Contra o Imperialismo Multipolar: rumo a uma multipolaridade socialista

Por Promise Li [1], via Spectre, traduzido por Emilly Saas[2]

Como o falecido Samir Amin escreveu em 2006, “os desafios com os quais a construção de um mundo multipolar real é confrontada são mais sérios do que muitos ‘alterglobalistas’ pensam”. Dezesseis anos depois, seu alerta para que as nações se “desvinculem” da ordem econômica liderada pelo Ocidente parece agora mais ignorado pelas elites estatais do Sul global do que nunca. No início de 2022, em um discurso em Davos, Xi Jinping reafirmou que “a China continuará a permitir que o mercado desempenhe um papel decisivo na alocação de recursos”, enquanto “defende[ndo] o sistema multilateral de comércio com a Organização Mundial do Comércio em seu centro”. E os ataques da Rússia à Síria e à Ucrânia, apoiados financeiramente por suas espoliações em regiões como o Sudão, servem como um lembrete de que a ascensão de potências nacionais, supostamente desafiando a hegemonia dos EUA, não oferece garantia de que as condições serão mais favoráveis à esquerda internacional. Assim, como Aziz Rana observou recentemente, a esquerda precisa de uma estrutura internacionalista que “unifique universal e efetivamente a ética anti-imperial e antiautoritária” e recuse tanto “uma velha e esgotada Pax Americana” quanto “uma nova ordem multipolar ditada por concorrentes autoritarismos capitalistas”.


Mas a práxis só pode surgir de uma compreensão teórica precisa das condições objetivas do imperialismo hoje. O que caracteriza esta nova ordem multipolar e a natureza da competição intercapitalista? Como um todo, este mundo multipolar que emerge de Estados burgueses não cria melhores condições para desafiar o imperialismo global, mas apenas preserva e até aumenta essas dinâmicas capitalistas. Martín Arboleda adverte contra a “fetichização” do papel do Estado em facilitar o imperialismo hoje em detrimento do papel dos atores internacionais, assim como não devemos superestimar a capacidade do Estado – mesmo os desenvolvimentistas – em resistir ao imperialismo. O declínio do poder imperial dos EUA e a ascensão de múltiplos “pólos” no cenário global apenas reorganizam quais Estados estão mediando as relações globais de produção existentes, sem reorganizá-las de forma diferente e sem empoderar fundamentalmente os movimentos independentes em cada região. Identificar a estratégia mais eficaz para a esquerda global construir poder requer entender como funciona essa nova expressão do imperialismo. Em vez de ver a multipolaridade abrindo espaço para lutas revolucionárias contra o imperialismo, argumento que a multipolaridade contemporânea funciona como um novo estágio do sistema imperialista global; um afastamento da hegemonia unipolar dos Estados Unidos sem cair de volta no modo tradicional de rivalidade interimperialista como descrito por Vladimir Lenin e Nikolai Bukharin comentando sobre o século passado.

O imperialismo multipolar de hoje representa uma intensificação do sistema-mundo esboçado por Bukharin, que vê a internacionalização do capital financeiro e o desenvolvimento de grupos capitalistas nacionais como duas vertentes de um mesmo processo. Embora os blocos econômicos nacionais tenham sido cada vez mais marginalizados em favor de instituições multinacionais pela globalização neoliberal, ainda assim vemos o fortalecimento do poder dos Estados-nação para ajudar a facilitar o capital financeiro a conter ainda mais a classe trabalhadora. Uma teoria marxista do imperialismo hoje não deve pensar a dinâmica da rivalidade interimperialista sem endossar uma perspectiva de que os Estados capitalistas estão agora entrando em um estágio de coexistência pacífica possibilitada pela interdependência financeira, ou o que Karl Kautsky chamou de “ultra-imperialismo”. Esse entrelaçamento mais profundo entre Estado e capital permite dinâmicas novas e mais complexas entre as elites governantes. Mesmo que a transferência de valor das periferias para o centro permaneça intacta, podemos agora testemunhar múltiplas geografias de relações interimperiais, com diferentes ciclos e camadas de colaboração e competição entre diferentes setores da classe dominante. Agora unidas por uma classe, muitas vezes invisível, de investidores institucionais, as elites estatais recorrem a tecnologias mais sofisticadas de repressão e controle entre blocos geopolíticos, levando a um desenvolvimento de diferentes formas de autoritarismos globais para combater movimentos independentes e populares. Essa erosão generalizada da democracia política, que assume diversas formas, é, portanto, uma tática central do imperialismo hoje.

