fato, a superioridade, neste último caso, é muito maior; pois o povo possui, sobre nossas constituições, controle de fato, bem como de direito. A consequência é que o povo pode mudar as constituições quando e como quiser. Este é um direito, do qual nenhuma instituição pode privá-los”[11].

É claro que a genialidade dos Federalistas reside no fato de que eles efetivamente cooptaram essa linguagem de soberania popular para servir de base para a nova constituição, ao mesmo tempo em que cercearam seu reaparecimento e o exercício desse poder constituinte por meio de travas institucionais, com um quórum muito elevado para alterações. Isso criou o que foi chamado de “corpo político fantasmagórico” – uma situação em que a invocação do “povo” atua como um elemento retórico em uma ordem constitucional definitivamente antidemocrática.[12]

No entanto, a presença da linguagem de soberania popular e a preocupação dos formuladores com ela é importante, pois evidencia que esse desafio de inaugurar e justificar retroativamente uma nova ordem política foi um problema tanto para a Revolução Americana quanto para a francesa, russa e chinesa. Mais amplamente, ilustra como essa questão do poder constituinte e da capacidade de proclamar e inaugurar uma nova ordem política está no centro de todo apelo ao constitucionalismo. No caso de Brooks, o efeito da separação que ele traça entre revoluções e constituições é para despolitizar esta última, reduzindo-as a uma questão de tradição recebida e culto ancestral originado em algum lugar do passado mítico. No entanto, sabemos que as constituições não são nem outorgadas por legisladores sábios nem são simplesmente uma herança do passado. Elas são feitas por pessoas e capturam e refletem nelas o estado das forças sociais existentes, seus conflitos e distribuições de poder. Isso os torna documentos fundamentalmente políticos que estão sujeitos a contestação e reinterpretação, e isso significa que a revolução e a questão da autoridade política não podem ser totalmente eliminadas de qualquer discussão a respeito do constitucionalismo.

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[1] David Brooks, “Understanding Student Mobbists”, New York Times (8 March 2018), A27, available at https://www.nytimes.com/2018/03/08/opinion/student-mobs.html.

[2] Hannah Arendt, On Revolution (New York: Viking Press, 1963).

[3] N.T: Novus ordo seclorum ou “Nova Ordem dos Séculos” é o brocado que consta no “Grande Selo” dos Estados Unidos da América, atualmente impresso na parte de trás do dólar americano. Aqui o autor fala do brocado para corroborar as intenções americanas de estabelecer uma nova ordem institucional.

[4] Edmund S. Morgan, Inventing the People: The Rise of Popular Sovereignty in England and America (New York: W.W. Norton, 1988).

[5] Bernard Bailyn, The Ideological Origins of the American Revolution (Cambridge: Belknap Press, 1992 [1967]).

[6] Citado em Willi Paul Adams, The First American Constitutions: Republican Ideology and the Making of the State Constitutions in the Revolutionary Era, trad. Rita and Robert Kimber (Lanham: Rowman and Littlefield, 2001 [1980]), 63.

[7] N.T.: Do inglês Constitutional Convention. A “Convenção de Filadélfia” foi a convenção que veio a produzir a Constituição Americana atualmente vigente.

[8] N.T: Do inglês Articles of Confederation. “Artigos da Confederação e a União Perpétua”, constituíram o primeiro documento de funcionamento do governo dos Estados Unidos da América, assinado pelos representantes dos treze estados originários.

[9] N.T: James Madison foi o federalista do estado da Virgínia que liderou a Convenção de Filadélfia

[10] James Madison, “The Federalist Papers: No. 40”, disponível em http://avalon.law.yale.edu/18th_century/fed40.asp.

[11] James Wilson, “Speech to the Pennsylvania Convention, November 24, 1787” (grifo original), disponível em http://teachingamericanhistory.org/library/document/speech-to-the-pennsylvania-convention/.

[12] Joshua Miller, “The Ghostly Body Politic: The Federalist Papers and Popular Sovereignty”, 16 (1988) Political Theory 99.

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*Rafael Khachaturian concluiu recentemente seu PhD em ciências políticas na Universidade de Indiana. Atualmente é Pesquisador Associado da Universidade de Pittsburgh, onde é afiliado ao Centro de Estudos Globais (Global Studies Center) e ao Centro de Estudos Russos e do Leste Europeu (Center for Russian and East European Studies).

 

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