Tudo isso não seria surpreendente para Amin e outros defensores da multipolaridade de esquerda. Mas precisamos de concepções de revolução mundial que expandam estrategicamente o que Amin chama de “frente nacional, popular e democrática”. Isso implica deixar para trás uma concepção de geopolítica que vê a multipolaridade tal como ela existe como um pré-requisito necessário para a descolonização e democratização global. Uma alternativa genuinamente democrática ao imperialismo requer a construção de novas relações entre vários movimentos antiautoritários que podem não ser facilmente vistos como comensuráveis, desde as lutas indígenas contra as corporações transnacionais até a ala esquerda dos movimentos pró-democracia. As lutas de base devem funcionar em direção à institucionalização e cooperação internacional de alguma forma, mas também devemos entender como um novo “Bandung” do século 21 deve ir além dos limites da libertação nacional. A democracia socialista revolucionária pode emergir de uma pluralidade organizada de diferentes forças antiautoritárias em todas as regiões que promovem assembleia e governança democrática para forçar o sistema imperialista global a seus limites – seja um mundo unipolar ou multipolar de Estados imperiais.

MULTIPOLARIDADE CAPITALISTA DE ESTADO

A defesa esquerdista da multipolaridade tornou-se a estrutura política implícita para a maioria das organizações antiguerra ocidentais. A maioria não tem a ilusão de que a multipolaridade por si só produziria as condições certas para o socialismo global. Por outro lado, eles acreditam que a multipolaridade abriria mais espaço para lutas independentes por soberania e autodeterminação. Como Ignatz Maria descreve, “a multipolaridade permitiu uma resposta intensificada às condições locais no terreno”, sendo ela tratada como uma espécie de “neutralidade positiva”, permitindo espaço para o florescimento de movimentos populares. Essa perspectiva tende a citar os movimentos de descolonização do pós-guerra como precedentes históricos para tal lógica.

Mas nunca houve qualquer garantia de que a progressão da história em direção a um mundo multipolar necessariamente expandisse o espaço de luta para os movimentos democráticos: a maioria dos estados do Terceiro Mundo do passado não conseguiu resistir, enquanto a multipolaridade moderna não consegue expressar a diversidade que os estados anticoloniais do século passado representavam. Não é possível criar paralelos simples entre as oportunidades oferecidas aos movimentos da classe trabalhadora desde a última maré rosa na América Latina e os desenvolvimentos políticos dentro dos regimes em toda a Ásia que defendem a retórica antiocidental. Alguns especialistas de esquerda defendem países como a China e o Vietnã como modelos de gestão da saúde pública no tratamento da pandemia de COVID-19, em 2020, mas a gestão relativamente bem-sucedida da pandemia não foi de forma alguma exclusiva de membros de uma coalizão antiocidental.

Na realidade, os países que criticaram abertamente a unipolaridade dos EUA alinham-se muito mais com sua ordem imperial global do que com qualquer suposta multipolaridade. Estados de diferentes blocos geopolíticos têm criado políticas inspiradas na “Guerra ao Terror” liderada pelos EUA. Alguns países estão estabelecendo relações de dominação com minorias racializadas dentro dos limites do Estado, ou o que Pablo González Casanova chama de “colonialismo interno”. A Etiópia, por exemplo, apoiou de perto os EUA durante suas operações na Guerra do Iraque, agora reiterando a retórica da “guerra contra o terrorismo” em uma ofensiva genocida contra os Tigrínios. Ela faz isso vendendo retórica antiocidental de um canto da boca enquanto exige mais reestruturação da dívida do Banco Mundial do outro. Enquanto isso, a China está incorporando antigos associados da Blackwater aos centros de segurança de Xinjiang, ao passo que adota métodos de contra-insurgência israelenses para policiar uigures e minorias étnicas em Xinjiang. As tecnologias que emergiram da “Guerra ao Terror” da China agora também são usadas pelo governo da Malásia para vigiar migrantes muçulmanos indocumentados.

Esses regimes são frequentemente vistos como parte de um bloco anti-imperialista hostil aos EUA, mas, como observa Salar Mohandesi, “é precisamente porque o Estado é repleto de contradições que o imperialismo costuma assumir formas tão contraditórias”. Mas enquanto Mohandesi adverte contra assumir que o imperialismo pode ser reduzido a formas tradicionais de acumulação de capital, seu argumento pode ser reiterado. Muito mais do que nunca, vemos relações novas e entrelaçadas entre Estado e capital, o que deveria nos levar a atualizar como e onde podemos localizar expressões do imperialismo nessas novas configurações. Por exemplo, o desejo da China de se consolidar no sistema neoliberal global aproxima o país de instituições multilaterais internacionais (uma realidade que Amin previu), o que entra em tensão com a retórica inflamada da China contra os EUA e o Ocidente. Exaltados programas pró-globais do Sul, como o Novo Banco de Desenvolvimento, cofinanciam a maioria de seus projetos com as entidades financeiras que eles propõem desafiar, ao mesmo tempo em que promovem acordos de empréstimos corruptos e negligenciam sistematicamente a consulta às populações necessitadas. A Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI, sigla em inglês) liderada pelo Banco Mundial tem sido uma das principais soluções da China para países africanos como Zâmbia e Angola, que estão fortemente endividados desde a pandemia – apenas oferecendo suspensão da dívida, não alívio. E embora tal alívio da dívida que a China prometeu recentemente aos países africanos seja bem-vindo, a estrutura fundamental de extração financeira dos países africanos para a acumulação global de capital permanece intocada. Os detalhes dos empréstimos chineses sempre foram obscurecidos, já que muitas vezes vão para o financiamento de projetos de desenvolvimento com baixas condições de trabalho ou ambientais. Como Pequim agora corteja países como a Arábia Saudita para ingressar no BRICS, quaisquer concepções coerentes de multipolaridade progressiva – mesmo pelos padrões mais baixos, como descreve o economista político Patrick Bond – ameaçam desmoronar em “uma confusão ideológica e funcional de membros para além de qualquer compreensão lógica”.

Não apenas um mundo multipolar mais equitativo não conseguiu emergir, como também essa nova configuração do imperialismo global está inovando técnicas centradas no poder de gerenciamento do “desenvolvimento liderado por infraestrutura”, da China para vários estados regionais e de médio porte. Em outras palavras, não apenas a forma-Estado – inclusive no Terceiro Mundo – falha em servir como um veículo para desenvolver a soberania anticolonial dos povos oprimidos, como está sendo ativamente puxada para facilitar novas forças de acumulação global de capital. Como observam Ilias Alami, Adam Dixon e Emma Mawdsley (com base no que Daniela Gabor chama de “o Consenso de Wall Street”), a “dinâmica global da acumulação de capital” impulsionou o Estado a atuar ainda mais “como promotor, supervisor e proprietário do capital”, na forma de “capital-estado híbridos modernizantes […] que imitam as práticas e os objetivos organizacionais de entidades análogas ao setor privado, adotam as técnicas de governança liberal e são amplamente pautadas pelo mercado”. Essa tentativa de “preservar e consagrar ainda mais a centralidade da regulação do mercado no desenvolvimento em uma era de Capitalismo de Estado ascendente e reordenamento geopolítico turbulento, [exige] o desenvolvimento variado e combinado de formas mais vigorosas de estatismo e a expansão de capital-estado híbridos”. Então, o que vemos é o aumento do papel dos atores subimperiais em ajudar a reforçar as funções do capital em nome de parcerias público-privadas e outras inovações de desenvolvimento.

Em vez de reverter as estruturas globais de desigualdade, esses desenvolvimentos sinalizam novas tecnologias de exploração para a classe trabalhadora. Alami e Dixon observam como o que eles chamam de “desenvolvimento capitalista de estado desigual e combinado” tornou-se um modo cada vez mais preferido pelos Estados-nação para ajudar a expandir as operações do capital. Mais precisamente, muitos Estados estão cada vez mais dispostos a assumir riscos financeiros para reforçar o poder dos investidores institucionais diretamente nos projetos de desenvolvimento nacional para administrar e conter a força de trabalho. Nos últimos anos, as alavancas centrais da acumulação global de capital mudaram de acionistas para alguns gestores de ativos, como Blackrock e Vanguard, sendo este último um dos maiores blocos de acionistas da Exxon e da estatal chinesa Sinopec. Não apenas os projetos de desenvolvimento de infraestrutura, como a Iniciativa do Cinturão e Rota, falham em desafiar o imperialismo global, mas também representam novas formas de capital financeiro que trabalham lado a lado com vários Estados-nação e seus bancos estatais (como parcerias público-privadas). A implicação ainda maior é que a oposição da esquerda ao imperialismo multipolar não deve abordar apenas o papel das grandes potências, mas também as potências médias e regionais como principais facilitadores do imperialismo global.

DIFERENTES AUTORITARIMOS E ANTI-AUTORITARISMOS

O que Alami, Dixon e Mawdsley veem como crescentes, mas diferentes “formas musculares de estatismo”, aponta para um motor fundamental do imperialismo que Amin e muitos outros observaram, mas falharam em abordar com rigor: o autoritarismo. Enquanto Amin reconhece a democratização como fundamental para a multipolaridade socialista, suas recomendações políticas se concentram puramente em ajustes de política econômica. No entanto, ele observa corretamente que “as estruturas autoritárias favorecem frações compradoras cujos interesses estão ligados à expansão do capitalismo imperialista global”. De fato, essa perspectiva tem sido consistentemente minimizada em muitas discussões marxistas contemporâneas sobre o imperialismo, especialmente entre aqueles que estão empenhados em manter a transferência de valor tradicionalmente imperialista das periferias para o centro. Em vez disso, devemos reconhecer como os autoritarismos crescentes em todo o mundo são um sintoma da competição interimperialista entre os Estados-nação. A fim de manter suas posições em um sistema mundial imperialista, cada uma dessas nações é compelida a explorar os trabalhadores, às vezes fortalecer as medidas de austeridade e conter seus movimentos independentes para se beneficiar do desenvolvimento da dinâmica global de acumulação de capital.

A recusa em resistir ativamente às tendências autoritárias de regimes como China, Rússia, Síria, Venezuela, Nicarágua e Irã nos proíbe estruturalmente de nos organizarmos contra o imperialismo como um sistema global. Concentrar-se em apenas certos aspectos da influência dos EUA em detrimento de abordar a cumplicidade de outros Estados na economia global – trabalhando ao lado de outros aspectos do domínio dos EUA – apenas critica seletivamente o imperialismo global. De fato, os pilares da esquerda antiguerra são forçados a uma posição centrada apenas no desmantelamento do militarismo dos EUA, enquanto são incapazes de oferecer apoio positivo aos movimentos democráticos em outros regimes à medida que se aproximam da integração econômica capitalista. Manter uma análise de “desvinculação” da economia global, sem uma compreensão da democracia política, falharia em conter as crescentes forças do autoritarismo que dificultam a promoção de um mundo multipolar mais democrático.

Por exemplo, o Estado autocrático da Eritreia, que estava ajudando militarmente a campanha genocida da Etiópia contra os Tigrayans, recebeu elogios de alguns eritreus pró-estado no exterior; e veículos “antiguerra” como Black Agenda Report e Black Alliance for Peace elogiam a Eritreia como um dos poucos países africanos a rejeitar os EUA e outras formas de ajuda e influência ocidentais, elogiando sua postura “anti-imperialista”. A incapacidade de explicar os excessos autocráticos grosseiros do regime eritreu demonstra os limites de tal anti-imperialismo que permanece em silêncio sobre a contenção do poder independente da classe trabalhadora por este regime.

Visto que, para citar Mohandesi novamente, as relações imperiais são “sempre condicionadas e impulsionadas por uma pluralidade de outras forças, muitas vezes contraditórias”, assim, “muitos Estados-nação, tentando se libertar do imperialismo, muitas vezes se viram exibindo um comportamento que chegou perigosamente perto do próprio imperialismo que procuravam abolir”. Tal regime é insustentável, pois sua legitimidade política deriva apenas de seu chefe de estado – no caso da Eritreia, Isaias Afwerki. E com as organizações independentes e a sociedade civil quase completamente neutralizadas pelo Estado, o futuro político mais provável para a Eritreia após o reinado de Afwerki seria o mesmo manual neoliberal ditado pelo FMI e outros atores financeiros globais.

Nossa alternativa é não aderir à linha do establishment ocidental de separar as “democracias” liberais ocidentais dos regimes “autoritários” do Sul global. Em vez disso, devemos reconhecer a adoção e o desenvolvimento de diferentes estratégias autoritárias de governança nos meios geopolíticos – tanto quanto mostra a incorporação da contra-insurgncia da “Guerra ao Terror” em diversos contextos nacionais. Reconhecer essas nuances é importante porque diferentes tipos de autoritarismos exigem diferentes movimentos e estratégias para combatê-los. Com base na análise de Alami, Dixon e Mawdsley sobre o desenvolvimento do estatismo na economia capitalista global, uma práxis anti-imperialista genuína deve levar em consideração como os Estados aprendem uns com os outros e desenvolvem seus próprios regimes repressivos de controle. O ataque indiscriminado da China às liberdades civis estrutura a relação do Estado com o capital à sua própria maneira, que difere apenas em grau e método da privação de direitos de minorias direcionada e instável dos EUA. Ambos encontram um denominador comum, como nas palavras de Trotsky, em “frustrar a cristalização independente do proletariado”. Essa contenção dos movimentos de massa de ambos os lados ajuda a estabilizar o capitalismo global. No entanto, cada um personaliza seus métodos de controle de acordo com uma confluência complexa de fatores em um determinado momento: sua relação particular com as cadeias de suprimentos globais, a força das organizações de massa independentes domésticas ou locais e a escala e expressão da inquietação entre seu povo.

A partir dessa análise do autoritarismo e do imperialismo, podemos imaginar como pode ser uma “multipolaridade” genuinamente socialista: reunir movimentos antiautoritários para fortalecer as instituições democráticas do global ao local. Esse objetivo exige mais do que simplesmente formas estatistas de soberania ou depender da reorganização do poder entre os Estados-nação em um cenário de declínio da hegemonia dos EUA. É necessário construir alianças entre movimentos que lutam contra diferentes formas de autoritarismo crescente. Ao mesmo tempo, devemos entender que para os movimentos que atuam dentro de Estados não liberais e autoritários, isso se torna quase impossível sem as liberdades básicas oferecidas pela democracia burguesa. Em tais casos (como na Rússia ou Hong Kong sob as leis de segurança nacional), aqueles no Norte global com mais recursos e liberdades podem desenvolver formas mais significativas de apoio a esses movimentos para além de um slogan gestual ou declaração de solidariedade.

E assim, como não nos apegamos a uma definição rígida de autoritarismo, tal assembleia de movimentos antiautoritários não deve ser conceituada em termos utópicos. Como revelam os protestos do projeto de lei anti-extradição de Hong Kong, a resistência em massa anti-junta de Mianmar, a autodefesa militar da Ucrânia contra a Rússia e o movimento do Sri Lanka contra os Rajapaksas, tensões étnicas e preconceitos políticos atormentaram esses movimentos desde o início. Os esforços do império dos EUA para impor influência, desde o apoio militar da OTAN até as doações do National Endowment for Democracy, continuaram inabaláveis. Como então localizar forças independentes para apoiar? Nesses casos, devemos definir a independência não como um espaço de soma zero (já que nenhum pode existir na geopolítica), mas como um espectro. Onde podemos localizar o local mais livre para os movimentos agirem e expandirem seu poder e capacidade – sob as condições menos coercitivas – em cada conjuntura histórica precisa? Não se pode responder a essa pergunta preventivamente, especialmente quando diferentes forças reacionárias estão presentes em diferentes lados do conflito; em vez disso, deve-se discernir criticamente cada uma dessas relações.

Uma breve pesquisa de alguns levantes mais recentes demonstra que nenhum modelo de luta pode ser generalizado. Sob o aparato estatal controlado pela junta militar de Mianmar ou pelo governo de Hong Kong, a flexibilidade de manobra dos movimentos é mínima. As recentes lutas de massa na China e no Irã obrigaram seus regimes a aceitar algumas reformas, mas continua difícil para tais movimentos serem sustentados em qualquer nível legal ou institucional, já que ativistas importantes foram rapidamente privados. A atual insurgência no Sudão deu origem a comitês de resistência politicamente diversos, com o futuro do movimento ainda indeterminado. Enquanto alguns, como os comitês de Mayurnu, defendem a construção de um governo revolucionário autônomo fora do estado, outros pedem a institucionalização de novas infraestruturas democráticas por meio da reconstrução do Estado existente. Em todos os casos, a esquerda deve se concentrar em cultivar forças o mais distante possível de lideranças políticas da burguesia ou movimentos de libertação nacional, diferenciando entre o que Hal Draper chama de “apoio militar” do “apoio político” de movimentos, com elementos burgueses proeminentes reivindicando o controle. A todo momento, nós devemos tentar nos organizar mais do que os movimentos sociais de componentes reacionários, desde nacional-chauvinistas de direita até afiliados imperialistas dos EUA, sem abandonar completamente o movimento de base.

Logo, devemos fortalecer alianças entre as forças que resistem aos desafios autoritários das democracias liberais, assim como aquelas que resistem aos regimes autoritários de fora. Conforme descrito acima, a atual tendência objetiva do imperialismo global obriga os Estados em geral a consolidar ainda mais seu poder antidemocrático a serviço do capital financeiro. Além disso, a última instância histórica da multipolaridade dos Estados burgueses gerou um cenário de rivalidade interimperial que resultou em um custo humano extraordinário. Defender condições semelhantes – mesmo como um estágio de transição – seria apenas um aceleracionismo intransigente que esmagaria, e não fortaleceria, o que resta de movimentos independentes em algumas regiões. Desenvolvimentos positivos para movimentos em regiões selecionadas da América Latina não sinalizam um destino semelhante em outras regiões sob este mundo em desenvolvimento de multipolaridade, como podem testemunhar movimentos dissidentes em regiões como China e Irã. Mesmo Amin admite que “as opções econômicas necessárias e os instrumentos políticos [para a multipolaridade socialista] terão que ser desenvolvidos de acordo com um plano coerente; eles não surgirão espontaneamente dentro dos modelos atuais influenciados pelo dogma capitalista e neoliberal”.

Além disso, o desenvolvimento de novos capitalismos de estado autoritários deve nos tornar ainda mais céticos quanto a confiar acriticamente no desenvolvimento liderado pelo estado como um antídoto para o capitalismo atual. Como o socialista iraquiano Muhammed Ja’far escreve em uma crítica a Amin em 1979, “só é possível entender a formação nacional como a contrapartida social do modo capitalista de produção econômica”. Alami atualiza e matiza ainda mais essa análise, explicando que, para o Estado “garantir sua própria reprodução, bem como a do dinheiro, ele é forçado a… canalizar fluxos [financeiros] e manipular seu conteúdo de classe com o propósito de administrar as relações de classe… formas compatíveis com a acumulação de capital global.” Não significa descartar indiscriminadamente a luta dentro de quaisquer Estados, mas para reconhecer que, em última instância, a infraestrutura do estado-nação hoje serve necessariamente aos interesses da acumulação de capital global. Mesmo os movimentos que operam no terreno do estado devem entender que eles só estão presentes lá porque ele oferece mais espaço para prosperar apenas em condições políticas muito específicas que podem se transformar rapidamente. Por outro lado, os movimentos empurrados para fora do Estado pela repressão autoritária podem encontrar-se em condições mais favoráveis em relação ao Estado com a mesma rapidez com que foram isolados dele.

E assim, a maneira de resistir a esta nova instanciação do imperialismo multipolar é analisar objetivamente onde e de que forma os movimentos de massa independentes emergem hoje, e encontrar novas formas de institucionalizar a solidariedade além dos modelos que privilegiam as elites estatais. Por um lado, a rivalidade interimperial no século passado em si não determinou os ganhos para movimentos independentes de descolonização no vácuo – não devemos ignorar o papel subjetivo destes últimos na mudança do curso da história. Embora alguns desses movimentos possam servir de inspiração hoje, não devemos ser dogmaticamente nostálgicos sobre suas expressões históricas. Novas formas de organização de massa popular e da classe trabalhadora são necessárias à medida que a mesma divisão imperialista do trabalho global se torna mediada por diferentes Estados – uma mudança apenas na forma, mas não no conteúdo.

POR UM NOVO INTERNACIONALISMO

Uma forma verdadeiramente emancipatória de multipolaridade forneceria uma infraestrutura para um terreno altamente variado de movimentos independentes, com cada um se desenvolvendo para maximizar seu pleno poder de agir para democratizar sua capacidade de autodeterminação. Esses movimentos podem assumir várias formas, desde comitês de resistência e sindicatos até partidos socialistas de massa. Cada um incorpora diferentes níveis de consciência política, mas pode ser estimulado de diferentes maneiras para militar contra diferentes aspectos do sistema capitalista global, embora o sucesso ou o fracasso nunca possam ser previstos. Nesse sentido, a autodeterminação contra o imperialismo global implica a criação de plataformas de assembleia e deliberação democráticas para movimentos independentes. Esses espaços podem promover demandas revolucionárias incompatíveis com os regimes atuais, mas, ao mesmo tempo, podem construir poder ao expor os limites das formas degeneradas de governo hoje, do parlamentarismo burguês ao autoritarismo não liberal. Esse difícil ato de equilíbrio, como Devaka Gunawardena coloca, significa tanto recusar-se a aceitar que a democracia burguesa é “suficiente” quanto estar aberto a “recorrer a elementos de Estados socialistas realmente existentes para criticá-la – mas forçar os limites da democracia como ela é atualmente exige um envolvimento sério com suas próprias contradições e limitações internas”.

Como isso muda exatamente nossa estratégia em torno da solidariedade internacional como socialistas? Devemos repensar o que significa na prática dizer que “o principal inimigo está em casa”. Claro, isso não significa abandonar a luta contra o imperialismo no Ocidente, mas expandir nossos horizontes para atingir locais onde diferentes Estados se cruzam entre si e com instituições internacionais. Aqui estão alguns exemplos de oportunidades de solidariedade. A demanda dos socialistas ucranianos de Sotsialnyi Rukh pela “democratização da ordem de segurança internacional” para salvaguardar as minorias e os povos oprimidos pode ser conectada a outras lutas contra o colonialismo, como na Papua Ocidental. O “BRICS From Below” e outras iniciativas de base podem continuar a ser fortalecidas com movimentos locais para pressionar contra a dívida e as instituições financeiras. A situação atual na Etiópia mostra que países rivais, do Irã a Israel, trabalham lado a lado para financiar a guerra da Etiópia contra os Tigrayans, chamando a atenção para a necessidade de campanhas coordenadas globalmente contra as políticas de “Guerra ao Terror” por diferentes regimes. Estes podem ser construídos a partir de campanhas ativas pela abolição por organizadores negros e muçulmanos, como o trabalho de Muslim Abolitionist Futures. Também podemos ajudar a unir movimentos que lutam nas interseções de diferentes capitais nacionais, desde os povos Tagaeri e Taromenane lutando contra o governo equatoriano e a invasão de empresas chinesas até as lutas anti-gentrificação em Flushing, Nova York, onde grandes empreendimentos corporativos dos EUA são financiados com a ajuda do capital dos bancos chineses. Os partidos e organizações socialistas podem ajudar a formalizar essas pontes, respeitando a existência autônoma de cada luta, construindo o poder de forma plural sem subsumi-los todos nas fileiras dos primeiros. Mais do que nunca, refletir sobre os fracassos da esquerda socialista no século 20 deve justificar ainda mais o princípio de Ernest Mandel hoje: as vanguardas socialistas não devem “subordinar os interesses da classe como um todo aos interesses de qualquer seita, qualquer capela, qualquer organização separada”.

Enquanto Amin acreditava que “as forças e projetos sociais [devem] primeiro tomar forma em nível nacional como um veículo para as reformas necessárias”, a ideia de níveis nacionais distintos de luta e desenvolvimento torna-se cada vez mais difícil de isolar com a face mutante do imperialismo. Com a ameaça cada vez maior de desastre climático em meio a um sistema econômico falido que não oferece soluções, devemos continuar a construir organizações de massa para lutar por instituições democráticas com clareza programática sempre que possível. Mas colocar nossa fé na reorganização do poder hegemônico dos EUA para uma multipolaridade de elites nacionais para desbloquear melhores condições de luta seria puro idealismo. As lutas revolucionárias anti-imperialistas devem permanecer vigilantemente pluralistas e antiautoritárias, e ver a multipolaridade sem a democracia socialista apenas como outra expressão do imperialismo, em vez de sua sentença de morte.


[1] Promise Li é um socialista de Hong Kong e Los Angeles e membro do Tempest Collective and Solidarity (EUA). Ele está envolvido no trabalho de solidariedade internacional com Lausan Collective e Internationalism from Below, e Tenant Organizing Rights com Chinatown Community for Equitable Development (CCED), em Los Angeles Chinatown.

[2] Emilly Saas é professora (UNIVASF) membro do grupos de pesquisa Théories du Politique: pouvoir et relations sociales e Genre et féminismes dans les Amériques Latines (LEGS), ligados à Universidade de Paris VIII (FR).

Compartilhe:

Posts recentes

Mais lidos

Deixe um comentário